O presidente da república no seu discurso do 5 de Julho fez um apelo à união e foi peremptório ao dizer que “face à turbulência do mundo actual e à velocidade das mudanças, só juntos conseguiremos manter este Cabo Verde de todos nós na rota do desenvolvimento, da modernidade”. É um apelo esperado considerando que o PR é constitucionalmente o garante da unidade da nação e do Estado. Infelizmente não é a imagem que actualmente projecta no país e na sociedade.
Gira demasiada controvérsia à volta da relação do PR com os outros órgãos de soberania. Em causa na maior dos casos está o exercício das competências respectivas no quadro do princípio da separação dos poderes. Para quem tem funções de vigiar o cumprimento da Constituição e, enquanto tal, fazer o papel de árbitro e moderador, a introdução de agendas próprias num estilo activista e populista não augura bons resultados. Comprometer-se, por exemplo, com a promoção do legado histórico da nossa jovem Nação num registo indistinguível daquele que suportou o regime claramente divisivo de partido único (é só ouvir as canções de intervenção dos tempos da independência) não se coaduna com o apelo de união lançado pelo PR
Tão-pouco a prática de estabelecimento de “linhas vermelhas” vai ajudar no desenvolvimento do diálogo indispensável para se ter convergência na realização dos desígnios nacionais. Quando se pensava que as competências dos órgãos de soberania estão plasmadas na Constituição e não podiam ser aumentadas ou diminuídas, o país é surpreendido com novas regras. Em Portugal, uma linha vermelha ad hoc compeliu o presidente da república a dissolver o parlamento na sequência da demissão do primeiro-ministro mesmo tendo o partido no governo uma maioria parlamentar confortável. As consequências viram-se na instabilidade governativa e na reformulação do espectro político com ganhos para os partidos radicais e extremistas.
Em Cabo Verde, ficou-se a conhecer, via um comunicado da presidência da república, a existência de linhas vermelhas para a nomeação dos chamados embaixadores políticos. Isso na sequência de revelações de propostas do governo que receberam negas do PR e que depois serviram de material nas lutas partidárias e intrapartidárias para se sugerir que alguém terá escorregado numa casca de banana ou levado para o outro lado partidário a troco de cargos.
A questão dos embaixadores políticos é pontualmente agitada na praça pública e sempre excita paixões em certos sectores. Depois dos anos noventa só voltou em força a partir de 2016. De qualquer forma não deixa de ser curioso que isso aconteça quando se sabe que a grande maioria dos embaixadores nomeados principalmente para os postos diplomáticos mais importantes nos 49 anos de independência pode ser vista como enquadrada nessa categoria.
De facto, tirando de lado os primeiros quinze anos de regime de partido único em que todas as nomeações eram partidárias, mesmo as mais recentes, já do século XXI, tiveram um forte viés político. Em retrospectiva as linhas vermelhas agora proclamadas impediriam as nomeações de aposentados e de personalidades do regime anterior que se verificaram na primeira década deste século. Também com os actuais “critérios”, ex-ministros e deputados não seriam nomeados embaixadores porquanto, como membros do governo ou do parlamento, estiveram “no furacão da política”. Muito menos deveriam ser propostos os diplomatas de carreira, que imediatamente antes serviram como ministros ou conselheiros de membros do governo e logo de seguida como embaixadores, por duas razões: uma por terem estado no tal furacão da política e sofrerem a devida contaminação; e outra para não deixar a impressão que, pela nomeação na sequência de uma passagem pelo governo, terão sido privilegiados na carreira diplomática em relação aos outros.
Nos primeiros quinze anos deste século nove diplomatas serviram no governo e de seguida foram nomeados embaixadores. E há repetentes. Pela proximidade dessas práticas não se pode considerar que, com o trazer a público as linhas vermelhas, se está a agir por convicção. Mais parece um pretexto para mais um episódio de guerrilha institucional. É verdade que o país teria tudo a ganhar com uma classe profissional de diplomatas de carreira altamente qualificada e pronta a implementar a política externa de qualquer governo independentemente da cor política. Mas não se pode é ignorar a história institucional do que actualmente existe, as distorções a que foi sujeito e a cultura organizacional que gerou. E não é certamente com o excitar do espírito corporativista que se vai ultrapassar a actual situação.
Aliás, se há algo que se devia evitar é a transformação das reivindicações, muitas vezes justas das classes profissionais da administração pública, em armas de arremesso político. A convergência de interesses à qual o PR se referiu no seu discurso do 5 de Julho deve ter como um dos focos as reformas na Administração Pública indispensáveis para se conseguir baixar os custos de contexto, aumentar a produtividade e a competitividade do país. Isso só será possível se se puder evitar que o partidarismo incite ao entrincheiramento de interesses corporativos existentes que já dificultam as reformas essenciais e podem vir a ser tentados a manter refém os serviços públicos com anúncios quase permanente de greves.
Nesse sentido, há que restaurar o diálogo essencial para a democracia estar em posição de mostrar as suas virtualidades na procura de soluções com abertura a negociações e espírito compromissório. Para isso, porém, vai se ter que reunir consensos sobre as regras do jogo democrático, o sistema de governo que se tem no país e sobre as funções e competências de todos os órgãos num quadro que garanta os checks and balance, a prestação de contas e a responsabilização política. Também há que procurar manter o consenso sobre a necessidade de manter em devido controlo as pulsões populistas que, como se tem visto em vários países, são alimentadas pelo excitar de sentimentos com base na intolerância e no ressentimento e são protagonizadas por personalidades narcisísticas com tendências autoritárias e iliberais.
A experiência recente de alguns países democráticos demonstra quão frágil é a democracia se faltar o sentido de decência, se se limitar a liberdade de expressão e o pluralismo com cancelamentos do Outro e se permitir que actores políticos atropelem as regras democráticas e a própria lei e exibam uma aura de impunidade. A insistência em legados históricos intrinsecamente divisivos e exclusivos que se referenciam agora na propalada “hora zero da república” ao mais alto nível do Estado não incentivam à união que o país tanto precisa, não obstante os apelos em sentido contrário que se possam fazer em simultâneo. O actual panorama nacional demonstra isso claramente.
A possibilidade de conseguir a união que o país precisa só pode vir do aprofundamento do sentido de pertença à república como está definida na Constituição de 1992, porque tem como pressupostos a liberdade, a dignidade e a possibilidade de livre escolha dos governantes.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1180 de 10 de Julho de 2024.
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