Continuar a “fazer o mais do mesmo” pode ser uma opção de política. Conviria que fosse devidamente justificada quando os resultados até ao momento não são os mais encorajadores. Durante a visita do Presidente da Comissão da CEDEAO, o governo através do ministro dos negócios estrangeiros reiterou que “Cabo Verde está empenhado e determinado na integração regional efectiva”.
Sabe-se que um dos problemas com a integração é a dívida acumulada por falta de pagamento da taxa comunitária que já ascende a 30 milhões de dólares. Para a resolver, o governo, segundo o ministro, vai procurar parcerias, supõe-se para pagar a dívida, e promete não acumular mais atrasados a partir de 2024. Já quanto a eventuais ganhos para o país, mais uma vez, foi solicitado atenção especial à questão das ligações marítimas para que Cabo Verde possa beneficiar também dos grandes investimentos que são feitos no continente africano”.
Entretanto, os consumidores cabo-verdianos vão pagando a taxa comunitária mesmo que aparentemente não venha sendo repassada para a CEDEAO. O comércio com os países da região, quase cinco décadas após a independência, ainda não ultrapassa os 3% do total das trocas comerciais do país e não se espera alterações na estrutura das exportações e importações considerando o tipo de produtos produzidos na região, a condição insular do país e a actual política monetária com um peg unilateral no euro. Quer isso dizer que os benefícios continuarão a ser mínimos, e que os custos para economia e para as pessoas vão-se manter. Também, se apesar da promessa feita o Estado não quebrar o hábito de não repassar as receitas cobradas, haverá um outro custo, reputacional no caso, de mau pagador.
A grande questão que se coloca é por que manter um empenho numa integração económica que, mesmo entre os países do continente não deu grandes resultados - o comércio inter-regional não chegou a 19% comparados com os cerca de 65% da União Europeia – quanto mais para ser favorável para um país arquipélago a cerca 600 quilómetros da costa ocidental da Africa. As razões de fundo claramente que não podem ser comerciais numa perspectiva de desenvolvimento. Haverá outros interesses designadamente em captar financiamentos para grandes infraestruturas, comunicações e investimentos em capital humano promovidos no âmbito de estratégias como as da União Europeia relativamente aos Acordos de Parceria Económica (ARE) que num contexto continental terão impacto significativo. Mas pelo que se intui dos pedidos do ministro dos negócios estrangeiros ao presidente da CEDEAO, Cabo Verde não estará a beneficiar grandemente disso.
Por isso, as razões para o empenho na integração, serão fundamentalmente ideológicas contrariando o velho dictum que os países na condução da sua política externa não se deixam reger por sentimentos, mas sim por interesses. São razões que não são revistas nem mesmo quando os custos se acumulam - trinta milhões de dólares não é uma pequena quantia - ou se tornam permanentes com ramificações complicadas como são os encargos derivados da livre circulação de pessoas. Não é à toa que na Europa foi a última medida de integração comunitária.
Curiosamente, na CEDEAO foi a primeira e quando aplicada ao único país arquipélago da Comunidade, e com rendimento per capita superior ao da região, os custos podem ser exponencialmente maiores. Compreende-se assim que as Maurícias e as Seicheles também arquipélagos e pertencentes à Comunidade de Desenvolvimento dos Países da África Austral não ratificaram o acordo de livre circulação previsto. Não será mera coincidência que, sem a permeabilidade de fronteiras que isso implicaria, sejam os únicos arquipélagos africanos com entrada visa free por 90 dias na União Europeia.
A partir da Proclamação da Independência que pela voz do PAIGC se decretou que o povo das ilhas livremente tinha escolhido o seu destino africano foi introduzido um elemento ideológico que, mesmo não traduzindo a história, a cultura e o as relações comerciais do arquipélago, passou a ser um factor de condicionamento efectivo da política externa. Retirou-lhe flexibilidade e pragmatismo como em tudo o que tocava o núcleo ideológico do regime de partido único. Introduzia-se nas abordagens feitas uma rigidez perfeitamente insensível aos custos derivados ou associados das políticas e à realidade das oportunidades perdidas em certos momentos. Era como se fosse um tabu.
É interessante notar também que o problema não ficou só pela política externa e que em certas instituições do Estado, onde o simbolismo ideológico sempre pesou mais, foi difícil avançar com reformas, mesmo com o regime democrático e em qualquer governo. De facto, não se interiorizou totalmente que o povo não escolheu livremente o seu destino e que uma reflexão, suportada pela totalidade da história de Cabo Verde e não só pela historiografia oficial de um partido com pretensões de forjador de nações, deveria ser encetada para que o país encontrasse o seu próprio caminho. O resultado é que acabou por prevalecer um certo conformismo e tanto politicamente como socialmente aceitam-se os custos de disfunções institucionais ou de políticas claramente prejudiciais para o país. Tudo isso em nome de uma “coerência” que prima por negar a especificidade da experiência histórica cabo-verdiana de mais de cinco séculos e obriga a que, parafraseando Pedro Pires (2019), tem que se aceitar que Cabo Verde foi colonizado e tem que se aceitar que se teve uma sociedade escravocrata. A história e a cultura de um povo passam a ser o que a política quer e o que a ideologia impõe.
De facto, o que durante séculos foi produzido em termos de língua, manifestações culturais, música e literatura, e que há mais de um século se cristalizou na ideia da cabo-verdianidade e forjou uma consciência de nação muito anterior à independência, não foi patrocinada, dirigida, seleccionada ou filtrada pelo Estado. Os homens e mulheres que contribuíram decisivamente para a herança cultural que todos receberam não foram os escolhidos de alguma entidade visionária. Foram simples pessoas que souberam viver e sentir a sua terra e os seus tempos e pela sua arte e génio puderam exprimi-la de uma forma que contribuiu para a emergência de uma identidade nova.
Essa realidade simples devia ser lembrada todos os anos no Dia Nacional da Cultura e das Comunidades para uma melhor calibragem da intervenção do Estado nesse sector importante da vida do país. Porque, contrariamente ao que acontece nos regimes autoritários e totalitários, nas democracias o Estado está constitucionalmente impedido de impor directrizes filosóficas, estéticas, políticas e ideológicas ou religiosas. O povo já é livre para escolher o destino, e pelo exercício das liberdades e no pluralismo, pode obstar que dirigismos culturais e interpretações ideológicas da história e da cultura do país façam escola e sejam patrocinadas oficialmente pelo Estado. E, de facto, ninguém tem que aceitar nada e ninguém deve poder impor a sua verdade. Principalmente quando é acompanhado de custos sem fim à vista e de ineficiências que deixam todos mais pobres.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1142 de 18 de Outubro de 2023.
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