Expresso das ilhas, edição 653 de 04 de Junho de 2014
A subordinação das
Forças Armadas ao poder civil constitucionalmente legitimado é fundamental para
a estabilidade da democracia. A atribuição ao presidente da república do cargo
de comandante supremo das Forças Armadas com competência para nomear o comando
operacional das tropas na pessoa do chefe de estado-maior visa consolidar a
noção de que as FA estão ao serviço da nação e não de nenhum governo, ou
maioria ou partido político. A existência de um Conselho Superior de Defesa Nacional,
presidido pelo PR, mas com participação do PM e outros ministros e também de
deputados, eleitos pela Assembleia Nacional para o efeito, deixa transparecer a
necessidade de coordenação de todos os órgãos de poder político na manutenção do
papel único das Forças Armadas no quadro constitucional. Quanto mais jovem uma
democracia for, maior atenção se deve dar ao processo de institucionalização de
umas Forças Armadas verdadeiramente republicanas.
Se alguém tivesse
dúvidas a esse respeito certamente que desapareceriam com o exemplo próximo da
Guiné-Bissau. A ligação com interesses partidários e pessoais das chefias nunca
lhes permitiu actuarem como forças republicanas. Sucessivos golpes de Estado e
intervenções de militares na vida política ao longo dos quarenta anos de
independência impediram os guineenses de viver uma vida de paz, de liberdade e
de prosperidade. Mesmo nos casos em que a intervenção e subsequente tutela dos
militares sobre a ordem política é benigna como aconteceu em Portugal no 25 de
Abril de 1974 e nos anos seguintes até 1982, há que fazer voltar os militares
aos quartéis e garantir que obedeçam às ordens do poder civil. Em qualquer das circunstâncias,
fazer evoluir a instituição militar de uma posição de tutela para a de
subordinação não é tarefa fácil. Torna-se mais difícil se se deixa perpetuar
equívocos que evocam protagonismos passados e que no quadro constitucional actual
se mostram completamente desadequados e mesmo prejudiciais.
Em Cabo Verde, com a Constituição
de 1992, criaram-se forças armadas realmente republicanas. Antes e na sequência
da independência nacional existiam as chamadas forças armadas revolucionárias
do povo (FARP) que de acordo com o artigo 19º da Constituição de 1980 constituíam
uma força supranacional, da Guiné e de Cabo Verde com a missão de defesa e de segurança
interna dos dois países. As FARP mantiveram a sua natureza de braço armado do
partido único, eufemisticamente chamadas de instrumento
de luta de libertação nacional ao serviço do povo, mesmo depois da revisão
de 1981, realizada após o golpe de Estado na Guiné, e do fim do projecto da
unidade Guiné-Cabo Verde. Por isso é que, quando em 1988 através do Decreto-lei
113-A/88 se fez a reestruturação da hierarquia militar, entendeu-se que os
oficiais comandantes, por razões políticas e históricas, deviam encimar o topo
da hierarquia militar, seguidos dos oficiais superiores, oficiais capitães e
oficiais subalternos. É evidente que tal estrutura hierárquica, própria de umas
forças armadas politizadas, não poderia persistir em democracia.
A Constituição de 1992
determina que as forças armadas sejam rigorosamente apartidárias e se
subordinem aos órgãos de soberania eleitos. A experiência histórica de outros
processos de construção da democracia aconselham que se elimine rapidamente os elementos
tributários da cultura institucional passada sob pena de se vir a sofrer
tensões perigosas. Em particular, é de todo pertinente não deixar vestígios de
hierarquias anteriores que de alguma forma ou outra interfiram ou ensombrem a
relação com o poder civil legítimo. No geral, procederam bem os diferentes
governos nos últimos vinte anos de democracia em legislar de forma a conformar
cada vez mais as FA de Cabo Verde aos ditames constitucionais.
Estranha pois que
recentemente o governo queira fazer marcha atrás e através de uma proposta de
lei procure revitalizar os oficiais comandantes. O estatuto proposto, entre
várias regalias normalmente concedidas a titulares de órgãos de soberania,
ainda estabelece que aos oficiais comandantes são devidas honras e as continências previstas nos regulamentos militares
para o mais elevado posto da hierarquia. Claro que isso é inaceitável.
Já é mau que ainda se
persista com comemorações das forças armadas cabo-verdianas que colocam o seu
nascimento em 1967, oito anos antes da independência de Cabo Verde. Com isso
pode-se estar a induzir numa instituição militar a ideia de que é anterior ao
Estado que afinal ajudou a criar e em relação ao qual tem responsabilidades
acrescidas e únicas, eventualmente de tutela. Exemplos de vários países mostram
que isso é como brincar com o fogo.
Na última sessão do Parlamento
a maioria deixou passar a proposta do governo do estatuto dos comandantes. Foi
incongruente. Em 2012 tinha aprovado uma autorização legislativa ao governo
para definir os estatutos dos militares. Nesse diploma não fez qualquer
referência aos oficiais comandantes e expressamente revogou o único diploma que
ainda os mencionava, o decreto legislativo 81/95. O governo ignorou os limites
impostos e inscreveu outra vez a matéria nos estatutos dos militares. Foi um
retrocesso. Na relação poder civil e poder militar não se pode dar passos em
falso. É fundamental que se expurgue dos novos estatutos de militares essa referência
e que se continue com a construção de uma cultura militar que nada mais tenha a
ver com a postura de braço armado de qualquer partido e cada vez mais como
força nacional e profissional a favor de toda a nação.