O 5 de Julho, Dia da Independência, aproxima-se e é já na sexta-feira. Em antecipação já está em marcha o que se tem feito ao longo dos 49 anos de país independente: aproveitar a data não para reforçar a unidade da comunidade político-nacional, mas fundamentalmente para prestar homenagem aos autoproclamados libertadores e à ditadura de quinze anos a que estão intrinsecamente ligados.É só ouvir os discursos proferidos na sessão solene da Assembleia Nacional por altura das comemorações para se perceber as consequências disso.
Anualmente, no 5 de Julho, ao invés de se afirmar a unidade da nação indispensável para enfrentar os grandes desafios do país, cavam-se mais as divisões no seu seio. Nem os 33 anos de democracia conseguiram frear o impulso de considerar alguns “os melhores filhos” ou “a geração mais moral” e relegar os outros para uma postura de eterna gratidão para com o “bem maior” que é a independência. Tende-se a reproduzir com nuances a divisão original professada por Amílcar Cabral de que o povo é todo aquele que está com o partido e a população é o resto.
No preâmbulo do decreto presidencial de condecoração da OMS publicado na semana passada encontra-se uma das variações dessa divisão. No documento contrapõem-se os “questionamentos dos filhos da terra” quanto à viabilidade do país com a “postura audaciosa dos dirigentes” de lançar mão da solidariedade internacional na procura de afirmação do Estado. Como se ao forçar uma unidade com a Guiné não se estaria também a mostrar preocupação com a viabilidade, se não do país, pelo menos do regime que pretendiam instalar. A insistência em reproduzir fracturas no tecido da nação continua a ser uma forma de impedir que a independência realmente represente a autodeterminação que se quer de uma colectividade nacional suportada na cidadania plena com direitos fundamentais garantidos e capacidade livre e plural de escolher governos e governantes.
No preâmbulo de um outro decreto presidencial de condecoração de artistas e conjuntos de música de intervenção nos tempos da independência nacional constata-se que pré-existia a “determinação de um povo em ser dono e senhor do seu destino”. Também acrescenta que nas canções da época se reconhecia o desejo do povo em abrir “nos camin pa flicidad” e em “gritá nos liberdad”. O que no citado preâmbulo não se encontra é que nos primeiros quinze anos pós-independência não se conseguiu liberdade, nem as pessoas viram-se com opções próprias no seu caminho para a felicidade. Ou seja, a expectativa do que seria a independência não se realizou.
Sendo os decretos presidenciais de 26 e 27 de Junho de 2024 em que a ordem constitucional referencia-se pelos princípios e valores da liberdade e dignidade humana e assenta na vontade popular, certamente que se está pela via das condecorações a reconhecer que o que foi então cantado encontra-se agora mais próxima da realidade. A comemoração da independência é a celebração de tudo quanto a independência representa de autonomia, de liberdade dos indivíduos e do exercício do poder no estrito respeito pela Constituição e pelas leis democráticas. Não pode resumir-se à glorificação de um momento no passado que significou muito pouco para a liberdade e para a felicidade das pessoas.
Nem mesmo significou total soberania no sentido estrito de independência do Estado. A transferência de poder que aconteceu no dia 5 de Julho de 1975 foi das autoridades portuguesas para o PAIGC, um partido que já governava um outro país, a Guiné-Bissau. O Estado de Cabo Verde nasceu já comprometido com uma união com a Guiné-Bissau a ser formalizada no futuro como se pode ver no Texto da Proclamação da Independência e no nº 2 do artigo 2º da LOPE que estabelece uma comissão presidida pelo presidente da Assembleia Nacional Popular para elaborar “um projecto de Constituição da Associação dos dois Estados”. Na prática a união era real porque eram dirigidos por um único partido.
Só que isso colocava logo um problema de como seria o processo decisório nos órgãos superiores do PAIGC em relação a cada Estado considerando a sua composição binacional. No Conselho Superior de Luta de entre 85 membros só 13 eram cabo-verdianos e no Comité Executivo de Luta havia cinco cabo-verdianos num total de 25 membros. A desproporção era grande e não deixava de afectar Cabo Verde considerando a importância decisional hierárquica dos órgãos do PAIGC nas decisões do Estado como está evidenciado no Boletim Oficial de 5 de Julho de 1975. No sumário desse BO vem primeiro a Declaração do Conselho Superior de Luta do PAIGC de 25 de Junho seguido do Texto da Proclamação da Independência. Só depois é que o BO traz a Lei de Organização Política do Estado (LOPE) aprovada pela Assembleia Nacional Popular e finalmente diplomas da Presidência da República e do Governo. Para aprovação da bandeira a ser adoptada no 5 de Julho uma delegação cabo-verdiana teve que se deslocar a Bissau para conseguir a concordância do secretário-geral adjunto e presidente da Guiné, Luís Cabral.
Claramente que a independência, na forma de passagem de poder para o PAIGC como se verificou, não podia ser completa. Da dependência de Portugal passou para uma espécie de soberania compartilhada com a Guiné através do PAIGC, o qual é apresentado no Texto da Proclamação da Independência como “expressão da vontade soberana do povo na Guiné e em Cabo Verde” e força dirigente da sociedade e do Estado. A reforçar esse estatuto ainda no mesmo Texto se considera que as forças armadas revolucionárias do povo (FARP) são o braço armado do partido e não uma instituição do Estado como seria de esperar.
Neste particular, compreende-se por que sempre em momentos de tensão vividos nos anos entre 1975/80 se notava a presença de governantes guineenses das áreas de Segurança e Defesa em Cabo Verde. Aconteceu em 1977 nos dias logo após as prisões em S. Vicente e Santo Antão e outra vez em 1979 na sequência das dissidências no seio do PAIGC. Neste último caso, cinco dias depois do choque interno no PAIGC o então ministro da defesa da Guiné-Bissau, logo à chegada à Praia, anunciou exercícios militares das FARP para o mês de Maio. Depois do golpe de Estado na Guiné, o então primeiro-ministro Pedro Pires veio explicar que afinal a unidade com a Guiné era uma questão de defesa e segurança interna de Cabo Verde. Ou seja, a ligação com a Guiné tinha a função primeira de garantir uma retaguarda enquanto o regime criava raízes sólidas em Cabo Verde.
Com o fim do projecto da unidade depois do golpe na Guiné, Cabo Verde recuperou parte da sua soberania como Estado independente, mas não ainda como uma república soberana. Continuava a ser governado por um partido com a mesma postura ideológica de negação da autodeterminação, ou seja, da capacidade autónoma de decisão quanto aos destinos da colectividade nacional. Isso só viria a acontecer depois do 13 de Janeiro e com a Constituição de 1992.
No 5 de Julho é a independência completa e total que deve ser celebrada. Em particular, porque é fundamental criar o espírito de unidade da comunidade nacional para que, para além da independência política, se continuar focado em construir a independência socio-económica e também a independência cultural que o país tanto precisa.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.
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