A preparação para as eleições autárquicas no último trimestre do corrente ano já começou. O MpD, o partido no governo e maioritário nas autarquias, anunciou os seus candidatos a presidente das câmaras municipais há mais de três semanas, mas dos outros partidos ainda não foram revelados nomes para a corrida eleitoral. De entre os efeitos no público do anúncio do MpD destacou-se o facto de não ter para as 22 câmaras municipais uma candidata mulher. Não foi proposta a recandidatura da actual presidente da câmara de Santa Catarina e não foram apresentadas outras candidatas noutros municípios. A colisão directa com o espírito da lei da paridade, que essa decisão partidária acabou por configurar, criou a possibilidade de outros partidos se mostrarem diferentes e não hipócritas propondo candidaturas no feminino.
O cargo de presidente da câmara afirma-se cada vez mais central nos municípios – por lei é órgão executivo singular – e, por isso, não se pode pretender que se está a cumprir com a paridade compensando a todo o momento a ausência de candidatas para o lugar com candidaturas femininas para segundo da lista da câmara ou mesmo primeiro da lista para a assembleia municipal. Os partidos, enquanto organizações democráticas e representativas da comunidade política e promotores de princípios e valores como igualdade de oportunidades para todos, têm como uma das suas principais funções preparar e seleccionar candidatos aos órgãos do poder político para ganhar e governar com competência. Nesse sentido, a selecção não pode ser vista como um processo opaco e sujeito a jogadas, nem tão simplista como sondagens para avaliar a notoriedade dos pré-candidatos. Deve ser antes tida como resultado da ponderação exaustiva em órgãos próprios ou de métodos transparentes e competitivos como são as primárias partidárias. Quando não é assim, contribui para aprofundar ainda mais a chamada crise de representatividade que é uma das manifestações da crise da democracia que hoje assola o mundo.
Representatividade e responsabilização caminham lado a lado. Se a representatividade não é reconhecida porque diluída ou imposta, não há a quem exigir contas. Também se é concentrada num indivíduo sem contrabalanço de outros órgãos a tendência é para o caciquismo e relações de dependência que não deixam espaço para uma real responsabilização. Nos municípios cabo-verdianos, apesar da Constituição estabelecer que a câmara municipal é responsável perante a assembleia municipal, a verdade é que todo o poder tende a concentrar-se no presidente da câmara. Daí que que os partidos na preparação das autárquicas ponham o foco na escolha dos candidatos a presidente da câmara e coloquem em segundo plano os candidatos para a câmara e assembleia, afectando negativamente a qualidade da representação dos munícipes nos seus órgãos de poder político.
É evidente que assim a democracia local fica comprometida. Cria-se uma espécie de círculo vicioso em que a fragilidade dos órgãos colegiais tende a aumentar com a concentração do poder no presidente da câmara e com a diminuição em simultâneo da sua capacidade de controlo institucional e imagem junto dos munícipes. A experiência de mais de trinta anos de poder local deixa entender que na generalidade das situações também a influência dos partidos tende a diminuir à medida que o presidente da câmara vai ao longo do mandato construindo a sua base de apoio. Base essa que com sucessivos mandatos tende a consolidar e que a partir de certo momento permite inverter a relação com o partido deixando de ser o escolhido do partido para se impor como candidato nos seus termos. Verdade seja dita que também aquele que não construir base própria dificilmente consegue ir além de um mandato. Há sempre rivais à espreita nas estruturas do partido.
As crises persistentes nos municípios de S.Vicente e da Praia são exemplos de como desvios no exercício do poder democrático ao nível municipal acabam por degenerar em bloqueios, caciquismos e em ilegalidades flagrantes. Revelador da ausência de mecanismos sócio-políticos de responsabilização é a própria impotência das direcções dos partidos em lidar com essas situações. Não as conseguem resolver ou ultrapassar e, pelo contrário, sentem-se forçadas a seguir a posição do presidente da câmara. Preocupante também é a tendência para transportar para a Assembleia Nacional as lutas políticas municipais. Além de se desperdiçar tempo precioso do parlamento, ainda se contribui para aumentar o tempo que os média, em particular a rádio e a televisão públicas, dedicam às câmaras municipais nas disputas políticas nacionais.
De facto, a impressão que se tem é que cada vez mais a arena política principal do país move-se para os municípios. O excessivo eleitoralismo que sempre caracterizou a política municipal facilita esse tipo de jogo político onde também se vêem como protagonistas o governo e os deputados nacionais. Com convites selectivos e agendas convenientes nem sequer se deixa de fora o presidente da república. No processo o que acaba por prevalecer é a lógica de campanha permanente com disputa feroz de recursos e o discurso do abandono e do ressentimento. Em termos de políticas, a tendência é para não se ver o país no seu todo, nem mesmo das suas nove ilhas, mas cada vez mais na perspectiva dos seus 22 municípios. O problema é que com perda de escala e mais rigidez no tratamento dos constrangimentos ao desenvolvimento aumenta-se a ineficiência na utilização dos escassos recursos e diminui-se a eficácia das políticas. Paradoxalmente também a autonomia municipal é de alguma forma sacrificada.
A ideia do município parte do princípio da existência de interesses específicos das comunidades no país que não se esgotam no interesse nacional. A eleição dos seus órgãos de poder político devia garantir de forma democrática a prossecução desses interesses específicos. O facto de só estar sujeito à tutela de legalidade e não ter tutela de mérito devia ser suficiente para manter à distância os órgãos de soberania e seus titulares. Se a percepção da autonomia não se confirma será por razões de fragilização das suas instituições devido ao funcionamento deficiente dos mecanismos de responsabilização, à fraca participação da comunidade, à pouca expressão de uma comunicação social local e à cultura eleitoralista em que “vale tudo”. Na verdade, há pouca discussão das políticas locais, mas muita disputa de recursos e protagonismo com o governo. E para os políticos locais criar uma base de suporte à autonomia não parece tão importante como concentrar recursos para influenciar e agir.
Pode-se estar ainda longe do poder local como cantinho de experimentação democrática, mas na oportunidade oferecida por cada ciclo eleitoral devia-se fazer um esforço para se realizar o objectivo de participação política efectiva. Para isso, há que ter preocupação com a representatividade e a responsabilização política e garantir a autonomia municipal. Os partidos têm o dever de apresentar candidatos qualificados – respeitando a diversidade – capazes de apresentar propostas de políticas e propiciar debate para a consecução dos interesses municipais. Quando, como é caso actual, em que há candidatos que são membros do governo deviam deixar o cargo logo que anunciados publicamente em nome da autonomia municipal e da própria eficácia governativa.
Também da sociedade sempre poderia vir uma iniciativa de candidatos promovida por “grupo de cidadãos” que, sem cair na tentação de imitar os partidos, ajudasse a criar uma democracia local sem caciquismo e clientelismo. Talvez assim se construísse um poder local mais próximo de cumprir com os seus desígnios constitucionais de levar a democracia a todos os cantos do país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1166 de 3 de Abril de 2024.
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