segunda-feira, junho 10, 2024

O fascínio da impunidade

 

No passado dia 31 de Maio o ex-presidente americano Donald Trump foi considerado culpado em 34 acções crime que tinham sido movidas contra ele num tribunal de Nova Iorque. A decisão unânime do júri formado por 12 cidadãos apanhou toda a gente de surpresa. A sorte aparentemente vinha servindo Donald Tump ao longo das múltiplas acções judiciais e também políticas, dois impeachments nos quatro anos da sua presidência. Ou eram chumbadas como no caso das tentativas da sua destituição ou eram adiadas, contornadas ou recusadas quando vinham pela via judicial. Uma áurea de impunidade parecia acompanhá-lo a todo o tempo enquanto insultava pessoas, agredia instituições e praticava actos geralmente considerados ilegais.

A decisão do júri afectou essa áurea, mas claramente que na mente de milhões de americanos não foi suficiente para a deitar abaixo. Nas 24 horas seguintes mais de 54 milhões de dólares foram doados à campanha de Trump para a presidência, em Novembro próximo. Essa reacção da sua base eleitoral de o continuar a apoiar mesmo perante a evidência apresentada e a prova, para além de qualquer dúvida, de crimes cometidos, não deixa de ser extraordinária. De facto, tudo leva a crer que se está perante uma nova estirpe de político. Um tipo de populista que é não só anti-elitista, põe em causa as instituições e faz promessas mirabolantes mas, um outro, que se declara querer ser ditador, colocar-se acima da lei e até mostrar ser irresponsável nas relações com países estrangeiros declaradamente inimigos.

Conseguir ficar intocável e mesmo impune ao longo de anos de atropelos sucessivos às normas de comportamento, procedimentos aceites, princípios éticos e até leis punitivas parece criar um fascínio especial que assumido por um número crescente de pessoas pode ganhar vida própria. Quando é assim a divisão dentro da sociedade vai além de uma simples polarização com base em filosofias ou ideologias políticas diferentes para se situar na chamada pós-verdade e realidades alternativas. O diálogo torna-se quase impossível, as instituições degradam-se e sinais preocupantes como extrema crispação política e o chamado crime de ódio avolumam-se.

Por outro lado, a impunidade que acompanha os atropelos tende a ser cada vez maior e se há iniciativa das instituições para pôr cobro a irregularidades e a práticas ilegais constata-se uma reacção violenta não só do líder como também dos apoiantes. A censura política ou mesma a condenação judicial do líder não leva à perda da sua base política de suporte. Pelo contrário, a tendência é para os apoiantes insurgirem contra as instituições e contra as regras democráticas com acusações de perseguição, cumplicidade e manipulação. Aconteceu com Trump e acontece com outros políticos da mesma estirpe por todo o lado nas democracias sempre que se procura responsabilizá-los pelos seus actos. Com isso, agrava-se ainda mais a crise institucional em que actualmente se encontram.

De facto, a predisposição de partes significativas da sociedade em aceitar o discurso iliberal que fere a dignidade humana e os direitos do indivíduo acaba por minar os fundamentos da vida em comunidade com liberdade, paz e justiça. As sucessivas tentativas de alterar o equilíbrio de poderes no sistema de governo criando bloqueios e ineficácias abre caminho para o poder arbitrário de uma minoria à volta de um Chefe com apetites ditatoriais. As arremetidas contra os factos e o apego a narrativas construídas à volta da idolatria de líderes que privilegiam emoções em detrimento da razão prejudicam a busca da verdade. E sem o comprometimento de uma sociedade com a procura da verdade não se consegue realizar as potencialidades da sociedade democrática indispensáveis para construir o progresso e a prosperidade suportando-se no pluralismo, em incentivos à criatividade e ao mérito, na promoção do conhecimento científico e tecnológico e na afirmação da autonomia individual. Não é à toa que os países mais avançados do mundo em todos os domínios são democracias.

Em Cabo Verde também já há sinais de políticos e de certo tipo de actuações na esfera pública que procuram afirmar-se desafiando as regras e subtraindo-se à responsabilização, sem se importar com a legalidade e a ordem constitucional e com o impacto na credibilidade das instituições. Dá indicação disso a comoção pública e política em certos sectores da sociedade provocada pelo caso do advogado que começou com acusações contra juízes e contra o sistema judicial e acabou com o julgamento do próprio, entrementes eleito deputado, por atentado contra o Estado de Direito. A exemplo do que se passou noutros sítios a impressão com que se fica é que quando deixou de existir a percepção de impunidade os apoiantes mobilizaram-se para a repor acusando o sistema político e judicial de perseguição, cumplicidade e manipulação. Para alguns deveria interessar a continuação de ataques a juízes e ao sistema judicial a partir do plenário da Assembleia Nacional.

Um outro caso é o que se passou na Câmara Municipal da Praia (CMP). Ontem, dia 4 de Junho, o presidente do PAICV foi prestar solidariedade expressa ao presidente da (CMP) “porque tem sido vítima de vários actos de perseguição… e o acto de busca [pelo Ministério Público] foi a gota de água”. Não parece interessar o facto que os problemas na CM da Praia começaram após a destruição pelo próprio presidente da maioria do Paicv recebida das eleições, logo no início do mandato, com acusações espúrias de corrupção aos vereadores do seu próprio partido. Agudizaram-se quando apresentou à Assembleia Municipal (AM) a proposta de orçamento do município sem ser previamente aprovada pela CMP. As ilegalidades continuaram com a aprovação subsequente da proposta pela AM em colisão directa com o estatuto dos municípios e com a prática estabelecida nos restantes municípios durante os mais de trinta anos do municipalismo democrático em Cabo Verde.

Na linha do que acontece com populistas da nova estirpe política, os anos de impunidade por reiterados procedimentos ilegais aparentemente fazem parte dos solavancos que reforçam as suas raízes e as suas bases de ligação com os eleitores. É-lhes oferecido “apoio inequívoco” por causa disso e não apesar disso. Segue-se assim por um caminho em que ao invés de se fazer o jogo democrático e respeitar as instituições se premeia o atropelo das regras. Mais ainda se premeia a percepção de impunidade dos prevaricadores por causa do fascínio que líderes anti-elitistas, cáusticos com os adversários políticos e seguros da sua “verdade”, não interessando os factos, criam em certos segmentos da população.

O colapso do centro político nas democracias acompanhado do aumento do vociferar nos extremos deriva em boa medida do oportunismo político de partidos e certas personalidades. Vê-se isso nas apostas que, atacando ou apoiando, fazem em figuras políticas controversas com laivos narcisistas e a projectar uma imagem de autenticidade à mistura com sentimentos anti-sistema. Claramente que colocar o foco nesses putativos ditadores não traz nada de bom para a liberdade e para a democracia. Toda a gente sabe disso, mas parece que ninguém quer recuar dessa corrida para o desastre. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1175 de 5 de Junho de 2024.

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