sexta-feira, outubro 10, 2008

Carácter em tempo de crise

Momentos de crise, e particularmente de crise generalizada como a que hoje o mundo se depara, são momentos de análise, de retrospecção e de contemplação interior de indivíduos, instituições e países. Avalia-se o carácter da Nação, a sua força interior e sua capacidade de reacção a mudanças inesperadas. Mas também, a sua energia, motivação e vontade de se adaptar a novos paradigmas de existência e de, criativamente, singrar e prosperar no mundo pós crise, que inevitavelmente se seguirá.

A meio da crise financeira que, de uma maneira ou outra, a todos afecta, as vulnerabilidades de Cabo Verde saltam à vista. O País depende essencialmente de fluxos externos, em forma de remessas de emigrantes, de ajuda externa e de investimento directo estrangeiro. Sem recursos naturais e com uma base de exportação de bens e serviços exígua, Cabo Verde precisa desses fluxos para se equilibrar em termos económico-financeiros.

A crise actual, pela a sua abrangência, interfere com todos os componentes do fluxo. As remessas dos emigrantes podem vir a diminuir com a travagem brusca e mesmo recessão das economias dos países hóspedes na Europa e na América. O investimento directo estrangeiro já está a sofrer com os fortes constrangimentos ao crédito. O volume de ajuda aos países menos desenvolvidos será provavelmente reponderado na situação actual em que os países doadores são confrontados com apertos orçamentais para fazer face ás novas responsabilidades. Têm que, por um lado, restaurar confiança perdida no sistema financeiro e, por outro, estimular a economia real com investimentos públicos, estímulos fiscais e apoios dirigidos a grupos vulneráveis.  

A actual crise poderá ser um toque de despertar para Cabo Verde. A acontecer, a Nação teria a oportunidade de avaliar se tem energia, estamina e vontade para prevalecer sobre as dificuldades. Se, em reacção aos sucessivos choques externos, a começar pelo choque dos anos 1999/2000 e passando pelo caso mais recente de alta do petróleo conjugado com o exacerbar dos preços dos cereais, soube renovar-se para enfrentar os tempos.

Se fez as reformas do Estado para o tornar mais eficiente na utilização dos recursos públicos e mais eficaz nas suas realizações. Se alterou no essencial a relação do Estado com a economia, deixando de ser agente de bloqueio para ser facilitador, regulador e  fornecedor de bens básicos como segurança, saúde, educação e infraestruturas estratégicas. Se mudou fundamentalmente a relação do caboverdiano com o Estado, passando o Estado a servir o direito à liberdade e à felicidade dos cidadãos em vez de se servir do Poder para os manter subservientes e gratos. Se, no processo, emergiu uma nova visão de desenvolvimento e novos valores e atitudes e uma nova ética de trabalho que reconhece no aumento da produtividade dos indivíduos, das empresas e do país em geral a base real da prosperidade e riqueza das nações.

Revelações recentes mostram que se ficou muito aquém desses objectivos.

É exemplo disso o que o Sr. Primeiro-Ministro afirmou no debate promovido pelo jornal “Asemana”. Foi peremptório em dizer que qualquer sondagem dirigida a jovens universitários em Cabo Verde revelaria que 95% quer entrar para o Estado. Contrariamente ao que, segundo ele, se verificaria com jovens americanos. Em igual percentagem, pretenderiam todos criar a sua empresa e construir a sua oportunidade.

Quando o Primeiro Ministro, no seu oitavo ano de governação, deixa escapar essa sua crença ou constatação, que legitimamente se poderá interpretar como uma confissão de falhanço de políticas, é de se perguntar o que é que afinal inspira, motiva e move o caboverdiano. Será possível que, trinta e três anos após a independência, o sonho caboverdiano continue a ser a função pública? Que seja o mesmo sonho daquele que, décadas atrás, tirando a emigração, só vislumbrava escape a uma existência de incertezas e de secas devastadoras, no ingresso seu ou dos filhos no Estado?

Se assim é, então, como conciliar esse sonho com a prosperidade que já põe o rendimento per capita dos caboverdianos acima dos dois mil dólares? Certamente que riqueza nacional necessária para isso não foi criada por pessoas a realizar o sonho de serem funcionários. Teve que vir de fora. E são esses recursos exteriores que expandiram as fileiras do Estado e ainda alimentam o sonho do funcionalismo público.

Há vinte anos atrás, Aristides Pereira, então presidente de Cabo Verde, apelou a que as frentes de alta-intensidade de mão de obra (FAIMO) deixassem de ser o local onde se degradava a consciência laboriosa do povo. De facto, prosperidade dada, renda recebida, subsídio garantido e outras formas de assistência, não são ingredientes para a construção de uma cultura de produção e de desenvolvimento, nem para o surgimento de uma ética de trabalho que privilegie esforço individual, iniciativa e cooperação para atingir fins colectivos. Pelo contrário, fomenta a atomização social e a luta entre indivíduos para melhor se posicionarem na cadeia “alimentar” criada e sustentada pela ajuda externa. Uma luta sempre acompanhada de laivos de mesquinhez, inveja e covardia.

O mundo criado pelo espírito assistencialista estiola a possibilidade de construção da confiança entre pessoas e entre elas e as instituições do Estado e bloqueia, ainda, o desenvolvimento de cultura cívica e a emergência da sociedade civil. Na corrida pelas nomeações e colocações, pelos favores e por oportunidades de lucros fáceis e rápidos, assiste-se ao contínuo desfiar do tecido social e consequente destruição de capital social. Paralelamente a essa corrida, e com ela intimamente imbricada, afirmam-se aqueles que constroem o seu poder, pessoal, político e económico, acotovelando os outros para serem eles a fazer os jeitos, a criar os acessos especiais e a escolher os ganhadores.

Em tal ambiente, os cidadãos vêem a sua liberdade comprometida pelo emaranhado de relações de gratidão e subserviência que os cerca e engole. O poder do Estado é ferido de ilegitimidade e de autoridade devido à falta de transparência, falta de isenção e repetidas demonstrações de não prossecução do interesse público. O desenvolvimento é comprometido porque não se compadece com actores sociais a funcionar como num jogo de soma nula, em que cooperação entre indivíduos é baixa e em que, para se avançar, subtrai-se em vez de se adicionar energias, esforços e vontades.

As sondagens do Afrobarómetro, publicadas em 2005 e em 2008, dão conta da gravidade da situação vivida em Cabo Verde. O nível de capital social é extremamente baixo. As pessoas não confiam umas nas outras. O Afrobarómetro de 2005 apontava para 94% a percentagem de caboverdianos que achavam que, “nas relações com outras pessoas se devia ter muito cuidado”. Compreende-se, assim, porque não se associam nem para actividades empresariais e muito menos para acções cívicas ou de natureza social. Os últimos resultados, apresentados no jornal Asemana de 10 de Outubro, põem em 75% e 80% a percentagem de caboverdianos que não são membros de qualquer associação seja ela, cívica, sócio-professional, religiosa, comunitária ou política. Fica a interrogação o que são, de facto, as dezenas ou centenas de associações, que proliferam pelo País e que usufruem de fundos do Estado e da cooperação internacional.

Ainda segundo o Afrobarómetro, o ambiente no País é de desinteresse pelos assuntos públicos. Em relação a 2005, os resultados de 2008 apontam para uma queda de 65% para 17% para os que seguem a vida nacional. Mais. O desinteresse é acompanhado de receios múltiplos. 52% dos entrevistados não falam de política  por medo de serem prejudicados pelos poderes instalados. Outros 35% dizem que em nenhuma circunstância participariam em marchas de protesto.  

No debate o Sr. Primeiro Ministro repetiu o celebrado motto das escolas de negócios: não há almoços grátis. De facto não há. Por isso, Cabo Verde paga, e bem caro, a sua prosperidade artificialmente criada e sustentada por remessas de emigrantes e ajuda externa. Cabo Verde  paga, e bem caro, o facto dos seus dirigentes terem sido incapazes de usar a almofada que essa assistência representava para lançar o País e as suas gentes na criação de uma economia produtiva. Cabo Verde paga, e bem caro, o facto dos seus governantes deixarem-se cair na tentação de usar os recursos postos á disposição do País para se sustentarem no poder, mantendo as populações dependentes e os seus fiéis contentes.  

O modelo de reciclagem de rendas esgotou-se. Como em todo o lado eleva a prosperidade geral até certo ponto. Depois, o desemprego instala-se e não diminui. As desigualdades sociais aumentam porque quem administra a renda tende a abocanhar uma parcela cada vez maior. Todos têm os olhos fixos no Estado á espera de oportunidade para se guindarem à posição de usufruir da parte mais choruda da renda. Entretanto, investimentos em sectores como educação, formação profissional, que só resultam num ambiente de gosto pelo conhecimento, de reconhecimento do mérito e de incentivo à criatividade e inovação, perdem-se em sonhos de lugar e salário seguro para toda a vida na Função Pública.

Ninguém, de facto, acredita na economia. A começar pelo próprio Estado. Quando surge uma oportunidade, a tendência é de a encarar como passageira e única e, de forma especulativa e quase parasitária, a explorar até ao osso. Sem preocupação de capitalizar sobre ela, de densificar o tecido empresarial para melhor a potenciar e sustentar e de a usar como possível base de projecção futura no quadro dinâmico das relações económicas mundiais.

Comparando a “performance” de Cabo Verde com quem nunca se devia e deixando ser seduzido pela própria propaganda, a governação delapida as reservas de energia dos caboverdianos e fragiliza o carácter da Nação. Até quando!?

Que a crise financeira, que teve na sua origem ganância e rendas fáceis e exorbitantes geradoras de desigualdades profundas, sirva para fazer o País arrepiar de caminho. Cabo Verde precisa seguir uma outra via que leve à prosperidade de todos, com dignidade, na liberdade e cultivando os valores de trabalho, de sacrifício que, ao longo dos séculos, permitiram ao seu povo ser o que é e afirmar-se, não obstante as maiores calamidades.

sexta-feira, setembro 26, 2008

Revisão para o Futuro

A Constituição da República entrou em vigor a 25 de Setembro de 1992.

Comemora-se hoje os 16 anos da tarefa histórica que a Nação se impôs ao adoptar a Constituição: A defesa da dignidade da pessoa humana; a valorização do indivíduo enquanto como sujeito incontornável da realização não só da sua felicidade pessoal e familiar como também da prosperidade geral; a edificação do Estado de Direito; o lançamento das bases de uma sociedade civil autónoma. Nesse sentido, leis foram criadas para dar corpo ao novo ordenamento jurídico no País, instituições da república foram construídas para garantir legitimidade, responsabilidade e accountability no exercício do Poder e no processo de tomada de decisões e uma cultura democrática foi incentivada com a insistência no respeito estrito pelos processos e procedimentos constitucional e legalmente estabelecidos.

 Todo esse esforço de construção não tem sido fácil. Ao longo do tempo, empecilhos diversos, resquícios de culturas políticas autoritárias e totalitárias, vêm se colocando no caminho da assunção plena da Constituição. Para isso têm contribuído a situação sócio-económica frágil, o espírito de dependência nas elites e nas populações, induzido pela ajuda externa e remessas dos emigrantes, e o excessivo peso do Estado em determinar quem são os ganhadores no processo económico. Também prejudica o esforço democrático as dificuldades em se ter uma comunicação social livre e um poder judicial independente, competente e célere.

Não obstante as dificuldades, a democracia caboverdiana tem-se distinguido pela sua estabilidade. Em retrospectiva, pode-se dizer que as soluções, encontradas pelo legislador constitucional em 1992, parecem ter sido as mais ajustadas.

A Constituição estabelece o seu próprio processo de revisão. Em 1995 foi feita uma revisão extraordinária e em 1999 uma revisão ordinária. Enquanto a revisão de 1995 centrou-se num ponto específico à volta da lei eleitoral, a revisão de 1999 foi muito mais abrangente. Duas alterações, a criação do Tribunal Constitucional e a introdução da alínea q do artigo 175, que passou a exigir maioria qualificada de dois terços para matéria fiscal, tiveram consequências profundas no sistema. Nos anos seguintes condicionaram o discurso político. Hoje, são aquisições basicamente consensuais.

Desde de Novembro de 2004 que a Constituição pode ser revista. Apesar de prever a sua própria revisão de 5 em 5 anos não se deve tomar essa possibilidade como uma exigência/imposição de alterar a Constituição. O consenso à volta da Constituição está intimamente ligado com a sua estabilidade.

A Constituição de 92 é moderna. Encarna o mundo pós-queda do Muro de Berlim, de reconhecimento universal dos direitos do indivíduo, de consagração da democracia e da aceitação da iniciativa privada e do mercado como indispensáveis ao desenvolvimento. Também não apresenta muitas normas reactivas que convidassem à revisão. Por isso, Cabo Verde parece não ter a necessidade de fazer as múltiplas revisões que, por exemplo, Portugal foi obrigado para se libertar de resquícios ideológicos.

Isso não impede uma profunda reflexão sobre o funcionamento do sistema nos actuais parâmetros. Que se analise a sua adequação à realidade do país, se procure antecipar às consequências da dinâmica actual e identificar tendências evolutivas. E, finalmente, que se prepare o país para as mudanças de paradigma nas relações entre Estados, ditadas pela globalização em curso.

A revisão da Constituição podia orientar-se, designadamente, pelas seguintes linhas de força: 
·        Reforço do Parlamento na fiscalização do Governo e aprofundamento do controlo judicial das leis
·        Reforço da independência do poder judicial
·        Absorção das consequências da natureza arquipelágica do país:
·        Redefinição do quadro constitucional das relações internacionais,
·        Redefinição do conceito de segurança e defesa nacional

O reforço do Parlamento no controlo da legislação passaria, nomeadamente, pela extensão aos decretos-leis do Governo dos poderes de ratificação, hoje restrita aos decretos legislativos. O aprofundamento do controlo judicial envolveria o alargamento das competências do Tribunal Constitucional na fiscalização abstracta e sucessiva da legalidade. Dessa forma garantir-se-ia uma maior coerência nas leis, não permitindo, designadamente, que o Governo contorne leis de valor reforçado, votadas por maioria de dois terços dos deputados.

O reforço da independência do poder judicial implicaria a eliminação de quaisquer interferências do poder político na nomeação dos juízes, designadamente a alínea l do artigo 134 da CR, que confere ao Presidente da República a competência de nomear um juiz para o Supremo Tribunal. No mesmo sentido iria a eliminação da presença do Inspector Superior Judicial, nomeado pelo Ministro da Justiça, no Conselho Superior da Magistratura. O controlo jurisdicional das Contas do Estado ganharia credibilidade e legitimidade maiores com a eliminação do poder do governo na nomeação dos juízes do Tribunal de Contas.

Cabo Verde é um país arquipélago. É facto evidente que a identidade caboverdiana emergiu da interacção das ilhas entre si e com o mundo. A riqueza, versatilidade e potencial inovador da cultura caboverdiana dependem da manutenção do protagonismo de cada ilha. A Constituição deve garantir a preservação das condições necessárias a uma participação efectiva, e por igual, das ilhas nas decisões essenciais e na distribuição de recursos.

O conceito de capitalidade deve ser revista por não se apresentar como fundamental em países em que unidade nacional não é posta em causa por forças centrífugas. A constitucionalização da capital normalmente existe em países como Canadá, Brasil, Nigéria de organização política federal ou em países como Espanha e Bélgica de divisões históricas de natureza étnica e linguistica. O caboverdiano já se vê como parte de um todo indivisível.

Por outro lado, a experiência dos arquipélagos da Macaronésia, mas não só (caso de Comores), aponta para a necessidade de uma desconcentração da presença do Estado. Nos Açores, os órgãos do Estado e departamentos da administração têm sede em diferentes ilhas, nomeadamente, S.Miguel, Terceira e Faial. Nas Canárias a capitalidade distribui-se pelas cidades de Santa Cruz de Tenerife e Las Palmas. O efeito directo e induzido do Estado nas economias insulares, pequenas e frágeis por definição, torna inevitável que, em se concentrando num ponto ou ilha, leve necessariamente a desequilíbrios no todo nacional. Migrações internas dirigem-se para a capital e zonas de estagnação surgem noutros pontos do território nacional.

A esperança de todos é que outras dinâmicas contrabalancem o efeito centralizador da presença do Estado num ponto único do território nacional. Mas isso nem sempre acontece, porque as ilhas, pela sua pequenez, não podem mover o mundo a seu favor. Só podem agarrar-se a janelas de oportunidade, cientes que não duram para sempre.

Em Cabo Verde, é já preocupante o crescimento da cidade da Praia, sorvendo recursos humanos e outros do interior de Santiago e das outras ilhas, com consequências graves para a sua própria governabilidade no que respeita à expansão urbana, energia,  saneamento, saúde pública, ordem e segurança. Entretanto, o País globalmente perde porque, com a concentração de recursos e as fracas condições nas outras ilhas para a criação e manutenção de elites próprias, retira a si próprio os elementos chaves da sua própria vitalidade e capacidade de inovação.

Um segundo aspecto que resultaria de absorção pela Constituição da natureza arquipelágica do País é a flexibilidade na adequação das instituições às ilhas e na diferenciação de regimes de aplicação de políticas, designadamente, fiscal, laboral e de segurança. Flexibilidade que, por exemplo, permitiu às Maurícias, aproveitar novas oportunidades e manter-se competitivo perante alterações profundas nas relações económicas globais. O modelo actual em que as ilhas aspiram a desenvolver-se numa relação directa com o mundo exige flexibilidade.  

A dinâmica da globalização - oportunidades/ameaças -, não se compadece com certo tipo de rigidez constitucional nas relações internacionais. Passos já dados, em matéria de acordo cambial, de acordos de segurança mútua e controlo dos diferentes tráficos e procura de convergência normativa, no âmbito do desenvolvimento do princípio de parceria especial com a União Europeia, apontam para opções no domínio das relações internacionais já consensuais na sociedade caboverdiana.

Assim como Cabo Verde, de facto, com o peg da sua moeda ao euro, cedeu o essencial da condução da política monetária ao Banco Central Europeu e em matéria de segurança assinou acordos com outros países para controlo da sua Zona Económica Exclusiva, urge que se reflicta sobre que outras áreas flexibilizar. Considerando a natureza criminal e transnacional das ameaças, a cooperação no sector de justiça, designadamente, com o Tribunal Penal Internacional, parece imprescindível. Para evitar que Cabo Verde seja visto como um paraíso para criminosos e traficantes, e para que seja capaz de confrontar situações que, sozinho, não conseguiria

Em matéria de Defesa e Segurança, a Constituição apresenta a divisão clássica entre a defesa face ao inimigo externo, a cargo das Forças Armadas, e a segurança interna, entregue às polícias. No mundo pós 11 de Setembro essa diferença entre segurança e defesa desvanece-se. As ameaças actuais, na generalidade dos casos, de entidades sub-estatais no crime, no tráfico ou no terrorismo, exigem métodos de actuação policial, mesmo que, em termos operacionais, as forças tenham de mostrar perícia e usar tácticas  militares.

As fragilidades de Cabo Verde têm muito a ver com a sua pequena economia, pequena população e condição de ilhas espalhadas por uma grande área do oceano. Isso implica uma grande linha de costa para controlar e uma área enorme de águas territoriais e zona económica para vigiar. Essas fragilidades tornam extremamente difícil montar uma defesa convincente contra uma ameaça externa protagonizada por um outro Estado.

As Forças Armadas, tendo como seu núcleo essencial o Exército, dificilmente poderiam responder cabalmente à missão que a Constituição lhes dá. Essa é provavelmente uma das razões porque sempre os governantes se viram tentados a encontrar outras missões para as forças armadas, principalmente, em matéria de segurança interna.

A questão que se põe é se, face à inexistência de ameaças de outros Estados e à incapacidade do país, pelos próprios meios, de fazer a sua defesa militar, é de se investir os parcos recursos em forças armadas. Forças armadas, que pela Constituição, estatuto e composição com base no serviço militar obrigatório estão impossibilitados de agir ou limitados na sua acção em situações que configuram ameaças reais e actuais. Ou se Cabo Verde estaria melhor se aderisse a projectos colectivos de segurança, dissuasores de atentados à sua soberania, e dirigisse recursos para forças de segurança especialmente treinadas. A cooperação, que é parca em termos estritamente militares, poderia ser profusa no combate ao crime e ao terrorismo.

Para além das alterações na estrutura das forças, importa rever outros impedimentos à efectividade do combate ao crime. Alguns são elementos essencialmente reactivos, presentes na Constituição. É o caso da proibição de entrada no domicílio durante a noite, em qualquer circunstância que não as que configuram estado de necessidade. A problemática da extradição também poderia ser revista no quadro do envolvimento do País em projectos colectivos de resposta às ameaças actuais.

 A revisão ordinária da Constituição é urgente. É fundamental que se desenvencilhe o caminho para adopção em pleno das alterações da revisão de 99, no que respeita ao   Tribunal Constitucional e ao estabelecimento do Supremo Tribunal de Justiça, livre de interferência política na sua composição. Da revisão próxima poderá vir, ainda, o quadro constitucional necessário para o País aproveitar as oportunidades, relacionar-se com um mundo em mudanças profundas e associar-se a outros Estados para garantir a sua Segurança.  

Que a Constituição continue a ser o veículo fundamental para a realização da Liberdade e da Felicidade dos caboverdianos. 
           
              Publicado no jornal ASEMANA de 26 de Setembro de 20091

sábado, julho 26, 2008

Humberto Cardoso na DN do MpD

 

Intervenção Direcção Nacional   


                            Humberto Cardoso

                            26 de Julho de 2008


A 18 de Maio de 2008, o Movimento para a Democracia, MpD, alcançou uma grande vitória nas eleições autárquicas. 11 em 22 câmaras. A vitória eleitoral teve um sabor e um alcance muito especiais na Praia, em Santa Catarina e na Ribeira Grande de Santiago. 


O partido está de parabéns. E todos os que se apresentaram nas listas do MpD merecem o apreço e a solidariedade do partido, dos seus militantes e simpatizantes. Nas câmaras conquistadas há que manter engajada a vontade política que propiciou a vitória. Disso depende a  implementação do programa autárquico sufragado. Nessa tarefa, tem particular responsabilidade os presidentes da câmara, em estreita colaboração com as comissões políticas regionais e os eleitos nos órgãos municipais. Onde o MpD for oposição, desde já o partido deve apoiar os seus eleitos com vista a fazer não só uma oposição consistente e sistemática como também construir as bases de uma candidatura futura.

 

A vitória do MpD nas autárquicas pôs um fim ao entusiasmo sem limites que as hostes do PAICV vinham alimentando desde das eleições legislativas e presidenciais de 2006. Mais uma vez viram goradas as suas esperanças de confinar o MpD a um papel menor no sistema político caboverdiano. 18 de Maio veio confirmar outra vez o MpD como um grande partido caboverdiano. E o país suspirou de alívio. Ninguém hoje tem quaisquer dúvidas que alternativa de governação existe. Que o MpD é forte e é ganhador. 


O quase desespero que assolou as fileiras do adversário revelou um outro efeito dos resultados eleitorais: é limitada a influência do Governo sobre o comportamento dos eleitores nos municípios. As eleições têm de facto um carácter marcadamente local e só conjunturalmente reflectem desagrado com políticas governamentais. A direcção do PAICV alimentou expectativas que, por exemplo, a má gestão camarária na Praia e em Santa Catarina não seria um obstáculo. Que faria passar sem problemas expressões da sua própria arrogância como as propostas de candidatos para Boavista, Sal e S.Vicente. Enganou-se. Acreditou na sua própria propaganda e publicidade enganosa: Acreditou que asfalto, estradas e aeroportos, parceria especial, Nato, graduação para país de rendimento médio etc. garantiriam a seu favor as eleições. 


O problema é que os cidadãos não viram nas suas vidas, nos seus rendimentos e nas suas esperanças de futuro os resultados dramáticos, que tanta publicidade do governo anunciava e prometia. Pelo contrário. Sentiram o efeito do desemprego, não obstante os milhões de que todos os dias a rádio e a televisão falam. Viram jovens sem perspectivas, apesar  dos fora, workshops e seminários que se debruçam sobre a necessidade de qualificação profissional. Sentiram na pele a total fúria dos aumentos de alimentos, combustíveis, energia e água sem que o governo mostrasse visão, políticas, estratégias e medidas concretas para enfrentar a nova situação que desponta no mundo. 


O Mundo mudou. Isso é hoje evidente para todos. A alta de preços de petróleo e de cereais veio para ficar. Os preços são mais voláteis e a possibilidade de escassez de produtos alimentares voltou a ser realidade. Factores geopolíticos, especulativos e particularmente a grande demanda dos países desenvolvidos emergentes, os chamados BRIC, Brazil, Rússia, Índia e China, imprimem uma outra dinâmica ao mercado mundial onde não está ausente a insegurança, as tentações de proteccionismo e a possibilidade real de uma marcha atrás no processo da globalização. Aconteceu no passado. Pode voltar a acontecer. 


É neste ambiente de incerteza face ao novo que o MpD é chamado para dar um novo ímpeto ao processo da sua credibilização como alternativa de governo. Nesse processo terá de confrontar-se designadamente com o seguinte: 

  • O Governo do PAICV, ao longo desses anos, não cuidou de preparar o país para fazer face a choques externos. A reforma do Estado ainda está por fazer. 

  • A base da economia afunila-se para se sustentar essencialmente no turismo. A indústria foi-se e o propalado aproveitamento da situação geo-estratégica do país na criação de hubs continua a ser uma miragem  

  • Os investimentos não criam trabalho em número suficiente para combater o desemprego 

  • As exportações não crescem e não se diversificam no ritmo que a sustentabilidade a prazo dos equilíbrios macroeconómicos exigiria. 

  • O mercado de trabalho mantém-se rígido não diversificado, e não qualificado.

  • A educação não foi virada para a criação e sustentação de uma  economia de base no conhecimento

  • O mercado interno nunca foi unificado e nem identificados os seus estrangulamentos e constrangimentos.

  • A agricultura, a pecuária e a agro-indústria tem poucas hipóteses com a persistência de um mercado minúsculo, fragmentado, inexplorado, pouco sofisticado e não regulado. 

  • As infraestruturas construídas resultam mais de oportunismo político do que racionalidades económicas. Tem o potencial de se transformarem em elefantes brancos com consequências num endividamento desastroso do país. 

  • A segurança, nem interna nem face a ameaças externas, designadamente tráfico de droga, pessoas e armas, teve a resposta adequada. Os níveis de criminalidade existentes retiram ao país muito da sua atractividade. Espantosamente, Sal, o centro do turismo no país, tem o segundo maior índice de criminalidade.  


A credibilização do MpD como alternativa de governo passa também pela clarificação da sua matriz ideológica. As tentativas do PAICV, na sua movimentação para o centro político, de tornar o MpD redundante devem ser combatidas com criatividade nas propostas e firmeza nos princípios. As tentações internas de flanquear o PAICV pela esquerda devem ser contidas sob pena de descaracterização do partido face ao eleitorado.    


O MpD é o partido da Liberdade. O MpD sempre acreditou que liberdade é liberdade individual e que ela é indissociável da dignidade pessoal. Assim como não há independência sem liberdade do indivíduo, também não se pode dizer que se está a lutar pela  dignidade pessoal quando se insiste em políticas de subordinação ao Estado, se alimenta sentimentos de vitimização e se proclama como central ao desenvolvimento a procura e apropriação de ajuda. 


Hoje sabe-se que sistemas redistributivos suportados por doações ou empréstimos concessionais não conseguem fazer chegar aos mais pobres os recursos suficientes e adequados a uma existência autónoma. Configuram sistemas de apropriação de renda por uma elite à semelhança dos sistemas rentistas nos países do petróleo. E lá como cá não só não conseguem combater a pobreza como criam desigualdades gritantes e abrem caminho à corrupção. Para os que querem ir por  uma outra via, o exemplo de mais 200 milhões de chineses a ascender à classe média na sequência de anos de crescimento económico mostra qual o caminho a seguir.    


Toda a gente sabe que os mais carenciados e vulneráveis na sociedade caboverdiana tendem a apoiar o MpD. Pode parecer um contra-senso o facto de não se identificarem com partidos de esquerda. O facto é que, por experiência própria, sabem que o sistema económico redistributivo do Estado não é a solução permanente para os seus problemas. Têm fé que o desenvolvimento da economia pode fazer-lhes erguer da sua actual condição e aspirar a uma vida digna e a um futuro de prosperidade para eles e os seus familiares. Já viram sinais claros disso na década de noventa. 


O MpD não deve defraudar os que nele acreditam. O MpD deve sempre ser capaz de demonstrar de que o desenvolvimento e a felicidade podem ser atingidos trilhando o caminho da liberdade e de dignidade.

 

A vitória nas autárquicas atribuiu uma especial responsabilidade aos dirigentes e  militantes do MpD. A responsabilidade de preparar-se para governar nos tempos exigentes de hoje e de conceber políticas inovadoras para que o Cabo Verde consiga enfrentar os desafios extraordinários de hoje com sucesso. Não vai ser tarefa fácil. 


O orgulho em ser MpD, o orgulho em pertencer ao partido da Liberdade, o orgulho em partilhar da rica história de sucessos mas também de desaires e de tensões internas resolvidas na unidade de propósitos, o orgulho em transportar o legado do partido das ideias inovadoras e da ousadia na governação, esse orgulho deve motivar todos na  caminhada até 2011 de mobilizar, consolidar e merecer, a todo o momento, a confiança dos caboverdianos.


Para melhor servir Cabo Verde.

domingo, junho 22, 2008

 

O Erro de António Carreira

    Humberto Cardoso

                                                      (Novo Jornal de Cabo Verde, Agosto de 1997/Revista Cultura N. 2 – 1998)

 Toi Mulato (....) referia-nos que nhô João Joana lhe contou que no princípio do mundo, a Terra era uma mulher muito bonita e muito infeliz. Vendo os seus filhos morrer por falta de comida, saía todas as noites a vaguear e ia chorar nos cumes das rochas os seus amores perdidos. Ela tinha-se casado com um moço leviano que nunca lhe aparecia inteiro, mas sim partido em pinguinhos de água. A Terra ficava sempre com gana do amor incompleto do seu marido. E este saía pouco depois., a visitar as mães-de-filho que tinha por esse mundo fora.

                                                                                          In "Chiquinho", Baltazar Lopes

Um olhar por Cabo Verde e pelo seu povo deixa a impressão forte de se estar perante um fenómeno extraordinário e único. Cabo Verde parece um lugar onde dois mundos confluíram para se encontrarem, onde duas raças se esforçaram para se cruzarem e onde a história é feita mais de histórias de sofrimento do que de alegria. A realidade, porém, é outra: há um só mundo, e é novo, não há uma raça, existe o Cabo-verdiano, e a história são estórias de esperança.

Quem vem de fora, de outras paragens, onde a cor da pele informa e é enformada de história, de preconceitos, de reacções e de ressentimentos, vê-se, de repente, no meio de uma gente, basicamente, distraída e olvidada quanto às variantes em traços fisionómicos e quanto às nuances de cor entre uma tez escura e outra clara de que são portadores os pais, os irmãos, os primos, os vizinhos e os patrícios das outras ilhas.

A sensação de bem-estar, que é logo experimentada, provém, em grande parte, do alívio de se alijar da carga racial, ou seja, da consciência aguda de que se é de uma raça e que as outras pessoas sabem disso e que modelam o seu comportamento e a sua relação social com base nisso. É um alívio e um prazer análogo à sensação de flutuação que a imersão na água nos deixa experimentar ao contrabalançar a força opressora da gravidade.

Passando de uma ilha para outra, depara-se com o mesmo povo, não obstante as diferentes e contrastantes paisagens visitadas e as nuances culturais locais percebidas. Um povo com uma existência de séculos e com uma resiliência cultural que lhe permitiu emergir e crescer como entidade cultural autónoma, a partir de um meio onde prevalecia a envolvência cultural portuguesa.

Sobreviveu às constantes ameaças à sua existência e à sua própria génese postas, designadamente, por sistemas económicos de base esclavagista; por regimes de propriedade negadoras de uma base própria de subsistência às famílias, pela emergência, com o comércio triangular, do fenómeno global do racismo, e, fundamentalmente, pelas terríveis fomes que pressagiavam o seu desaparecimento da face da terra. Ao longo dos séculos foi lançando raízes cada vez mais fortes à medida que ia surgindo, em todos os pontos do arquipélago, nos interstícios das relações económicas e sociais dominantes, e que adoptava formas de existência impermeáveis aos efeitos erosivos e corrosivos de um ambiente socioeconómico e político hostil.

A consciência e o orgulho de si próprio, que não obstante as amarguras de existência o Cabo-verdiano foi capaz de gerar, deixaram-lhe marcas profundas que se manifestam numa ligação profunda à terra e à sua gente e, também, na capacidade de sobreviver face às mais terríveis situações e face aos maiores neutralizadores como o tempo e a distância. As comunidades no exterior são eloquentes a este respeito.

Cabo Verde surpreende, ainda, pela sua proximidade do mundo ocidental, em termos culturais e civilizacionais.

A cultura cabo-verdiana não resultou do cruzamento das culturas europeia e africana, ao contrário do que se veicula e do que, dada a situação geográfica das ilhas, aparentemente seria lógico. Cruzamento de culturas pressupõe a existência de comunidades distintas e com dinâmica cultural autónoma, capazes de um diálogo gerador de uma síntese muito especifica.

Vários factores concorreram para o não aparecimento dessas tais comunidades autónomas em Cabo Verde, ou seja, para que nunca se pudesse falar, com propriedade em Casa Grande e Senzala nas ilhas. No arquipélago, encontrado desabitado, a cultura que se soergueu e se diferenciou ao fim de um certo tempo só podia ter como referência básica elementos da matriz cultural portuguesa da época. Beneficiou, contudo, dos apports culturais trazidos por indivíduos ou grupos de indivíduos, provenientes de diferentes paragens, que se fixaram no arquipélago ou que por aqui passaram.

A este respeito, o que aconteceu em relação ao crioulo é paradigmático;

I – 99% dos seus vocábulos têm origem directa na língua portuguesa, particularmente a falada nos séculos quinze e dezasseis, o que evidencia a condição dessa língua como matriz básica da língua cabo-verdiana; 2 – o crioulo, apesar da envolvência cultural portuguesa de séculos em Cabo Verde, revela-se completamente autónomo em relação a língua portuguesa. Não estranha, pois, que o que aconteceu com o crioulo, a expressão central da entidade cultural cabo-verdiana, se tenha verificado com os demais elementos que formam o corpo da cabo-verdianidade.

Tentar compreender estas realidades, vividas por todos os cabo-verdianos e acessíveis a todos os estrangeiros, pela via de um modelo que assume e estipula as origens da sociedade cabo-verdiana numa sociedade escravocrata existente entre 1460 e 1878, é tarefa impossível.

António Carreira e os seus seguidores procuram fazer precisamente isso e o resultado lógico de tal exercício não pode deixar de se revelar, no mínimo, bizarro, a olhos de quem conhece o país e o povo.

Modelos constroem-se a partir de descrições esquemáticas de sistemas, teorias ou fenómenos com base em propriedades conhecidas ou inferidas. São extremamente úteis na compreensão global da realidade em estudo, podendo ajudar na previsão da evolução do sistema ou do comportamento do mesmo em ambientes com determinados parâmetros. Mas, enquanto instrumentos cognitivos abstractos, os modelos só se mantêm quando justificados pelos factos, ou seja, quando conseguem explicar fenómenos, justificar coerências internas de fenómenos, aparentemente, dispares e prever evoluções futuras.

O modelo avançado por António Carreira no seu livro Cabo Verde"Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)'' e usado sistematicamente nas suas obras seguintes, e por outros autores, para compreender e interpretar Cabo Verde não resiste ao teste dos factos e da realidade cabo-verdiana.

O modelo de Carreira parte do seguinte:

• O povoamento de Cabo Verde realizou-se com uma minoria europeia, naturalmente dominadora, e com africanos, trazidos como escravos.

• Cabo Verde desempenhou um papel como entreposto no comércio de escravos

• A estrutura produtiva no arquipélago baseava-se em trabalho escravo.

O primeiro aspecto que chama a atenção no modelo de Carreira é o facto de as suas assunções fundamentais em nada se distinguirem dos factores que condicionaram a actual estrutura social, racial e cultural de muitos países das Américas e das Antilhas e, também, de países como S. Tomé e Príncipe. Isto é mesmo sublinhado por António Carreira (obra citada, pg.2l) quando afirma que "a política económica e os processos seguidos na ocupação do espaço e no desenvolvimento dos dois grupos de ilhas (Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe) foram em quase tudo coincidentes quase iguais”.

A discrepância manifesta-se quando se compara as sociedades actuais de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, das Antilhas e das Américas. Cabo Verde destaca-se imediatamente como um caso à parte. A sua fisionomia actual pouco tem a ver com a fisionomia do Brasil, da Jamaica, do Haiti ou dos estados americanos do Sul. Face a isso, é de se contestar as assunções referidas, quando aplicadas à realidade das ilhas. O próprio Carreira confessa não compreender como é que, não obstante a similaridade de processos, a coincidência de várias vicissitudes históricas, e, basicamente o mesmo stock humano, a sociedade cabo-verdiana e a sociedade são-tomense sejam tão diferentes.

Assim, ele diz, na parte introdutória do livro Cabo Verde: "Formação e extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-I878)”, pg.22, o seguinte: (...) a despeito dos dois grupos de ilhas terem conhecido idêntica prosperidade económica e passado por quase iguais dificuldades, nas de Cabo Verde, dentro da sua extrema pobreza, a miscigenação prosseguiu sem paragens, levando à formação de uma comunidade com costumes, hábitos, comportamentos e língua fundamentalmente portuguesa, ao passo que nas de S. Tomé, segundo parece, os resultados dos contactos raciais e culturais podem ser considerados insignificantes se os compararmos como os atingidos naquele arquipélago.

Para se poder avaliar o que de diferente realmente se passou em Cabo Verde, impõe-se que se tenha na devida perspectiva certos factos históricos:

Primeiro,

• Cabo Verde foi descoberto em 1460, 32 anos antes de Cristóvão Colombo ter chegado às Antilhas e 40 anos antes de Pedro Álvaro Cabral desembarcar no Brasil.

• Cabo Verde foi encontrado deserto e, portanto, sem povos ou culturas autóctones.

• Cabo Verde originalmente esteve para ser povoado nos mesmos moldes que os Açores e a Madeira o foram. O clima constituiu um forte dissuasor da fixação de europeus e obrigou á importação de escravos da costa africana.

O povoamento de Cabo Verde tinha o objectivo duplo de apoiar na investida comercial na costa africana e de ser uma base avançada na navegação mais a sul em direcção à Índia e ao Brasil. A exploração económica das ilhas, nos moldes feitos posteriormente em outras paragens, não estava nos planos dos recém-chegados portugueses.

O comércio de escravos constituía, então, simplesmente, uma parte de um comércio muito mais abrangente na costa africana. A criação das grandes economias de plantações nos EUA, no Brasil e nas Antilhas, verificada na segunda metade do século XVI e no século XVII, é que iria centrar no comércio de escravos toda a actividade mercantil na costa ocidental africana, através do tristemente célebre comércio triangular. E, para base de apoio à instalação e à consolidação de tal circuito, viria a construção ideológica e racista da inferioridade da raça negra, como forma dos envolvidos se justificarem pelo enorme sofrimento causado e pela extrema ganância que os levara a instituir esse tráfego monstruoso.

Até o século XVII, o comércio de escravos que, desde a origem dos tempos, se verificara em todos os continentes e envolvera os mais diferentes povos, seja como escravos, seja como compradores de escravos, não tinha uma base racial, nem se desenvolvia por instigação de sentimentos racistas. O processo em Cabo Verde de povoamento, de consolidação social e de génese de uma sociedade própria, viu-se, em boa medida, poupado dessas tensões, por duas razões:

 l – por se ter iniciado muito antes do modelo escravocrata das plantações se ter instalado nas novas terras;

2 – porque o arquipélago caiu no declínio e no isolamento assim que foram criadas as condições para o comércio em massa de escravos, isto é evidente pela miscigenação notória da população, pelo reconhecimento dos filhos pelos europeus e pela pratica de libertação de escravos, todas, actividades que, por subverterem os próprios alicerces das sociedades escravocratas, baseadas no sistema das plantações, viriam a ser condenadas vigorosamente.

Segundo,

•A economia das ilhas assentou-se, desde o início, na condição de entreposto comercial, gozando de privilégios monopolistas.

• A agricultura, a criação de gado e outras actividades económicas, como a confecção de pano, eram marginalmente subsidiárias da actividade central do comércio na região.

• Actividades económicas autóctones no arquipélago estavam fortemente condicionadas pelo fraco, inconstante e imprevisível regime de chuvas.

• As ilhas não tinham como defender-se dos ataques dos corsários

As condições oferecidas pela coroa portuguesa para povoar o arquipélago de Cabo Verde revelaram-se, desde o início, frágeis, pouco motivadoras e insustentáveis a médio e longo prazo. Baseadas essencialmente no monopólio do comércio na região, só se mostrariam atraentes enquanto se conseguisse manter afastados os concorrentes estrangeiros e enquanto interesses na metrópole não contradissessem os interesses dos moradores de Santiago. Alternativas ao comércio na costa africana não existiam, e a exiguidade de terras e a fraca pluviometria vaticinavam, desde os primórdios do povoamento, a inevitabilidade do colapso da economia das ilhas.

O comércio na região ocidental africana muito dificilmente podia tornar-se um factor de acumulação de riqueza nas ilhas e de gestação de uma estrutura produtiva interna, a prazo sustentável. A agricultura e a pecuária nas ilhas seriam sempre de subsistência e, marginalmente, fornecedoras de matérias-primas para fins industriais, como algodão, urzela, sementes oleaginosas, açúcar e peles. A quase impossibilidade de gerar recursos próprios e também de participar com produtos originários no comércio na região fazia a prosperidade do arquipélago suportar-se numa base estreita e frágil, aleatória e potencialmente provocadora de conflitos terríveis as receitas alfandegárias.

Duas economias desenvolviam-se, paralelamente, no arquipélago; uma economia mercantil, baseada na cidade de Ribeira Grande, e uma economia agro-pecuária de subsistência, no interior de Santiago e em ilhas como Fogo, Boavista, Sto. Antão e S. Nicolau. Poucos pontos de contacto existiam entre essas duas economias, salientando-se, de entre eles, o fornecimento de escravos para o trabalho agrícola e a produção de panos para a troca na costa africana, sendo ambas as actividades marginais para as respectivas economias.

A perspectiva de perda do monopólio e as fugas sucessivas dos barcos ao controle dos moradores de Santiago ameaçavam permanentemente a actividade mercantil. A possibilidade de fomes, de caos social e de mortes por inanição era uma constante da vida no mundo rural, devido às secas cíclicas. Os ataques dos corsários provocavam perturbação geral com particular impacto na actividade mercantil e na manutenção da estrutura agrária; baseada no regime de morgadios e no trabalho escravo.

Os furos sucessivos ao monopólio, a concorrência de estrangeiros e, posteriormente, a proibição feita aos moradores de Santiago de fazerem comércio nos Rios da Guiné destruíram a actividade mercantil do arquipélago. Com o comércio foi também o seu santuário, a cidade de Ribeira Grande na ilha de Santiago, a primeira cidade portuguesa nos trópicos.

O abandono da cidade de Ribeira Grande marcou uma nova era na vida de Cabo Verde. A partir daí, as ilhas ficaram basicamente entregues a si próprias, rareando cada vez mais os contactos com o mundo. A economia agro-pecuária de subsistência, a única então possível e na total dependência das chuvas, quase não permitia o crescimento da população. A estratificação social existente, nela baseada, suportava uma erosão permanente, devido aos sérios problemas e descontroles provocados pelas secas e, após o desaparecimento da cidade de Ribeira Grande, devido ao corte do fluxo de novos escravos que realimentava o seu sistema de trabalho no campo.

Terceiro

• O relativo isolamento do arquipélago e a existência no limiar de sobrevivência foram factores de erosão e de transformação das relações sociais originárias.

• A ocupação da terra, nas ilhas que não Santiago e Fogo, realizou-se com gente de terra e na base de pequenas propriedades, marginalmente fazendo uso do trabalho escravo.

• Alforrias e fugas de escravos eram uma constante da vida desde os primeiros tempos.

A ocupação das ilhas por uma minoria, branca e europeia, e por mão-de-obra, escrava e de raça negra, prefigurava a criação de relações sociais altamente hierarquizadas e polarizadas. A reprodução dessas relações pressupunha uma dinâmica de revigoração do protagonismo, branco e europeu, e uma outra dinâmica de alimentação do contingente, escravo e negro. Tais dinâmicas, porém, só seriam sustentáveis se a estrutura económica erigida tivesse capacidade de acumulação e de expansão a taxas aceitáveis e atraentes.

Os condicionalismos de existência em Cabo Verde, particularmente a baixa e irregular pluviosidade, desde logo, retiraram qualquer esperança de uma economia dinâmica que alimentasse um fluxo de europeus de qualidade e sustentasse importações sucessivas de escravos. Não se verificando isso, as relações sociais originárias ficavam em permanente tensão e, após erosão significativa, acabariam por ceder.

O isolamento do arquipélago e a ausência de um fluxo de europeus, particularmente de mulheres europeias, rapidamente conduziu a um processo de miscigenação e, na sua sequência, às primeiras alforrias. A polarização social, antecipada nas relações sociais de origem, desmoronava-se com o aparecimento de mestiços e mulatos reconhecidos pelos pais e que, em alguns casos, até herdavam. É evidente que em tal ambiente, pouco espaço haveria para antagonismos exacerbados de carácter racial.

As dificuldades crescentes em obter escravos e o seu preço cada vez mais inflacionado impuseram sérias restrições à reposição do contingente de escravos. Estes, muitas vezes, aproveitavam-se de momentos de crise, como fomes e ataques de corsários, e fugiam para os montes ou para outras ilhas. Outros ainda eram alforriados pelos próprios donos se, por exemplo, não tinham meios para os sustentar.

A exigência de mão-de-obra escrava era maior nas ilhas de Santiago e Fogo. A estrutura de propriedade nessas ilhas baseava-se no regime de morgadios, com as suas grandes extensões de terra para serem cultivadas. A importação de escravos, que se susteve por algum tempo era basicamente para satisfazer essa procura, causando no processo tensões várias: cada novo contingente de escravos continha em si próprio a ameaça de regresso a relações originárias e já completamente desfeitas.

Outrossim a existência dos morgadios tendia a manter uma estrutura social vertical hierarquizada e, por causa disso, indutora de problemas sociais diversos. Os mulatos e os forros, não sendo escravos e não tendo terras, viam-se e sentiam-se como excluídos e marginalizados e eram vistos pela classe dos morgados como um factor de perturbação. Entretanto, a fragilidade do sistema económico, social e político não permitia um controle adequado dos escravos, levando que muitos andassem fugidos pelos montes e constituíssem ameaças a pessoas e a propriedade.

 Nas outras ilhas, reinava a pequena propriedade e a necessidade de mão de obra escrava era muito menor. Em pouco tempo, nem isso se fazia sentir, chegando-se a ponto de na ilha de S. Antão e em pleno século XVIII, a Coroa ter ordenado a libertação de todos os escravos. As relações sociais nessas ilhas eram mais distendidas, tinham uma natureza mais horizontal e não sofriam as tensões bruscas de chegadas de novos contingentes de escravos. Dentro do isolamento global do arquipélago, eram ainda mais isoladas, o que lhes deixava uma maior margem de manobra em termos de experimentação humana e de relações sociais.

Em conclusão, pode-se afirmar que, contrariamente à tese de António Carreira, se alguma vez houve um plano para criação de uma sociedade escravocrata em Cabo Verde, esse plano falhou completamente.

Falhou porque

• Ninguém conseguiu pôr de pé uma economia de base escravocrata pela simples razão de que em Cabo Verde não chove e não há, portanto como aguentar Casas Grandes e Senzalas.

• A existência no limiar de sobrevivência, com pequenos e aleatórios picos de prosperidade e regulares rectificações malthusianas da população do arquipélago, forçou relações sociais e raças originárias à partilha de um destino comum, pontuado por extremos, desfigurando-as e esvaziando-as no processo.

• Nas situações-limite vividas em Cabo Verde surgiu uma outra gente, uma outra cultura e outras relações entre as pessoas que efectivamente bloquearam tentativas subsequentes de implantação de regimes económicos e sociais escravocratas.

Ao modelo de Carreira, claramente inconsistente com as características da evolução humana nas ilhas, deve ser contraposto um outro modelo, que facilite uma abordagem compreensiva das complexidades da vida no arquipélago ao longo dos séculos e que seja capaz de dar conta da actual fisionomia humana, social e cultural do país. António Carreira, nos estudos de investigação que efectuou e que incidiram essencialmente sobre Santiago, socorreu-se de certas e, muitas vezes, aparentes similaridades da história económica e social dessa ilha com as realidades do sistema de plantações, existente noutras paragens, para adoptar o modelo escravocrata na procura do entendimento do fenómeno cabo-verdiano.

Estudos posteriores seguiram-lhe as pisadas e, hoje, o modelo escravocrata é geralmente aceite, não obstante as suas múltiplas insuficiências, designadamente as seguintes:

• Não explica o que se passou nas outras ilhas

• Não explica as diferenças fundamentais da sociedade cabo-verdiana actual em relação a outras sociedades noutras paragens, elas sim tributárias de sistemas escravocratas:

• Não explica a unidade orgânica Cultural de todo o povo cabo-verdiano.

Pelo contrário, pode e já foi usado para

• dividir o país em uma parte, vista como berço ou matriz da entidade cabo-verdiana a ilha de Santiago, ou um dos seus concelhos , e outras partes, dadas como assimiladas, na linguagem de alguns, em que os elementos salientes da matriz mostram-se mais ou menos abotoados ou ligados a elementos importados do estrangeiro;

• Criar dicotomias artificiais entre regiões do país na base de preponderância do factor africano ou do factor europeu;

• Introduzir elementos valorativos de pureza e/ou de falta de pureza do que é cabo-verdiano;

• Justificar caracterizações da população cabo-verdiana, encontradas em enciclopédias e outros livros de referência por esse mundo fora, que nos dividem em 71% de crioulos ou mulatos, 28% de negros e 1 % de brancos.

Impõe-se, portanto, encontrar um modelo da génese da entidade e da identidade cabo-verdiana que resista ao teste dos factos, que permita antecipar os obstáculos na mobilização do capital social necessário para vencer o desafio do desenvolvimento e que seja um instrumento poderoso de reforço da Nação cabo-verdiana.

Da análise dos documentos históricos sobre Cabo Verde, o que salta à vista não é o facto de haver escravos (escravos havia por toda a parte) ou que se procurasse instalar um sistema escravocrata no arquipélago. O que chama a atenção é, precisamente o falhanço completo dessas tentativas e a emergência, imediatamente a seguir, de um novo ser cultural, vibrante de vida e armado de uma língua própria, cujo protagonismo para além das ilhas, mesmo no século XVI, deixou marcas ainda visíveis na língua falada na Casamansa, na Guiné-Bissau, e, do outro lado do Atlântico, na ilha de Curaçau.

Pode-se, pois, afirmar que a entidade cabo-verdiana surgiu e vingou no terreno prenhe de possibilidades, deixado pelos colapsos sucessivos das tentativas de estruturação da economia de Cabo Verde com base em sistemas escravocratas.

A fragilização e o colapso do sistema económico escravocrata abria caminho para experimentações humanas e sociais. A dinâmica que tais experimentações conseguiam adquirir variava de lugar para lugar, de região para região e de ilha para a ilha e dependia da força relativa dos elementos inibidores no meio circundante. Condicionavam especialmente essas experimentações a estrutura da propriedade existente no sítio, a presença forte do poder administrativo, o nível de recursos naturais na ilha ou na região e as características do fluxo de novos escravos que se conduzia para aí. Todas essas experimentações vieram revelar uma ligação orgânica profunda que lhes permitia reforçarem-se mutuamente, apesar do seu distanciamento geográfico, e assumirem-se como os preconizadores de uma entidade cultural única em todo o arquipélago.

A miscigenação, que acompanhou, a par e passo, tais experimentações, provocou um salto qualitativo na consciência de si próprio do cabo-verdiano: não se reconhecia em qualquer das raças estabelecidas e não se sentia compelido a pertencer ou a aproximar-se delas. Termos como branco, na linguagem comum, passaram a ter um outro significado que não a cor da pele ou a designação de raça.

A cabo-verdianidade, que ia emergindo, afirmava-se como uma entidade cultural a par da entidade portuguesa, que lhe servira de matriz; isto é ilustrado, de forma, clara e inequívoca, na dinâmica da própria língua crioula que, rapidamente, se constituiu na língua materna do novo ente cultural, excluindo qualquer outra e, particularmente, a língua portuguesa.

A universalidade do fenómeno cabo-verdiano no espaço do arquipélago manifestava-se no facto de tocar e afectar todas as classes sociais e na forma como absorvia pessoas que, vindas de outras paragens, se fixaram nas ilhas. Tal sucesso testemunhava a força vibrante, criadora e sustentada que irrompia, quando as relações sociais prevalecentes se desmoronavam sob o impacto das fomes, da diminuição da actividade mercantil, da perda de receitas aduaneiras e, ainda, dos ataques dos piratas.

Mas as experimentações, que se iam verificando, aqui e acolá, nas diferentes ilhas, não conseguiriam prevalecer no ambiente socioeconómico envolvente, nem teriam a possibilidade de coalescer no fenómeno global da cabo-verdianidade se a trajectória seguida na evolução da vida do arquipélago, ao longo dos séculos, não fosse uma linha muito fina entre a vida e a morte. Do facto só se pode retirar esta constatação: o cabo-verdiano é o produto cultural de uma existência no limiar da sobrevivência.

As situações-limites, vividas anos sem conta, em consequência das secas devastadoras, que lançavam milhares para morte, e da ausência de alternativas sustentáveis para a economia do arquipélago, induziram plasticidade nas relações humanas existentes e despoletaram muita imaginação e criatividade na construção de novas relações entre os indivíduos e entre estes e o meio circundante. A entidade cultural ímpar que é o cabo-verdiano poderia emergir, mas não sem passar por um parto longo e extremamente doloroso.

Pode-se tomar o abandono da cidade de Ribeira Grande como início dessa longa caminhada para a emergência e a consolidação da cabo-verdianidade. Sem a actividade mercantil da cidade, a única alternativa à actividade agro-pecuária desaparecia e não havia mais importação de factores potencialmente atentatórios à experimentação, que se verificava nas ilhas. Talvez, por isso, a memória colectiva dos cabo-verdianos não regista, nem demonstra nostalgia e, muito menos, canta a perda dessa cidade, sendo para todos uma cidade dos portugueses, que ficou para trás na memória dos tempos.

As gentes das ilhas, deixadas, à sua sorte, souberam estabelecer canais múltiplos de comunicação através dos quais partilhavam informações sobre o esforço titânico que todas e cada uma vinham desenvolvendo na libertação de relações sociais preestabelecidas e na construção de uma existência mais em consonância com o ambiente envolvente e mais solidária nas dificuldades extremas. Os frutos desse diálogo de séculos manifestaram-se de forma exuberante quando, pela primeira vez, a sociedade rural cabo-verdiana se urbanizou e criou a sua primeira cidade Mindelo, em S. Vicente.

O efeito de cidade que S. Vicente exerceu sobre todo o arquipélago foi demonstrativo da autenticidade e da universalidade das diferentes formas de expressão que vinham sendo criadas, de forma aparentemente isolada, em cada ilha. A interacção dessas expressões no ambiente cosmopolita de cidade deu às contribuições separadas de cada ilha uma amplitude e uma abrangência que provocou no povo do arquipélago o reconhecimento de si próprio e que permitiu-lhe visionar a dimensão exacta do seu património cultural.

A morna é o exemplo mais espectacular disso tudo. Criado na Boavista, adquiriu maturidade na Brava com Eugénio Tavares e, levado para S. Vicente, atingiu foros de universalidade, afirmando-se como a música dos cabo-verdianos. Hoje, a Cesária vem confirmando isso perante plateias de todos os continentes.

Desde a independência nacional que um segundo round de urbanização se está a verificar em direcção à cidade da Praia, participando nela gente vinda de todos os pontos do país, mas particularmente do interior de Santiago. A criação, e o desenvolvimento da Capital da Nação está a ser acompanhada, também, de uma exuberância cultural, com particular destaque para formas culturais que, até agora, têm sido específicas do interior da ilha de Santiago. O país inteiro está à espera de enriquecer o seu património cultural com as contribuições que naturalmente resultarão da interacção dessas formas de expressão no novo espaço urbano.

Da compreensão da dinâmica das ilhas na forja do cabo-verdiano, avançada pelo novo modelo, chega-se a conclusão que, para o bem de Cabo Verde, é preciso aumentar os canais de comunicação, desenvolver plataformas comuns de acção e explorar sinergias possíveis entre elas. O maior crime que se pode cometer contra cada uma delas e contra Cabo Verde é governar ou administrar as ilhas como se de mundos à parte se tratassem.

O novo modelo ajuda a descortinar caminho a seguir na afirmação do carácter único de Cabo Verde no mundo e, ao mesmo tempo, propicia, a cada cabo-verdiano, os elementos para, tranquilamente, se ver e se orgulhar da sua identidade e do seu património cultural. As dúvidas, resultantes de raciocínios extremados de certas pessoas que, fazendo uso do modelo de Carreira, questionam a própria existência da cabo-verdianidade e acusam o cabo-verdiano de racista em relação aos negros africanos, mostram-se sem nenhum suporte quando vistas à luz do novo modelo.

Atitudes racistas nunca tiveram grande expressão em Cabo Verde e, de qualquer forma, as que existiam viram-se superadas na forja do cabo-verdiano. Reacções de estranheza só podem ser de natureza cultural e civilizacional. Não se pode esquecer que o cabo-verdiano é cristão e toda a sua forma de ver a si próprio e ao mundo baseia-se na tradição cristã, mostrando, naturalmente, alguma dificuldade em funcionar com pessoas com uma outra filosofia de vida ou com outras tradições e crenças religiosas.

A adopção do modelo, que postula a emergência da entidade cabo-verdiana a partir de uma existência no limiar da própria sobrevivência, leva não só à compreensão de certas características muito peculiares e únicas do cabo-verdiano como também a assumir que tais situações extremas terão criado handicaps graves na sociedade. Muitos dos problemas, com que a sociedade hoje se depara na sua marcha para a modernidade (ausência, nas pessoas, de espírito de equipa, de espírito associativo e de espírito cívico; incapacidade geral das organizações sociais em ganhar autonomia e promover o surgimento da sociedade civil; deficiências na instalação e na maturação organizacional de instituições sociais e de instituições do Estado; dificuldades surpreendentes no desenvolvimento do sentido do interesse geral e do interesse público; pobreza do exercício do poder do Estado) poderão ter as suas raízes nos referidos handicaps.

É fundamental que nos saibamos munir de instrumentos conceptuais adequados à compreensão da complexidade da emergência e da existência da entidade cabo-verdiana. O desenvolvimento do país depende da construção de uma visão, a partir da qual se possa fazer a mobilização e congregação do esforço cabo-verdiano na realização do sonho de gerações: Cabo Verde orgulhoso das suas origens e do seu destino e triunfante sobre as fatalidades da sua existência.