terça-feira, abril 30, 2024

50 anos após 25 de Abril: Responsabilidades por assumir

 

Amanhã dia 25 de Abril completam-se cinquenta anos sobre o golpe militar em Portugal que pôs fim à ditadura salazarista que vigorou durante 48 anos. Na sua origem estaria a constatação de que a defesa do último império colonial se tinha tornado insustentável com a guerra a pesar na economia, com a pressão internacional e com tensões nas forças armadas.

Ao golpe seguiu-se um movimento popular que tanto em Portugal como nas colónias rapidamente se converteu numa revolução com a bandeira dos três Ds: Descolonização, Democracia e Desenvolvimento. Internacionalmente o golpe de 25 de Abril ficou conhecido por ter sido o primeiro de muitos outros processos de mudança que nas duas décadas seguintes, em todos os continentes, iriam elevar o número das democracias no mundo ao seu apogeu. Para Samuel P. Huntington, a Revolução dos Cravos de 25 de Abril foi o percursor da terceira vaga da democracia.

No cumprimento do primeiro D, descolonização, foi adoptada em Julho de 1974 a lei constitucional de 7/74 em que Portugal reconhecia, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o direito dos povos à autodeterminação com todas as suas consequências incluindo a aceitação da independência das colónias. O problema com que rapidamente os sucessivos governos portugueses se depararam nos meses seguintes foi o de garantir a ordem institucional necessária para se proceder conforme a lei. As liberdades que vieram com o 25 de Abril, designadamente de expressão, reunião e manifestação, de imprensa e de formação de associações e partidos originaram uma dinâmica social e política espontânea e sem paralelo em todos os territórios sob administração portuguesa.

Claramente em vantagem se posicionaram os grupos que se reivindicavam de ligações aos movimentos de libertação. Sabendo ao que vinham e focados no objectivo último de conquista do poder, rapidamente conseguiram atrair multidões e organizar militantes. Tentativas da sociedade em produzir propostas alternativas goravam-se quase à nascença ou eram tidas como inimigas a eliminar. Por outro lado, a identificação ideológica de esquerda dos grupos ligados aos movimentos de libertação deu-lhes acesso especial a sectores esquerdistas nas forças armadas portuguesas presentes nas colónias. O resultado é que o direito à autodeterminação dos povos não foi realmente exercido e o poder foi entregue aos movimentos de libertação. Na prática, os auto-proclamados libertadores dispensaram o consentimento dos povos e tal qual conquistadores apossaram-se do poder recebido das mãos do Movimentos das Forças Armadas (MFA).

O que se seguiu confirmou a intenção primeira da conquista do poder. Em todos os novos países independentes instalaram-se regimes ditatoriais de partido único. Onde não havia movimentos rivais procederam à intimidação brutal da população e das elites anteriores chegando a casos como o fuzilamento de centenas de pessoas na Guiné-Bissau. Nos casos onde existiam movimentos de libertação rivais, desencadearam-se guerras civis que duraram décadas e que resultaram em muitos milhares de mortos. Como se pode também constatar, não se concretizaram os outros Ds do 25 de Abril. Não tiveram democracia, nem conseguiram desenvolver-se.

A incapacidade dos governos portugueses em cumprir com a sua própria lei e garantir o direito à autodeterminação dos povos viu-se mesmo no caso de Cabo Verde onde não se tinha verificado luta armada. Também aqui como disse o então ministro da Coordenação Territorial, Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, as forças armadas queriam entregar o poder ao PAIGC. Para contornar o problema Almeida Santos em conversa com dirigentes do PAIGC propôs que aceitassem uma consulta popular nos seguintes termos: Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. E assim aconteceu, disse ele: ganharam por 92% e salvamos a face.

É evidente que a consulta popular não foi nem livre, nem plural porque precedida de prisão de todos os adversários políticos, do controlo da comunicação social com a tomada das rádios privadas e do apoio explícito das forças armadas portuguesas. Para além disso, toda a acção política do PAIGC tinha como base a ideia que era o único representante do povo e que a independência só podia acontecer sob a sua direcção. Nesse sentido não podia deixar de ter uma componente intimidatória para os recalcitrantes e condicionante dos indecisos.

Feita a descolonização com a preocupação primeira de “salvar a face”, Portugal prosseguiu com os seus objectivos de implementar a democracia e construir o desenvolvimento. Realizaram-se eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e adoptou-se uma nova Constituição em 1976 com muita luta política, mas de qualquer forma num ambiente livre e plural. Ajudou também no processo a intervenção militar no dia 25 de Novembro de 1975 que contrariou derivas complicadas e assegurou que uma democracia representativa e liberal tivesse a possibilidade de se instalar. Não tiveram a mesma sorte as ex-colónias deixadas à mercê de conquistadores trasvestidos de libertadores que viriam a controlar o poder nas décadas seguintes, impedindo a democracia e adiando o desenvolvimento. Em Cabo Verde as liberdades de Abril só se tornaram realidade quinze anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 e com a Constituição de 1992.

As comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril deviam ser acompanhadas da assunção da responsabilidade pelos enormes sacrifícios e sofrimentos causados por uma descolonização tardia conduzida por um país esgotado e com as suas forças armadas quase em debandada. Na falta disso, devia-se, pelo menos, poupar aos povos que se viram a braços com regimes ditatoriais o espectáculo de ver autoridades e instituições portuguesas a validar as narrativas histórico-políticas que os legitimaram e a honrar personalidades que os incarnaram como paladinos da liberdade.

Narrativas não são factos e a história com toda a sua complexidade não pode ser reduzida à versão dos que ditatorialmente impediram outras visões, percepções e opiniões. A Revolução dos Cravos fez-se para que não continuasse a ser assim depois da noite salazarista e para que a liberdade, a autonomia e a dignidade de todos fossem recuperadas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1169 de 24 de Abril de 2024

sexta-feira, abril 19, 2024

Concertar nas prioridades para evitar instabilidades

 Na cerimónia do Dia da Cidade do Mindelo, no passado 14 de April, a presidente da assembleia municipal chamou a atenção para instabilidade do sector da indústria conserveira na ilha de S.Vicente mostrando preocupação com a protecção dos postos de trabalho existentes. Uma instabilidade que em grande medida provém do facto de, depois de mais uma década após a instalação das fábricas, o país ainda não ter adquirido suficiente capacidade de captura de peixe para as alimentar de matéria-prima. Por causa disso as exportações de conservas dependem de derrogações sucessivas no pagamento de direitos que as tornam competitivas no mercado da União Europeia. Também do volume de vendas dependem os postos de trabalho e a vontade das empresas em continuar a produzir lucrativamente no país.

O problema, aparentemente, é que não se absorveu que a prioridade do país era criar capacidade de captura de peixe e não renovar a derrogação de direitos como parecia sugerir a auto-satisfação dos governantes nos anúncios anuais da dádiva. Na falta de políticas dirigidas e aplicadas tempestivamente no sector, como estaria implícito no quadro da cooperação de “aid for trade”, não se podia esperar um outro impacto em termos de emprego, rendimento e exportações que não fosse de instabilidade. A não clarificação das prioridades e a falta de acção estratégica e planificada, mesmo quando identificadas, têm dessas consequências que deixam no ar a ideia que no país está-se sempre a recomeçar.

De facto, é a impressão com que se fica, sempre que se escutam os debates sobre os diferentes sectores da economia, designadamente sobre a agricultura, a pesca, os transportes, o turismo e a energia e também sobre as reformas a fazer na administração pública, no sector empresarial do Estado e no ensino. Nesse sentido, invoca-se a necessidade de mobilização de água, mas não se acrescenta mais valor com novos produtos, organização e expansão de mercados. Movimentam-se recursos na pesca, mas não se consegue dar o salto para a pesca industrial. Os transportes aéreos e marítimos em termos de custo e serviço ficam aquém do que seria necessário para unificar e potenciar o mercado interno.

Nos debates sobre o turismo a tentação de dispersão para nichos, ainda por se revelarem viáveis, tira o foco do produto que tem possibilidade de expansão rápida e impacto transversal na economia. Evita-se também discutir o excessivo roubo de energia devido em grande parte para não se enfrentar os problemas subjacentes e que têm a ver com falta de civismo, cultura de marginalidade e falhas na afirmação da autoridade do Estado. Com essa omissão não se reconhece suficientemente a importância central de se baixar o preço da electricidade e da água para os consumidores, para as empresas e a competitividade da economia nacional.

Tratando-se de grandes reformas, ainda se está por debater o papel do Estado num país arquipelágico com uma pequena população distribuída por nove ilhas. Um obstáculo é a herança de uma administração centralizada controladora de uma economia estatizada nos primeiros quinze anos pós-independência que não foi ultrapassada. Algo que se mantém porque, entre outras razões, a gestão da ajuda externa conjunta com as organizações multilaterais contribui para reproduzir o peso e a influência do Estado sobre o sector privado e a sociedade no seu todo. Na prática, o Estado ainda se coloca no topo da proverbial cadeia alimentar e não se pode falar totalmente de um sector privado autónomo e uma sociedade não marcada pela dependência estatal. A classe média que os teóricos da democracia veem como fundamental numa democracia consolidada ainda está por se afirmar.

Por isso que as tentativas de reforma da administração do Estado têm ficado aquém do desejável numa perspectiva de melhorar a competitividade do país com a diminuição dos custos de contexto. No sector empresarial estatal as reformas parecem mais seguir a agenda de parceiros internacionais do que a ajudar a suprir falhas de mercado e a apoiar o desenvolvimento do sector privado nacional. A reforma do ensino, no quadro de desenvolvimento do capital humano, ainda está por ter o mais forte comprometimento do Estado e o engajamento de toda a sociedade para ser vista com a maior aposta do país. A herança do igualitarismo, da massificação sem preocupação com a qualidade e da desconfiança em relação ao conhecimento dificultam a emergência da cultura de excelência e de meritocracia que o país precisa.

Quando se trata então de políticas inovadoras não se clarifica o que se pretende, insistindo com expressões grandiosas e chavões como economia azul, economia verde, transição digital e transição energética. A insistência nos meios (linhas de crédito, infraestruturas e formação para empreendedorismo) acaba por obscurecer os objectivos ficando os resultados dos projectos por serem avaliados numa perspectiva de custos e benefícios e de externalidades positivas criadas.

Com uma outra visão menos condicionada pelos projectos que ditam políticas em vez do inverso, talvez Cabo Verde pelas suas características arquipelágicas e carestias diversas e condição remota pudesse se apresentar como um grande laboratório para os problemas que tarde ou cedo quase todo o mundo vai ter designadamente em matéria de alterações climáticas, escassez de água, armazenagem de energia, acesso de pequenas comunidades a serviços públicos e a telemedicina. Talvez por aí se pudesse encontrar soluções inovadores e comercializáveis e não se limitar muitas vezes a ser um cemitério de projectos que apresentados como promissores não sobrevivem ao término do seu financiamento.

A realidade actual é que são perceptíveis “instabilidades” em vários sectores e não só na indústria conserveira. Nos transportes é claramente visível. Socialmente sente-se nos níveis de criminalidade, no excesso de suicídios, na percepção de insegurança que causa angústia e leva à depressão. Já se sente a contaminação noutros sectores como a educação em que as reivindicações dos professores enquanto justas poderão não ter solução total imediata, mas, entretanto, mexem com a eficácia das escolas e afectam os alunos. De outros grupos profissionais poderão vir reivindicações também justas.

A saída desta situação provavelmente terá que passar por se chegar a algum consenso em relação às prioridades-chave do país e num espírito de solidariedade compreender que a democracia não é só de direitos, mas também, como alguém disse, de uma cidadania comprometida com deveres para comunidade e seus valores

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1168 de 17 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 15, 2024

Cultura democrática é essencial para a estabilidade

 A propósito da organização de uma conferência sobre “Liberdade, Democracia e Boa Governança: Um olhar a Partir de Cabo Verde” não se perdeu a oportunidade de mais uma vez os partidos se digladiarem em público com acusações de aproveitamento por parte do governo. Os pretextos no caso poderão ter sido a sua realização e pertinência, os custos envolvidos e ainda a escolha dos convidados e oradores. Haverá alguma verdade nisso, mas na prática a troca de galhardetes não deixa de ser mais um exemplo de como predomina no país a política de soma zero.

Desconfiança quanto às reais intenções aparece sempre que se procure projectar para fora a imagem do país potenciando algo positivo como é no caso a sua posição nos rankings internacionais da democracia. Mas devia ser óbvio que quando o país ganha com marketing bem feito junto de parceiros e da comunidade internacional algum reflexo disso vai recair sobre o governo da república independentemente de quem no momento o representa. E não há como ser diferente. Aliás, também a oposição contribui para a boa imagem do país, como demostrou o líder do PAICV nestes dias da conferência na ilha do Sal, ao corroborar a ideia de “que nós temos uma democracia que em termos de regra cumpre, temos eleições regulares, mandatos regulares, com cidadãos e partidos a participarem nas eleições", e também ao apontar, e sem quaisquer entraves, falhas na governação.

Uma boa imagem não significa que não se notam imperfeições na democracia, que não são visíveis alguns sintomas da crise similares aos encontrados actualmente em todos os países democráticos ou que não faltam posicionamentos anti-sistema que alargando fracturas podem pôr em perigo o próprio regime democrático. Como é dito repetidas vezes o maior activo de Cabo Verde é a sua estabilidade governativa. Para a conservar deviam convergir todas as forças políticas e a sociedade de forma a que em momento algum seja posta em causa, em particular nos de alternância política.

Por outro lado, Cabo Verde é um país com uma economia pouco diversificada e muito dependente de um sector do turismo extremamente sensível a flutuações na percepção de estabilidade e segurança. O apoio dos parceiros, ainda de grande importância no actual estádio do seu desenvolvimento, também depende da confiança que governos estáveis, duráveis e democráticos podem proporcionar. A aprofundarem-se os sinais de crise, com correspondente descredibilização das instituições, não se pode tomar como certo que o padrão de estabilidade conservado até agora irá manter-se num futuro próximo. A dificuldade em criar governos estáveis em países como Espanha e recentemente Portugal pode estar a assinalar problemas similares em Cabo Verde, talvez já nas próximas legislativas.

Aliás, é o que pode acontecer se continuarem as tensões políticas do mesmo teor dos vividos no país e que provocam a erosão e a descredibilização das instituições. Uma outra contribuição pode vir das tendências anti-sistema que põem em causa a competência dos órgãos de soberania, o princípio da separação dos poderes e procuram subordinar o Estado a narrativas iliberais. Num cenário desses corre-se o risco de que a exemplo das democracias mencionadas nenhum partido consiga obter nas urnas uma maioria absoluta. E Cabo Verde ainda não foi posta à prova perante a perspectiva de um governo minoritário.

De facto, os anos de estabilidade vividos em democracia foram anos de maioria absoluta de um só partido num sistema praticamente bipartidário. No início da actual legislatura, em 2021, viram-se os sinais do que poderá vir a verificar-se no futuro. Devido a fracturas aparentes na maioria parlamentar, que teriam vindo a público nas eleições do presidente e da mesa da Assembleia Nacional, viveram-se momentos de incerteza em particular na aprovação da moção de confiança ao governo e posteriormente na aprovação do Orçamento do Estado. As soluções que começaram a desenhar-se com a UCID para viabilizar o governo não tiveram desenvolvimento posterior, mas deixaram desconfiança e ressentimento na relação com o partido governamental. A abertura à intervenção do PR na questão orçamental revelou fragilidades do governo contribuindo provavelmente para posteriores momentos de tensão entre os dois órgãos de soberania.

No sistema político cabo-verdiano a inexistência de uma maioria absoluta nas eleições legislativas pode levar a situações complicadas do mesmo tipo. A Constituição exige a aprovação uma moção de confiança para se ter governo e isso só é possível com maioria absoluta. Em vários outros países simplesmente se exige que não seja aprovada uma moção de rejeição ao governo. Com isso, abre-se caminho para um governo minoritário que pode manter-se até que contra ele não se erga uma maioria negativa. Já em Cabo Verde a exigência logo à partida de uma maioria implica que se tenha uma cultura de negociação e compromissos entre os partidos, algo que actualmente é quase inexistente e tende a tornar-se mais rara. É só ver a dificuldade já de vários anos em conseguir entendimento para eleger os órgãos externos da Assembleia Nacional.

A dificuldade que se pode vir a ter no futuro já é discernível no que se vive nos municípios da Praia e de S. Vicente. Sem maioria absoluta, no caso da Praia por opção do próprio presidente da câmara municipal e no caso de S. Vicente devido aos resultados das eleições, a impossibilidade de se chegar a acordo entre as partes leva no primeiro caso à aprovação do Orçamento sem seguir os procedimentos legais e, no segundo caso, a bloqueios e funcionamento com orçamento de anos anteriores. Em todos os outros municípios, e na maioria dos casos ao longo das três décadas de poder local, a maioria absoluta até agora garantiu estabilidade. Se a regra passar a ser maioria relativa não haverá garantia que o ambiente de estabilidade que se vive na generalidade dos municípios irá continuar.

Os sinais que se vêem no país e os que vêm de fora não fazem acreditar que o ambiente político, a natureza das disputas políticas e própria postura dos actores políticos e também dos cidadãos em relação à política vão mudar. Pelo contrário, nota-se que a descredibilização das instituições tende a aumentar e que a política se torna cada mais performativa e menos de substância. O que faz escola é a exibição do narcisismo, é algum desdém pelos factos e pela verdade e é o apego a narrativas fracturantes da sociedade.

Mesmo as eleições, como as últimas verificadas em Portugal, não conseguem inverter o processo. Pelo contrário, mostram a dinâmica de ascensão de blocos antagónicos que se retroalimentam e não se vê suficiente vontade para romper com o círculo vicioso. A impressão que fica é que se deixou enfraquecer demasiado os consensos sobre os princípios e valores democráticos e o respeito pelo primado da lei que mantêm coesa a comunidade e permitem traçar propósitos comuns.

Para Cabo Verde a imagem de estabilidade é essencial. Mantê-la, passa por inverter a actual erosão da cultura cívica, por um maior comprometimento com os procedimentos democráticos e por renovação dos laços de solidariedade. A grande prova será o novo ciclo eleitoral, seja pelos desafios que poderá vir a colocar, seja pelos que o país poderá se deparar neste mundo de mudanças geopolíticas, alterações climáticas e transformações tecnológicas. É fundamental que se reúna o consenso necessário para a vencer.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024.

segunda-feira, abril 08, 2024

Representatividade e responsabilização devem caminhar lado a lado

 

A preparação para as eleições autárquicas no último trimestre do corrente ano já começou. O MpD, o partido no governo e maioritário nas autarquias, anunciou os seus candidatos a presidente das câmaras municipais há mais de três semanas, mas dos outros partidos ainda não foram revelados nomes para a corrida eleitoral. De entre os efeitos no público do anúncio do MpD destacou-se o facto de não ter para as 22 câmaras municipais uma candidata mulher. Não foi proposta a recandidatura da actual presidente da câmara de Santa Catarina e não foram apresentadas outras candidatas noutros municípios. A colisão directa com o espírito da lei da paridade, que essa decisão partidária acabou por configurar, criou a possibilidade de outros partidos se mostrarem diferentes e não hipócritas propondo candidaturas no feminino.

O cargo de presidente da câmara afirma-se cada vez mais central nos municípios – por lei é órgão executivo singular – e, por isso, não se pode pretender que se está a cumprir com a paridade compensando a todo o momento a ausência de candidatas para o lugar com candidaturas femininas para segundo da lista da câmara ou mesmo primeiro da lista para a assembleia municipal. Os partidos, enquanto organizações democráticas e representativas da comunidade política e promotores de princípios e valores como igualdade de oportunidades para todos, têm como uma das suas principais funções preparar e seleccionar candidatos aos órgãos do poder político para ganhar e governar com competência. Nesse sentido, a selecção não pode ser vista como um processo opaco e sujeito a jogadas, nem tão simplista como sondagens para avaliar a notoriedade dos pré-candidatos. Deve ser antes tida como resultado da ponderação exaustiva em órgãos próprios ou de métodos transparentes e competitivos como são as primárias partidárias. Quando não é assim, contribui para aprofundar ainda mais a chamada crise de representatividade que é uma das manifestações da crise da democracia que hoje assola o mundo.

Representatividade e responsabilização caminham lado a lado. Se a representatividade não é reconhecida porque diluída ou imposta, não há a quem exigir contas. Também se é concentrada num indivíduo sem contrabalanço de outros órgãos a tendência é para o caciquismo e relações de dependência que não deixam espaço para uma real responsabilização. Nos municípios cabo-verdianos, apesar da Constituição estabelecer que a câmara municipal é responsável perante a assembleia municipal, a verdade é que todo o poder tende a concentrar-se no presidente da câmara. Daí que que os partidos na preparação das autárquicas ponham o foco na escolha dos candidatos a presidente da câmara e coloquem em segundo plano os candidatos para a câmara e assembleia, afectando negativamente a qualidade da representação dos munícipes nos seus órgãos de poder político.

É evidente que assim a democracia local fica comprometida. Cria-se uma espécie de círculo vicioso em que a fragilidade dos órgãos colegiais tende a aumentar com a concentração do poder no presidente da câmara e com a diminuição em simultâneo da sua capacidade de controlo institucional e imagem junto dos munícipes. A experiência de mais de trinta anos de poder local deixa entender que na generalidade das situações também a influência dos partidos tende a diminuir à medida que o presidente da câmara vai ao longo do mandato construindo a sua base de apoio. Base essa que com sucessivos mandatos tende a consolidar e que a partir de certo momento permite inverter a relação com o partido deixando de ser o escolhido do partido para se impor como candidato nos seus termos. Verdade seja dita que também aquele que não construir base própria dificilmente consegue ir além de um mandato. Há sempre rivais à espreita nas estruturas do partido.

As crises persistentes nos municípios de S.Vicente e da Praia são exemplos de como desvios no exercício do poder democrático ao nível municipal acabam por degenerar em bloqueios, caciquismos e em ilegalidades flagrantes. Revelador da ausência de mecanismos sócio-políticos de responsabilização é a própria impotência das direcções dos partidos em lidar com essas situações. Não as conseguem resolver ou ultrapassar e, pelo contrário, sentem-se forçadas a seguir a posição do presidente da câmara. Preocupante também é a tendência para transportar para a Assembleia Nacional as lutas políticas municipais. Além de se desperdiçar tempo precioso do parlamento, ainda se contribui para aumentar o tempo que os média, em particular a rádio e a televisão públicas, dedicam às câmaras municipais nas disputas políticas nacionais.

De facto, a impressão que se tem é que cada vez mais a arena política principal do país move-se para os municípios. O excessivo eleitoralismo que sempre caracterizou a política municipal facilita esse tipo de jogo político onde também se vêem como protagonistas o governo e os deputados nacionais. Com convites selectivos e agendas convenientes nem sequer se deixa de fora o presidente da república. No processo o que acaba por prevalecer é a lógica de campanha permanente com disputa feroz de recursos e o discurso do abandono e do ressentimento. Em termos de políticas, a tendência é para não se ver o país no seu todo, nem mesmo das suas nove ilhas, mas cada vez mais na perspectiva dos seus 22 municípios. O problema é que com perda de escala e mais rigidez no tratamento dos constrangimentos ao desenvolvimento aumenta-se a ineficiência na utilização dos escassos recursos e diminui-se a eficácia das políticas. Paradoxalmente também a autonomia municipal é de alguma forma sacrificada.

A ideia do município parte do princípio da existência de interesses específicos das comunidades no país que não se esgotam no interesse nacional. A eleição dos seus órgãos de poder político devia garantir de forma democrática a prossecução desses interesses específicos. O facto de só estar sujeito à tutela de legalidade e não ter tutela de mérito devia ser suficiente para manter à distância os órgãos de soberania e seus titulares. Se a percepção da autonomia não se confirma será por razões de fragilização das suas instituições devido ao funcionamento deficiente dos mecanismos de responsabilização, à fraca participação da comunidade, à pouca expressão de uma comunicação social local e à cultura eleitoralista em que “vale tudo”. Na verdade, há pouca discussão das políticas locais, mas muita disputa de recursos e protagonismo com o governo. E para os políticos locais criar uma base de suporte à autonomia não parece tão importante como concentrar recursos para influenciar e agir.

Pode-se estar ainda longe do poder local como cantinho de experimentação democrática, mas na oportunidade oferecida por cada ciclo eleitoral devia-se fazer um esforço para se realizar o objectivo de participação política efectiva. Para isso, há que ter preocupação com a representatividade e a responsabilização política e garantir a autonomia municipal. Os partidos têm o dever de apresentar candidatos qualificados – respeitando a diversidade – capazes de apresentar propostas de políticas e propiciar debate para a consecução dos interesses municipais. Quando, como é caso actual, em que há candidatos que são membros do governo deviam deixar o cargo logo que anunciados publicamente em nome da autonomia municipal e da própria eficácia governativa.

Também da sociedade sempre poderia vir uma iniciativa de candidatos promovida por “grupo de cidadãos” que, sem cair na tentação de imitar os partidos, ajudasse a criar uma democracia local sem caciquismo e clientelismo. Talvez assim se construísse um poder local mais próximo de cumprir com os seus desígnios constitucionais de levar a democracia a todos os cantos do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1166 de 3 de Abril de 2024.