quarta-feira, junho 04, 2014

Brincar com o fogo



Expresso das ilhas, edição 653 de 04 de Junho de 2014


A subordinação das Forças Armadas ao poder civil constitucionalmente legitimado é fundamental para a estabilidade da democracia. A atribuição ao presidente da república do cargo de comandante supremo das Forças Armadas com competência para nomear o comando operacional das tropas na pessoa do chefe de estado-maior visa consolidar a noção de que as FA estão ao serviço da nação e não de nenhum governo, ou maioria ou partido político. A existência de um Conselho Superior de Defesa Nacional, presidido pelo PR, mas com participação do PM e outros ministros e também de deputados, eleitos pela Assembleia Nacional para o efeito, deixa transparecer a necessidade de coordenação de todos os órgãos de poder político na manutenção do papel único das Forças Armadas no quadro constitucional. Quanto mais jovem uma democracia for, maior atenção se deve dar ao processo de institucionalização de umas Forças Armadas verdadeiramente republicanas.
Se alguém tivesse dúvidas a esse respeito certamente que desapareceriam com o exemplo próximo da Guiné-Bissau. A ligação com interesses partidários e pessoais das chefias nunca lhes permitiu actuarem como forças republicanas. Sucessivos golpes de Estado e intervenções de militares na vida política ao longo dos quarenta anos de independência impediram os guineenses de viver uma vida de paz, de liberdade e de prosperidade. Mesmo nos casos em que a intervenção e subsequente tutela dos militares sobre a ordem política é benigna como aconteceu em Portugal no 25 de Abril de 1974 e nos anos seguintes até 1982, há que fazer voltar os militares aos quartéis e garantir que obedeçam às ordens do poder civil. Em qualquer das circunstâncias, fazer evoluir a instituição militar de uma posição de tutela para a de subordinação não é tarefa fácil. Torna-se mais difícil se se deixa perpetuar equívocos que evocam protagonismos passados e que no quadro constitucional actual se mostram completamente desadequados e mesmo prejudiciais. 
Em Cabo Verde, com a Constituição de 1992, criaram-se forças armadas realmente republicanas. Antes e na sequência da independência nacional existiam as chamadas forças armadas revolucionárias do povo (FARP) que de acordo com o artigo 19º da Constituição de 1980 constituíam uma força supranacional, da Guiné e de Cabo Verde com a missão de defesa e de segurança interna dos dois países. As FARP mantiveram a sua natureza de braço armado do partido único, eufemisticamente chamadas de instrumento de luta de libertação nacional ao serviço do povo, mesmo depois da revisão de 1981, realizada após o golpe de Estado na Guiné, e do fim do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde. Por isso é que, quando em 1988 através do Decreto-lei 113-A/88 se fez a reestruturação da hierarquia militar, entendeu-se que os oficiais comandantes, por razões políticas e históricas, deviam encimar o topo da hierarquia militar, seguidos dos oficiais superiores, oficiais capitães e oficiais subalternos. É evidente que tal estrutura hierárquica, própria de umas forças armadas politizadas, não poderia persistir em democracia.
A Constituição de 1992 determina que as forças armadas sejam rigorosamente apartidárias e se subordinem aos órgãos de soberania eleitos. A experiência histórica de outros processos de construção da democracia aconselham que se elimine rapidamente os elementos tributários da cultura institucional passada sob pena de se vir a sofrer tensões perigosas. Em particular, é de todo pertinente não deixar vestígios de hierarquias anteriores que de alguma forma ou outra interfiram ou ensombrem a relação com o poder civil legítimo. No geral, procederam bem os diferentes governos nos últimos vinte anos de democracia em legislar de forma a conformar cada vez mais as FA de Cabo Verde aos ditames constitucionais.
Estranha pois que recentemente o governo queira fazer marcha atrás e através de uma proposta de lei procure revitalizar os oficiais comandantes. O estatuto proposto, entre várias regalias normalmente concedidas a titulares de órgãos de soberania, ainda estabelece que aos oficiais comandantes são devidas honras e as continências previstas nos regulamentos militares para o mais elevado posto da hierarquia. Claro que isso é inaceitável.
Já é mau que ainda se persista com comemorações das forças armadas cabo-verdianas que colocam o seu nascimento em 1967, oito anos antes da independência de Cabo Verde. Com isso pode-se estar a induzir numa instituição militar a ideia de que é anterior ao Estado que afinal ajudou a criar e em relação ao qual tem responsabilidades acrescidas e únicas, eventualmente de tutela. Exemplos de vários países mostram que isso é como brincar com o fogo.
Na última sessão do Parlamento a maioria deixou passar a proposta do governo do estatuto dos comandantes. Foi incongruente. Em 2012 tinha aprovado uma autorização legislativa ao governo para definir os estatutos dos militares. Nesse diploma não fez qualquer referência aos oficiais comandantes e expressamente revogou o único diploma que ainda os mencionava, o decreto legislativo 81/95. O governo ignorou os limites impostos e inscreveu outra vez a matéria nos estatutos dos militares. Foi um retrocesso. Na relação poder civil e poder militar não se pode dar passos em falso. É fundamental que se expurgue dos novos estatutos de militares essa referência e que se continue com a construção de uma cultura militar que nada mais tenha a ver com a postura de braço armado de qualquer partido e cada vez mais como força nacional e profissional a favor de toda a nação.

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