segunda-feira, abril 15, 2024

Cultura democrática é essencial para a estabilidade

 A propósito da organização de uma conferência sobre “Liberdade, Democracia e Boa Governança: Um olhar a Partir de Cabo Verde” não se perdeu a oportunidade de mais uma vez os partidos se digladiarem em público com acusações de aproveitamento por parte do governo. Os pretextos no caso poderão ter sido a sua realização e pertinência, os custos envolvidos e ainda a escolha dos convidados e oradores. Haverá alguma verdade nisso, mas na prática a troca de galhardetes não deixa de ser mais um exemplo de como predomina no país a política de soma zero.

Desconfiança quanto às reais intenções aparece sempre que se procure projectar para fora a imagem do país potenciando algo positivo como é no caso a sua posição nos rankings internacionais da democracia. Mas devia ser óbvio que quando o país ganha com marketing bem feito junto de parceiros e da comunidade internacional algum reflexo disso vai recair sobre o governo da república independentemente de quem no momento o representa. E não há como ser diferente. Aliás, também a oposição contribui para a boa imagem do país, como demostrou o líder do PAICV nestes dias da conferência na ilha do Sal, ao corroborar a ideia de “que nós temos uma democracia que em termos de regra cumpre, temos eleições regulares, mandatos regulares, com cidadãos e partidos a participarem nas eleições", e também ao apontar, e sem quaisquer entraves, falhas na governação.

Uma boa imagem não significa que não se notam imperfeições na democracia, que não são visíveis alguns sintomas da crise similares aos encontrados actualmente em todos os países democráticos ou que não faltam posicionamentos anti-sistema que alargando fracturas podem pôr em perigo o próprio regime democrático. Como é dito repetidas vezes o maior activo de Cabo Verde é a sua estabilidade governativa. Para a conservar deviam convergir todas as forças políticas e a sociedade de forma a que em momento algum seja posta em causa, em particular nos de alternância política.

Por outro lado, Cabo Verde é um país com uma economia pouco diversificada e muito dependente de um sector do turismo extremamente sensível a flutuações na percepção de estabilidade e segurança. O apoio dos parceiros, ainda de grande importância no actual estádio do seu desenvolvimento, também depende da confiança que governos estáveis, duráveis e democráticos podem proporcionar. A aprofundarem-se os sinais de crise, com correspondente descredibilização das instituições, não se pode tomar como certo que o padrão de estabilidade conservado até agora irá manter-se num futuro próximo. A dificuldade em criar governos estáveis em países como Espanha e recentemente Portugal pode estar a assinalar problemas similares em Cabo Verde, talvez já nas próximas legislativas.

Aliás, é o que pode acontecer se continuarem as tensões políticas do mesmo teor dos vividos no país e que provocam a erosão e a descredibilização das instituições. Uma outra contribuição pode vir das tendências anti-sistema que põem em causa a competência dos órgãos de soberania, o princípio da separação dos poderes e procuram subordinar o Estado a narrativas iliberais. Num cenário desses corre-se o risco de que a exemplo das democracias mencionadas nenhum partido consiga obter nas urnas uma maioria absoluta. E Cabo Verde ainda não foi posta à prova perante a perspectiva de um governo minoritário.

De facto, os anos de estabilidade vividos em democracia foram anos de maioria absoluta de um só partido num sistema praticamente bipartidário. No início da actual legislatura, em 2021, viram-se os sinais do que poderá vir a verificar-se no futuro. Devido a fracturas aparentes na maioria parlamentar, que teriam vindo a público nas eleições do presidente e da mesa da Assembleia Nacional, viveram-se momentos de incerteza em particular na aprovação da moção de confiança ao governo e posteriormente na aprovação do Orçamento do Estado. As soluções que começaram a desenhar-se com a UCID para viabilizar o governo não tiveram desenvolvimento posterior, mas deixaram desconfiança e ressentimento na relação com o partido governamental. A abertura à intervenção do PR na questão orçamental revelou fragilidades do governo contribuindo provavelmente para posteriores momentos de tensão entre os dois órgãos de soberania.

No sistema político cabo-verdiano a inexistência de uma maioria absoluta nas eleições legislativas pode levar a situações complicadas do mesmo tipo. A Constituição exige a aprovação uma moção de confiança para se ter governo e isso só é possível com maioria absoluta. Em vários outros países simplesmente se exige que não seja aprovada uma moção de rejeição ao governo. Com isso, abre-se caminho para um governo minoritário que pode manter-se até que contra ele não se erga uma maioria negativa. Já em Cabo Verde a exigência logo à partida de uma maioria implica que se tenha uma cultura de negociação e compromissos entre os partidos, algo que actualmente é quase inexistente e tende a tornar-se mais rara. É só ver a dificuldade já de vários anos em conseguir entendimento para eleger os órgãos externos da Assembleia Nacional.

A dificuldade que se pode vir a ter no futuro já é discernível no que se vive nos municípios da Praia e de S. Vicente. Sem maioria absoluta, no caso da Praia por opção do próprio presidente da câmara municipal e no caso de S. Vicente devido aos resultados das eleições, a impossibilidade de se chegar a acordo entre as partes leva no primeiro caso à aprovação do Orçamento sem seguir os procedimentos legais e, no segundo caso, a bloqueios e funcionamento com orçamento de anos anteriores. Em todos os outros municípios, e na maioria dos casos ao longo das três décadas de poder local, a maioria absoluta até agora garantiu estabilidade. Se a regra passar a ser maioria relativa não haverá garantia que o ambiente de estabilidade que se vive na generalidade dos municípios irá continuar.

Os sinais que se vêem no país e os que vêm de fora não fazem acreditar que o ambiente político, a natureza das disputas políticas e própria postura dos actores políticos e também dos cidadãos em relação à política vão mudar. Pelo contrário, nota-se que a descredibilização das instituições tende a aumentar e que a política se torna cada mais performativa e menos de substância. O que faz escola é a exibição do narcisismo, é algum desdém pelos factos e pela verdade e é o apego a narrativas fracturantes da sociedade.

Mesmo as eleições, como as últimas verificadas em Portugal, não conseguem inverter o processo. Pelo contrário, mostram a dinâmica de ascensão de blocos antagónicos que se retroalimentam e não se vê suficiente vontade para romper com o círculo vicioso. A impressão que fica é que se deixou enfraquecer demasiado os consensos sobre os princípios e valores democráticos e o respeito pelo primado da lei que mantêm coesa a comunidade e permitem traçar propósitos comuns.

Para Cabo Verde a imagem de estabilidade é essencial. Mantê-la, passa por inverter a actual erosão da cultura cívica, por um maior comprometimento com os procedimentos democráticos e por renovação dos laços de solidariedade. A grande prova será o novo ciclo eleitoral, seja pelos desafios que poderá vir a colocar, seja pelos que o país poderá se deparar neste mundo de mudanças geopolíticas, alterações climáticas e transformações tecnológicas. É fundamental que se reúna o consenso necessário para a vencer.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024.

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