Na apresentação do relatório Cabo Verde Economic Update 2024 o Banco Mundial veio relembrar as vulnerabilidades do país que a pandemia da Covid-19 pôs a claro. Citou, designadamente a grande dependência do turismo, as fragilidades face a choques externos e os riscos representados pelas empresas estatais com fraco desempenho. Um reviver pertinente de memória de todos considerando a tendência oficial para declarações auto congratulatórias do tipo: foi conseguido “a maior taxa de crescimento de sempre em 2022”. Quase se omite que tal só se verificou após a maior forte contracção conhecida da economia nacional.
Também um oportuno recordar para não obscurecer que os problemas estruturais permanecem e que, mesmo com o regresso dos turistas, ainda em 2024 não se aproveita adequadamente a procura externa gerada pelo turismo para arrastar e diversificar o resto da economia. A ilustrar isso, na avaliação da economia azul, o Banco Mundial, no mesmo documento, chama a atenção para o facto de que os operadores turísticos têm que importar peixe para consumo nos hotéis. Justificam com o facto de nem o manuseamento do pescado e nem a armazenagem no frio dos produtos do mar seguirem rigorosamente os procedimentos exigidos para garantir a segurança alimentar.
Ainda no quadro do esforço para a diversificação da economia o BM aponta a falha na criação de capacidade nacional de captura de peixe que está a pôr em perigo a indústria conserveira do país e as exportações de produtos do mar. Com o fim em vista da derrogação dos direitos de origem garantida pela União Europeia, são as exportações, que já atingem o valor de 32 milhões de dólares e 3,4% do PIB e também milhares de postos de trabalho, em particular de mulheres nas fábricas, que ficam em perigo. E é toda uma via, a da economia azul, para se evitar a chamada monocultura do turismo e as suas dependências que se arrisca a desperdiçar por falta de visão e de políticas adequadas. Também por negligência, porque não faltaram avisos das consequências do fim das derrogações.
Por outro lado, não é obvio, pelo menos no relatório do Banco Mundial, que existam à mão outras vias para diversificar a economia e criar rapidamente postos de trabalho. A quebra do fluxo turístico por causa da Covid-19 mostrou o quanto o país depende do turismo. Viu-se também que mesmo com toda a ajuda internacional, o endividamento externo e as remessas dos emigrantes a economia caiu mais de 20% e só recuperou com o regresso dos turistas. A constatação desse facto deveria ter levado a uma reflexão nacional profunda sobre as vulnerabilidades do país e em como as contornar e amortecer para melhor prepará-lo para enfrentar choques externos. Não aconteceu.
Os estrangulamentos na cadeia de abastecimento, a inflação, a guerra na Ucrânia e os aumentos do preço dos combustíveis que vieram logo a seguir parece que também não foram suficientes para devidamente focar a atenção nos problemas do país. A percepção que o mundo de hoje, com a globalização em retirada, com o regresso do proteccionismo, aumento de tensões geopolíticas e mesmo a possibilidade de guerras, não é o dos anos anteriores, aparentemente não impede que se queira continuar a fazer o mais do mesmo. Tanto é assim que no parlamento onde deviam-se discutir essas grandes questões do país o mais certo é que não recebam a devida atenção e se prefira ficar pelas tricas da pequena política.
Curiosamente não poucas vezes elas reaparecem ostensivamente em encontros, fóruns e workshops preparados com pompa e circunstância. Milhões acompanham os projectos que na sequência são anunciados. Depois, quando avaliados como agora acontece com a blue economy, percebe-se que, não obstante os muitos financiamentos feitos na pesca ao longo de quase cinco décadas, o sector caracteriza-se pela informalidade, por baixa produtividade e pelos níveis de pobreza de muitos que dele vivem. Por outro lado, considerando que se baseia num dos raros recursos naturais do país, o facto de não realizar o seu potencial prejudica directamente a economia não só pelo impacto directo limitado como pelos efeitos de arrastamento noutros sectores que ficam aquém dos possíveis. E é menor o papel que podia ter na diversificação da economia e em garantir ao país maior resiliência face aos choques externos.
Neste momento em que o mundo parece estar no limiar de mudanças profundas a vários níveis, Cabo Verde devia ser capaz de confrontar criticamente muitos dos pressupostos e mitos que têm estado subjacente às políticas de desenvolvimento adoptadas ao longo de décadas no pós-independência. Um deles, por exemplo, é da importância estratégica de Cabo Verde que historicamente parece mais pontual do que permanente. Quantos investimentos em projectos de hubs, transhipments e outros serviços sem o retorno esperado já foram feitos com o pressuposto que o interesse no país não é conjuntural. Um outro problema é o de escala num país arquipélago e de pequena população e relativamente remoto. Não há como moldar mercados e impor-se como útil e indispensável. O que deve existir é agilidade e criatividade no aproveitamento das oportunidades. De outra forma criam-se elefantes brancos e aumenta-se a dívida.
O ponto em que o país actualmente se encontra, com uma dívida pesada, com um sector público que comporta muitos riscos de aumentar mais essa dívida e com a dependência excessiva do turismo, não podia ser mais preocupante, mesmo que a conjuntura externa não fosse tão complicada como a actual. A predisposição para emigrar de muitos jovens e não jovens é sinal que esse sentimento de preocupação com o futuro está generalizado. A questão que se coloca é se há suficiente motivação interna para uma abordagem crítica e construtiva do que tem sido feito e para se dar os passos em frente que se impõem. Ou se se deve ficar apenas pelos sobressaltos que periodicamente os relatórios de organizações internacionais podem provocar, como foi o de Julho do ano passado sobre o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde apresentado pelo Banco Mundial ou o actual apresentado na segunda feira passada.
O que o país não devia delapidar é o grande activo de ter uma população homogénea sem problemas de identidade e uma grande predisposição das famílias para investir na educação dos filhos. Há que, pelo contrário, reforçar ainda mais o sentido da cabo-verdianidade, investir compreensivamente, com o engajamento de toda a sociedade, na aquisição de competência linguística, científica e tecnológica e apostar na solidariedade como valor básico da comunidade. Está ao alcance de todos fazer esse comprometimento para vencer as extraordinárias dificuldades que se colocam ao país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1176 de 12 de Junho de 2024.
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