segunda-feira, julho 29, 2024

O estado dos partidos e da política

 Em vésperas do debate sobre o estado da Nação importa que também se reflicta sobre o estado dos partidos e da política e seu impacto na qualidade das políticas públicas. As democracias pressupõem a existência de partidos políticos.

E é assim porque se tem na base a ideia de que com liberdade e pluralismo as virtualidades de um debate no contraditório podem traduzir-se em conhecimento da realidade complexa do país e em acção governativa responsável dirigida para a consecução do interesse público. Também essencial é a existência de mais de um partido para se ter alternância na governação e os eleitores estarem na posição de escolher visões alternativas do futuro do país. Nesse sentido, a “boa saúde” dos partidos políticos é vital para as democracias.

Sem um bom desempenho dos partidos políticos, as promessas da democracia dificilmente são cumpridas e a crise em diferentes roupagens poderá instalar-se, aumentando o cinismo público e abrindo a porta a populismos demagógicos. A crise prevalecente na generalidade das democracias, expressa na forma de crise de representação, na deriva para posições iliberais, na normalização de posições extremas, nas guerras identitárias e culturais e na ascensão de actores políticos narcisísticos e anti-sistema, afecta destrutivamente os partidos e paradoxalmente é potenciada pela actuação dos próprios. A cavalgar e a aprofundar as crises das democracias estão “alegremente” os partidos políticos, mesmo que no desfecho final da crise, sejam eles também vítimas a procurar sobreviver num ambiente de mais autocracia e de menos liberdade, menos criatividade e mais seguidismo, menos capacidade de transformar o país e mais submissão aos ditames de quem ainda financia o país.

Por todo o mundo, neste ano de todas as eleições, o drama que reflecte essa crise aguda da democracia repete-se. Em alguns casos, como recentemente na França e na Índia ainda se vai driblando o que parecia desfecho certo de regressão no sistema democrático liberal. Nos Estados Unidos encontra-se tudo em aberto para o que poderá ser um grande ponto de viragem na relação desse país com o resto do mundo com consequências nefastas para a paz, para a prosperidade global das nações e para se enfrentar os desafios das alterações climáticas e da transição energética que se impõe.

Em Cabo Verde, os sinais de crise nos partidos de há muito que se fizeram sentir. Como praticamente nada foi feito num período relativamente longo de 2021-2024 sem confrontos eleitorais para corrigir tendências desestruturantes no seio das organizações partidárias, não será agora, em cima de um novo ciclo eleitoral, a iniciar com as eleições autárquicas de Novembro/Dezembro, que isso vai acontecer. É por causa disso, que mesmo com uma maioria parlamentar, não se conseguiu transmitir uma imagem de solidez na articulação entre o governo e a sua maioria que tivesse um efeito estabilizador do sistema e proporcionasse espaço para compromissos em questões essenciais. Iniciado o novo ciclo eleitoral, o resultado, de não se ter feito atempadamente mudanças nos partidos e no estilo das suas lideranças, será provavelmente de tornar ainda mais disfuncional o sistema democrático a começar pelo poder autárquico.

Na origem disso vão-se encontrar comportamentos facciosos e protagonismos individuais com características narcisísticas que cada vez mais fazem escola impulsionados pelas redes sociais e que tendem a normalizar-se dentro dos partidos. Como se viu nas últimas semanas, no drama vivido no seio do maior partido da oposição, tais tendências podem servir até para sacrificar ou cancelar dirigentes, militantes e as suas ideias, mas não se prestam para conseguir a unidade necessária para garantir, por exemplo, uma direcção parlamentar e evitar tendências autocráticas nas duas principais câmaras do país. Na sequência das novas eleições nos municípios e com o eventual realinhamento autárquico, outras situações semelhantes às das câmaras de S. Vicente e da Praia poderão aparecer. Não é de esperar que os partidos, no actual estádio de conflitualidade interna, venham a estar em posição de as resolver.

À medida que os problemas nos partidos vão-se aprofundando, podem transferir-se para as instituições e para o funcionamento do sistema provocando impasses e bloqueios. Já se viu como podem derramar-se sobre o parlamento afectando negativamente a qualidade do debate político, impedindo a eleição de órgãos externos à AN e diminuindo a eficácia da fiscalização do governo. Também essas omissões e desencontros no uso de competências constitucionais criam tensões entre órgãos de soberania como parece ter sido a questão das chamadas linhas vermelhas do presidente da república e outros “casos e casinhos” que amiudamente aparecem.

Aliás, é de notar que nunca antes durante as três décadas de democracia as tensões entre o PR e governo tiveram a publicidade de hoje. Governos de maioria absoluta não deixam muito espaço para o PR ganhar o hábito de “bordejar” os limites das competências constitucionalmente estabelecidas e mesmo ultrapassá-las. O facto de só ter acontecido nos dois mandatos do governo de Ulisses Correia e Silva e com diferentes PRs pode querer sinalizar quem não se está a guardar bem no exercício das suas funções.

As situações anómalas criadas não beneficiam o funcionamento do sistema político porque entre outros factores abrem portas para tentações. Tanto os partidos de oposição podem procurar instrumentalizar as intervenções do PR como, pior ainda, na proximidade das eleições, elas podem ser vistas como orientadoras da oposição. Evidentemente que com tais posicionamentos os partidos subalternizam-se ou são subalternizadas deixando de ser os protagonistas principais no processo que leva a mudanças de governo para se apresentarem como uma espécie de clique à procura de poder a todo o custo.

Não menos prejudicada é a preocupação com a produção de políticas para o presente e futuro do país particularmente quando as dificuldades se acumulam em certos sectores-chaves como (transportes, educação, saúde). É preciso uma busca conjunta que conduza ao debate profícuo entre as partes e a entendimentos estratégicos para as ultrapassar. Busca essa que claramente é prejudicada por disfunções nos partidos.

No caso do partido da maioria, a gestão delas leva a uma espécie de imobilismo no governo que anos seguidos continua praticamente o mesmo independentemente se está ou não a enfrentar com sucesso os desafios. Não espanta que as projecções do FMI para o crescimento da economia para os próximos anos até 2029 continuam a situar-se à volta de 4,5%. Por seu lado, a oposição também a nivelar-se por baixo na gestão das ambições de curto prazo de indivíduos e grupos não consegue ser muito diferente em termos de substância. Junta-se à caravana que tem soluções simples para problemas complexos, que toma como ideal fazer de todos um empreendedor e que não se furta à perspectiva de ter mais apertadas as malhas da dependência. Afinal, é aí o campo privilegiado para se fazer os jogos do poder.

O ano parlamentar vai terminar na próxima semana e claramente que os partidos não se prepararam para a produção de políticas públicas nem para a formação de dirigentes para os desafios que o novo ciclo eleitoral vai trazer. O mundo, porém, está a mudar rapidamente e não basta em relação às políticas seguir simplesmente a agenda das organizações internacionais. Nem tão-pouco para as lideranças ficarem pelo mais ambicioso, ou o mais narcisista, ou o mais fechado em si próprio. Seguindo exemplos recentes de outras democracias há que inflectir a tendência para a degradação da política e dos partidos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1182 de 24 de Julho de 2024.

segunda-feira, julho 22, 2024

Entendimento precisa-se para melhor gestão do Sector Empresarial do Estado

 

No parlamento na semana passada, o VPM e ministro das Finanças em resposta à pergunta dos deputados sobre os objectivos pretendidos com uma melhor gestão do Sector Empresarial do Estado (SEE), pôs enfase na necessidade de reduzir o risco para o orçamento do Estado e no papel de acelerador da diversificação da economia e do crescimento económico. A oposição, em outro momento da mesma sessão parlamentar, chamou a atenção para o que líder parlamentar do PAICV chamou de elevado risco representado por pelo menos seis empresas públicas de acordo com um quadro da UASE.

Em debate na Assembleia Nacional estava uma proposta de alteração na governança do SEE com a criação de uma nova entidade de gestão de participações do Estado na perspectiva de se obter uma melhoria na eficiência do funcionamento das empresas estatais. Quer-se com um novo modelo de gestão que as empresas deixem de ser sugadores dos recursos públicos e de passarem a contribuir de forma mais efectiva para a melhoria do ambiente de negócios, para diminuir custos de factores como água e electricidade e outros custos transaccionais ligados aos transportes e à conectividade interilhas e entre o país e o mundo. A melhoria da gestão das empresas que constituem o SEE tem sido uma recomendação permanente de organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial e também do GAO.

A iniciativa legislativa do governo visa aparentemente dar uma resposta à essa insistência das organizações internacionais. Espera-se é que não se fique por aí e haja consequências práticas com real impacto na redução dos riscos, na melhoria dos serviços prestados e na facilitação da iniciativa privada em vários sectores. O cepticismo em relação a isso revelado nas intervenções da oposição tem a ver com as enormes dificuldades em realmente mudar a situação no SEE como se pode constatar de outras iniciativas do actual governo e dos anteriores para melhoria da gestão dessas empresas que não tiveram o sucesso esperado. O resultado em muitos casos viu-se na dívida pública acumulada, na excessiva exposição do Estado devido a garantias e avales e nas dificuldades acrescidas em novos custos e em maiores resistências às reformas que globalmente tornam os problemas de certos sectores públicos quase intratáveis.

Pode-se considerar que o cepticismo é transversal. Hoje é expresso pela actual oposição que já foi governo e amanhã poderá ser a atitude assumida por uma diferente oposição. As dificuldades em determinar o papel do Estado e em particular do SEE num pequeno país arquipélago de parcos recursos e reduzida população e com mercado fragmentado por nove ilhas são enormes. Também não ajuda o facto de não existir entendimento quanto à natureza das dificuldades e em como as ultrapassar. E não poucas vezes essas dificuldades tornaram-se maiores por razões ideológicas, por insistência em mitos diversos e por imposição de soluções pela cooperação internacional.

Assim, já se teve a estatização da economia com um SEE dominante nos primeiros quinze anos e não resultou. A estagnação económica que acabou por produzir juntamente com a escassez e falta de diversidade de produtos e o desincentivo à iniciativa empresarial e aos investimentos serviram de motor para a mudança para uma economia de mercado que veio a verificar-se nos anos noventa. Seguiu-se a liberalização económica, atracção de investimento directo estrageiro e privatizações que aumentaram extraordinariamente o potencial de crescimento do país e levaram a taxas elevadas do PIB.

Desde a crise financeira de 2008 que se nota que, com o pouco crescimento da produtividade e a diminuição da competitividade do país, não obstante o grande crescimento do fluxo turístico, não tem sido possível elevar de forma sustentada as taxas de crescimento do PIB a mais de 7%, a taxa que consensualmente se acha necessário para o país prosperar, criar emprego e garantir rendimento às pessoas. Entretanto, a dívida pública vem aumentando e depois do salto devido à Covid-19, ainda não regressou, segundo os últimos relatórios do FMI, aos níveis pré-pandémicos de 2019. Tem sido feito um esforço de consolidação orçamental e conseguiu-se um saldo primário positivo em 2023, mas segundo o FMI foi com o aumento das receitas fiscais, baixa execução do orçamento de investimentos e pagamento pontual do fee da concessão dos aeroportos. A contenção efectiva de riscos orçamentais e a obtenção de saldos primários positivos terá que passar necessariamente por uma melhor gestão e adequação do SEE.

Não havendo, porém, entendimento quanto à natureza das dificuldades que as empresas estatais enfrentam e quanto ao papel ou função que podem desempenhar, fica tudo muito difícil. Há quem pense que o mercado de per si pode resolver. Viu-se nos transportes marítimos em como de um concurso público e da procura de navios novos se chegou a um concessionário, a navios sob leasing e à subsidiação expressiva. Acontece algo similar nos transportes aéreos e noutros sectores como água e energia. De facto, o mercado do país não é realmente unificado, em vários sectores o mercado é imperfeito e noutros há falhas de mercado. Globalmente há um problema de escala que cria ineficiências graves com os custos correspondentes e ineficácias na prestação de serviços.

Claramente que a iniciativa privada e o empresariado público devem poder se conjugar para obter os melhores resultados no processo de criação de riqueza no país. Para isso é fundamental que haja um esforço dirigido do Estado para conseguir uma gestão altamente qualificada e competente para o sector público. Uma política de atracção e formação de quadros seguindo critérios meritocráticos seria o desejável. É o que Singapura fez, mas que no ambiente de crispação política que se vive em Cabo Verde dificilmente se conseguiria, particularmente quando cada vez mais a lógica da militância partidária orienta-se pela procura e disponibilização de lugares no Estado.

Porém, sem gestão competente do SEE não há como fazê-lo cumprir os objectivos de contenção do risco e de acelerador. Pode-se avançar com mudanças no modelo de governança, mas dificilmente se vai criar cultura organizacional adequada e ganhar competência executiva. De facto, nomeações determinadas pelo jogo político-partidário podem acabar por distorcer os propósitos de gestão. Nota-se, por exemplo, como nas empresas a colegialidade dos órgãos de administração é enfraquecida com o empoderamento e voto de qualidade dos PCAs. Também a relação entre governantes, entidades reguladoras independentes e as empresas estatais pode ser condicionada pela excessiva centralização dos poderes de nomeação e de tutela num único membro do governo, o que claramente não favorece o ambiente de negócios propício a investimentos e à actividade empresarial. Por outro lado, privatizações por si só não vão resolver o problema, como já se sabe dos fracassos passados.

Cepticismo de hoje em relação a melhorias na gestão do SEE será o mesmo de amanhã, como já foi o de ontem, se não se assumir uma outra atitude. É preciso que haja um entendimento geral quanto à necessidade fulcral de se ter uma administração pública e um SEE competentes. É fundamental para desenvolver um país. A par com uma educação de excelência foi a opção ganhadora de Singapura. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.

sexta-feira, julho 12, 2024

Traçar linhas vermelhas, uma prática potencialmente perigosa

 O presidente da república no seu discurso do 5 de Julho fez um apelo à união e foi peremptório ao dizer que “face à turbulência do mundo actual e à velocidade das mudanças, só juntos conseguiremos manter este Cabo Verde de todos nós na rota do desenvolvimento, da modernidade”. É um apelo esperado considerando que o PR é constitucionalmente o garante da unidade da nação e do Estado. Infelizmente não é a imagem que actualmente projecta no país e na sociedade.

Gira demasiada controvérsia à volta da relação do PR com os outros órgãos de soberania. Em causa na maior dos casos está o exercício das competências respectivas no quadro do princípio da separação dos poderes. Para quem tem funções de vigiar o cumprimento da Constituição e, enquanto tal, fazer o papel de árbitro e moderador, a introdução de agendas próprias num estilo activista e populista não augura bons resultados. Comprometer-se, por exemplo, com a promoção do legado histórico da nossa jovem Nação num registo indistinguível daquele que suportou o regime claramente divisivo de partido único (é só ouvir as canções de intervenção dos tempos da independência) não se coaduna com o apelo de união lançado pelo PR

Tão-pouco a prática de estabelecimento de “linhas vermelhas” vai ajudar no desenvolvimento do diálogo indispensável para se ter convergência na realização dos desígnios nacionais. Quando se pensava que as competências dos órgãos de soberania estão plasmadas na Constituição e não podiam ser aumentadas ou diminuídas, o país é surpreendido com novas regras. Em Portugal, uma linha vermelha ad hoc compeliu o presidente da república a dissolver o parlamento na sequência da demissão do primeiro-ministro mesmo tendo o partido no governo uma maioria parlamentar confortável. As consequências viram-se na instabilidade governativa e na reformulação do espectro político com ganhos para os partidos radicais e extremistas.

Em Cabo Verde, ficou-se a conhecer, via um comunicado da presidência da república, a existência de linhas vermelhas para a nomeação dos chamados embaixadores políticos. Isso na sequência de revelações de propostas do governo que receberam negas do PR e que depois serviram de material nas lutas partidárias e intrapartidárias para se sugerir que alguém terá escorregado numa casca de banana ou levado para o outro lado partidário a troco de cargos.

A questão dos embaixadores políticos é pontualmente agitada na praça pública e sempre excita paixões em certos sectores. Depois dos anos noventa só voltou em força a partir de 2016. De qualquer forma não deixa de ser curioso que isso aconteça quando se sabe que a grande maioria dos embaixadores nomeados principalmente para os postos diplomáticos mais importantes nos 49 anos de independência pode ser vista como enquadrada nessa categoria.

De facto, tirando de lado os primeiros quinze anos de regime de partido único em que todas as nomeações eram partidárias, mesmo as mais recentes, já do século XXI, tiveram um forte viés político. Em retrospectiva as linhas vermelhas agora proclamadas impediriam as nomeações de aposentados e de personalidades do regime anterior que se verificaram na primeira década deste século. Também com os actuais “critérios”, ex-ministros e deputados não seriam nomeados embaixadores porquanto, como membros do governo ou do parlamento, estiveram “no furacão da política”. Muito menos deveriam ser propostos os diplomatas de carreira, que imediatamente antes serviram como ministros ou conselheiros de membros do governo e logo de seguida como embaixadores, por duas razões: uma por terem estado no tal furacão da política e sofrerem a devida contaminação; e outra para não deixar a impressão que, pela nomeação na sequência de uma passagem pelo governo, terão sido privilegiados na carreira diplomática em relação aos outros.

Nos primeiros quinze anos deste século nove diplomatas serviram no governo e de seguida foram nomeados embaixadores. E há repetentes. Pela proximidade dessas práticas não se pode considerar que, com o trazer a público as linhas vermelhas, se está a agir por convicção. Mais parece um pretexto para mais um episódio de guerrilha institucional. É verdade que o país teria tudo a ganhar com uma classe profissional de diplomatas de carreira altamente qualificada e pronta a implementar a política externa de qualquer governo independentemente da cor política. Mas não se pode é ignorar a história institucional do que actualmente existe, as distorções a que foi sujeito e a cultura organizacional que gerou. E não é certamente com o excitar do espírito corporativista que se vai ultrapassar a actual situação.

Aliás, se há algo que se devia evitar é a transformação das reivindicações, muitas vezes justas das classes profissionais da administração pública, em armas de arremesso político. A convergência de interesses à qual o PR se referiu no seu discurso do 5 de Julho deve ter como um dos focos as reformas na Administração Pública indispensáveis para se conseguir baixar os custos de contexto, aumentar a produtividade e a competitividade do país. Isso só será possível se se puder evitar que o partidarismo incite ao entrincheiramento de interesses corporativos existentes que já dificultam as reformas essenciais e podem vir a ser tentados a manter refém os serviços públicos com anúncios quase permanente de greves.

Nesse sentido, há que restaurar o diálogo essencial para a democracia estar em posição de mostrar as suas virtualidades na procura de soluções com abertura a negociações e espírito compromissório. Para isso, porém, vai se ter que reunir consensos sobre as regras do jogo democrático, o sistema de governo que se tem no país e sobre as funções e competências de todos os órgãos num quadro que garanta os checks and balance, a prestação de contas e a responsabilização política. Também há que procurar manter o consenso sobre a necessidade de manter em devido controlo as pulsões populistas que, como se tem visto em vários países, são alimentadas pelo excitar de sentimentos com base na intolerância e no ressentimento e são protagonizadas por personalidades narcisísticas com tendências autoritárias e iliberais.

A experiência recente de alguns países democráticos demonstra quão frágil é a democracia se faltar o sentido de decência, se se limitar a liberdade de expressão e o pluralismo com cancelamentos do Outro e se permitir que actores políticos atropelem as regras democráticas e a própria lei e exibam uma aura de impunidade. A insistência em legados históricos intrinsecamente divisivos e exclusivos que se referenciam agora na propalada “hora zero da república” ao mais alto nível do Estado não incentivam à união que o país tanto precisa, não obstante os apelos em sentido contrário que se possam fazer em simultâneo. O actual panorama nacional demonstra isso claramente.

A possibilidade de conseguir a união que o país precisa só pode vir do aprofundamento do sentido de pertença à república como está definida na Constituição de 1992, porque tem como pressupostos a liberdade, a dignidade e a possibilidade de livre escolha dos governantes. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1180 de 10 de Julho de 2024.

segunda-feira, julho 08, 2024

Pela continuidade da construção da independência

 

O 5 de Julho, Dia da Independência, aproxima-se e é já na sexta-feira. Em antecipação já está em marcha o que se tem feito ao longo dos 49 anos de país independente: aproveitar a data não para reforçar a unidade da comunidade político-nacional, mas fundamentalmente para prestar homenagem aos autoproclamados libertadores e à ditadura de quinze anos a que estão intrinsecamente ligados.É só ouvir os discursos proferidos na sessão solene da Assembleia Nacional por altura das comemorações para se perceber as consequências disso.

Anualmente, no 5 de Julho, ao invés de se afirmar a unidade da nação indispensável para enfrentar os grandes desafios do país, cavam-se mais as divisões no seu seio. Nem os 33 anos de democracia conseguiram frear o impulso de considerar alguns “os melhores filhos” ou “a geração mais moral” e relegar os outros para uma postura de eterna gratidão para com o “bem maior” que é a independência. Tende-se a reproduzir com nuances a divisão original professada por Amílcar Cabral de que o povo é todo aquele que está com o partido e a população é o resto.

No preâmbulo do decreto presidencial de condecoração da OMS publicado na semana passada encontra-se uma das variações dessa divisão. No documento contrapõem-se os “questionamentos dos filhos da terra” quanto à viabilidade do país com a “postura audaciosa dos dirigentes” de lançar mão da solidariedade internacional na procura de afirmação do Estado. Como se ao forçar uma unidade com a Guiné não se estaria também a mostrar preocupação com a viabilidade, se não do país, pelo menos do regime que pretendiam instalar. A insistência em reproduzir fracturas no tecido da nação continua a ser uma forma de impedir que a independência realmente represente a autodeterminação que se quer de uma colectividade nacional suportada na cidadania plena com direitos fundamentais garantidos e capacidade livre e plural de escolher governos e governantes.

No preâmbulo de um outro decreto presidencial de condecoração de artistas e conjuntos de música de intervenção nos tempos da independência nacional constata-se que pré-existia a “determinação de um povo em ser dono e senhor do seu destino”. Também acrescenta que nas canções da época se reconhecia o desejo do povo em abrir “nos camin pa flicidad” e em “gritá nos liberdad”. O que no citado preâmbulo não se encontra é que nos primeiros quinze anos pós-independência não se conseguiu liberdade, nem as pessoas viram-se com opções próprias no seu caminho para a felicidade. Ou seja, a expectativa do que seria a independência não se realizou.

Sendo os decretos presidenciais de 26 e 27 de Junho de 2024 em que a ordem constitucional referencia-se pelos princípios e valores da liberdade e dignidade humana e assenta na vontade popular, certamente que se está pela via das condecorações a reconhecer que o que foi então cantado encontra-se agora mais próxima da realidade. A comemoração da independência é a celebração de tudo quanto a independência representa de autonomia, de liberdade dos indivíduos e do exercício do poder no estrito respeito pela Constituição e pelas leis democráticas. Não pode resumir-se à glorificação de um momento no passado que significou muito pouco para a liberdade e para a felicidade das pessoas.

Nem mesmo significou total soberania no sentido estrito de independência do Estado. A transferência de poder que aconteceu no dia 5 de Julho de 1975 foi das autoridades portuguesas para o PAIGC, um partido que já governava um outro país, a Guiné-Bissau. O Estado de Cabo Verde nasceu já comprometido com uma união com a Guiné-Bissau a ser formalizada no futuro como se pode ver no Texto da Proclamação da Independência e no nº 2 do artigo 2º da LOPE que estabelece uma comissão presidida pelo presidente da Assembleia Nacional Popular para elaborar “um projecto de Constituição da Associação dos dois Estados”. Na prática a união era real porque eram dirigidos por um único partido.

Só que isso colocava logo um problema de como seria o processo decisório nos órgãos superiores do PAIGC em relação a cada Estado considerando a sua composição binacional. No Conselho Superior de Luta de entre 85 membros só 13 eram cabo-verdianos e no Comité Executivo de Luta havia cinco cabo-verdianos num total de 25 membros. A desproporção era grande e não deixava de afectar Cabo Verde considerando a importância decisional hierárquica dos órgãos do PAIGC nas decisões do Estado como está evidenciado no Boletim Oficial de 5 de Julho de 1975. No sumário desse BO vem primeiro a Declaração do Conselho Superior de Luta do PAIGC de 25 de Junho seguido do Texto da Proclamação da Independência. Só depois é que o BO traz a Lei de Organização Política do Estado (LOPE) aprovada pela Assembleia Nacional Popular e finalmente diplomas da Presidência da República e do Governo. Para aprovação da bandeira a ser adoptada no 5 de Julho uma delegação cabo-verdiana teve que se deslocar a Bissau para conseguir a concordância do secretário-geral adjunto e presidente da Guiné, Luís Cabral.

Claramente que a independência, na forma de passagem de poder para o PAIGC como se verificou, não podia ser completa. Da dependência de Portugal passou para uma espécie de soberania compartilhada com a Guiné através do PAIGC, o qual é apresentado no Texto da Proclamação da Independência como “expressão da vontade soberana do povo na Guiné e em Cabo Verde” e força dirigente da sociedade e do Estado. A reforçar esse estatuto ainda no mesmo Texto se considera que as forças armadas revolucionárias do povo (FARP) são o braço armado do partido e não uma instituição do Estado como seria de esperar.

Neste particular, compreende-se por que sempre em momentos de tensão vividos nos anos entre 1975/80 se notava a presença de governantes guineenses das áreas de Segurança e Defesa em Cabo Verde. Aconteceu em 1977 nos dias logo após as prisões em S. Vicente e Santo Antão e outra vez em 1979 na sequência das dissidências no seio do PAIGC. Neste último caso, cinco dias depois do choque interno no PAIGC o então ministro da defesa da Guiné-Bissau, logo à chegada à Praia, anunciou exercícios militares das FARP para o mês de Maio. Depois do golpe de Estado na Guiné, o então primeiro-ministro Pedro Pires veio explicar que afinal a unidade com a Guiné era uma questão de defesa e segurança interna de Cabo Verde. Ou seja, a ligação com a Guiné tinha a função primeira de garantir uma retaguarda enquanto o regime criava raízes sólidas em Cabo Verde.

Com o fim do projecto da unidade depois do golpe na Guiné, Cabo Verde recuperou parte da sua soberania como Estado independente, mas não ainda como uma república soberana. Continuava a ser governado por um partido com a mesma postura ideológica de negação da autodeterminação, ou seja, da capacidade autónoma de decisão quanto aos destinos da colectividade nacional. Isso só viria a acontecer depois do 13 de Janeiro e com a Constituição de 1992.

No 5 de Julho é a independência completa e total que deve ser celebrada. Em particular, porque é fundamental criar o espírito de unidade da comunidade nacional para que, para além da independência política, se continuar focado em construir a independência socio-económica e também a independência cultural que o país tanto precisa. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.