segunda-feira, outubro 07, 2024

Por uma visão crítica da totalidade da trajectória histórica de Cabo Verde

 

Já se notam movimentações para dar o tom às comemorações no próximo ano dos 50 anos da independência nacional. Como é prática de outros aniversários do 5 de Julho de 1975 procura-se desde logo salientar o carácter heróico do feito para se proceder à tradicional exaltação dos auto- proclamados protagonistas. E com um sim antecipado à pergunta “se valeu a pena a independência”, faz-se por lhes assegurar gratidão eterna do povo e por colocar as opções tomadas acima de quaisquer críticas. Não é, porém, com sentimentalismos e posturas que limitam o livre pensamento e a possibilidade de equacionar o presente e projectar o futuro que melhor se vai servir o país. Pior ainda, quando são patentes os múltiplos obstáculos internos limitativos do desenvolvimento e se depara com a realidade actual do mundo a reconfigurar-se de forma imprevisível.

De facto, o que país mais precisa é de uma visão crítica da totalidade da sua trajectória histórica para poder vislumbrar saídas inovadoras e funcionais e também de uma unidade de vontade para agir, não atrapalhada por resquícios ideológicos datados e por mitos persistentes. Uma nova abordagem foi apresentada pelo professor doutor João Estêvão numa conferência na ilha do Sal onde se pode avaliar a performance sócio-económica de Cabo Verde no quadro de um estudo comparado dos pequenos estados insulares (SIDS). Claramente, Cabo Verde não ficou bem na fotografia com rendimento per capita e nível de desenvolvimento humano abaixo da média dos restantes membros e no grupo mais frágil conjuntamente com S. Tomé e Príncipe e Comores.

Indo mais a fundo para saber algumas das razões por que Cabo Verde teve um desenvolvimento que tanto desviou da média de outros países que ascenderam à independência praticamente na mesma altura, Maurícias em 1968, Seicheles em 1976, o facto de só se ter aberto a economia mais de 15 anos depois pesa bastante. A industrialização para exportação nas zonas económicas especiais das Maurícias já tinha avançado muito e a aposta no turismo nas Seicheles já dava frutos. Nessas ilhas não se fomentou hostilidade ao investimento directo estrangeiro nem se criaram constrangimentos à iniciativa privada. Também a aposta que fizeram na educação foi sólida, como, aliás, aconteceu nos países insulares mais desenvolvidos, em alguns casos a rivalizar com os melhores nos rankings internacionais. Não ficaram pela massificação de ensino, sem demonstrar grande preocupação com a qualidade.

A 14 de Julho do ano passado, o Banco Mundial publicou um memorando económico que veio lembrar que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008”; que a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década 2000 e para 1,2% na década de 2010, excluindo o ano 2020; que o potencial de crescimento da economia caiu de 6% na década de 1990 para 3,5% por cento após 2010. No memorando ainda ficou explícito que essa queda no potencial se deve a que a contribuição da produtividade (PFT) no crescimento na década 2010-19 foi de 1% quando na década anterior tinha sido de 51% devido às reformas estruturais dos anos noventa. Infelizmente, parece que essas chamadas de atenção do Banco Mundial não surtiram efeito. O discurso político não se alterou significativamente e as querelas partidárias continuaram fixadas nas mesmas temáticas.

Há quem aponte o bipartidarismo em Cabo Verde como a principal razão por que o país não consegue em matérias estruturais chegar aos consensos necessários para ter políticas coerentes e traçar objectivos e metas alcançáveis num horizonte temporal que atravessa vários governos. É verdade que vários estudos sugerem qua o sucesso das Maurícias e de Botswana, que os coloca no topo do ranking de desenvolvimento entre os países africanos, deve-se ao nível de consenso conseguido num quadro democrático entre as principais forças políticas ao longo de décadas. E o facto de em Cabo Verde isso não se verificar certamente que contribui para uma menor eficiência na utilização dos recursos, em particular dos recursos humanos, e para as políticas públicas não terem a desejada eficácia devido a resistências várias e à falta de continuidade na implementação das mesmas.

Claro que em certos sectores de opinião indicar o bipartidarismo como um obstáculo ao desenvolvimento é mais um argumento contra o que consideram ser uma democracia formal, o que anteriormente classificavam de democracia burguesa. Aliás, se se recuar no tempo vai-se notar que as críticas dirigidas aos partidos surgiram logo nos primórdios do pluripartidarismo, nos inícios dos anos noventa, vindas em primeiro lugar dos que nunca criticaram o Partido Único. Ainda hoje estão à procura de outros modelos de democracia, ou nas sociedades tradicionais, ou ainda no processo de escolha de representantes que lembram a Comuna de Paris e os sovietes na Rússia. Não se pode, porém, negar é que, no plano económico, em Cabo Verde, o crescimento só passou de lento a rápido com o advento da democracia e as reformas na economia.

Paradoxalmente o bipartidarismo poderá estar a prejudicar em maior grau o desenvolvimento não tanto no que incita à discordância, em matéria de políticas, mas no que, em termos da atitude da classe política, se revela de convergência no que toca a crenças e mitos arreigados sobre o país, cultura político-eleitoral e o papel do Estado. Acredita-se na ideia secular que se chovesse em Cabo Verde reinaria a felicidade e que o arquipélago tem importância estratégica permanente apesar dos resultados de políticas públicas e dos avultados recursos, dirigidos para mobilizar água e infraestruturar na perspectiva de potenciar a localização, terem ficado muito aquém do prometido. Fez-se da mobilização política em democracia uma corrida para enredar os eleitores em malhas de dependência, não obstante a apologia da autonomia das pessoas e os incentivos à iniciativa individual. A realidade do posicionamento do Estado no topo da proverbial “cadeia alimentar” não é contrariada e muito menos inflectida por todo o esforço de descentralização e de afirmação do poder local. A crença na importância da educação não é traduzida num engajamento efectivo a favor da qualidade do ensino e valorização do conhecimento.

Os partidos podem ter discurso político e até práticas de governação diferentes, mas o lastro que acrescentam em cada ciclo de governação, ao não conseguirem romper com o status quo, acaba por limitar a dinâmica de crescimento possível. Fica mais difícil fazer as reformas que são necessárias para aumentar a produtividade e competitividade enquanto o efeito das reformas estruturais iniciais vão-se dissipando com o passar de anos. Dar a volta a esta situação é fundamental. Reflectir de forma crítica e aberta sobre a trajectória de séculos deste país para a fazer completa e inteligível para todos, sem mitos nem tabus, constituiria um acto maior de celebração dos 50 anos e uma demonstração de patriotismo que cobriria todos de orgulho. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1192 de 2 de Outubro de 2024.

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