JORNAL 668 DE 17 DE
SETEMBRO DE 2014
Editorial
Iniciaram-se as aulas
do ano lectivo de 2014-2015. Como já é habitual o acontecimento é acompanhado
por grandes aparições na televisão e na rádio do Primeiro-ministro e de membros
do governo. O alarido maior é feito à volta de distribuição de kits escolares.
Este ano celebraram-se os dez anos de distribuição de kits com o governo e a
FICASE a congratularem-se com a sua generosidade “oficial”, generosidade na
realidade suportada pelos impostos de todos e pelas dádivas de entidades
privadas. Na plateia vêem-se crianças e pais em demonstrações públicas de
agradecimento por terem sido “contemplados”. Também não faltaram os anúncios de
construções novas e reparações em escolas e liceus. Ausente mesmo só esteve a
problemática da qualidade do ensino. Como de costume, no fim do ano lectivo não
houve avaliação compreensiva dos resultados porque se estaria a compilar dados
e no início do novo ano slogans e anúncios substituem discussões aprofundadas
sobre o assunto.
Declarações de
governantes que “o sistema educativo
está bem e que o ensino superior está a melhorar” ignoram o problema grave da
falta de empregabilidade dos jovens saídos dos liceus e universidades do país.
Sucessivos relatórios de competitividade produzidos pelo Forúm Económico
Mundial apontam a inadequação do ensino e formação da mão-de-obra como um dos principais
factores problemáticos para se criar e conduzir negócios em Cabo Verde. Ou seja,
o retorno dos milhões de contos – 17 por cento do Orçamento do Estado
investidos todos os anos na educação – fica aquém do que o país precisaria para
ser competitivo, atrair capital nacional e estrangeiro e melhorar a
produtividade. Para o governo esse facto parece não merecer importância
suficiente. Não se vê um comprometimento forte para colocar a educação no nível
de qualidade que se esperaria de quem não tem outras riquezas e só lhe resta
investir inteligente e eficazmente nos seus recursos humanos. É o que todos os
pequenos países bem-sucedidos do mundo fizeram e continuam a fazer. Em Cabo Verde,
pelo contrário, privilegia-se o ilusionismo, os modismos e as agendas
ideológicas.
No ano passado, a grande
novidade foi o ensino bilingue do português e do crioulo. Este ano é o empreendedorismo.
Está a ser anunciado como a grande inovação curricular que vai colocar os
jovens do país no caminho do auto-emprego,
de geração de empregos e da construção da base empresarial do país.
Espera-se de professores, capacitados em poucos dias de formação e naturalmente
sem qualquer experiência própria como empreendedores, que sejam capazes de
transmitir aos jovens os instrumentos e a atitude certos para se assenhorearem
de oportunidades do mercado aberto para fazer produtos ou fornecer serviços vendíveis
e a partir daí construírem uma base autónoma de prosperidade.
O governo, em
dificuldades pelo facto de a economia não criar empregos em número suficiente e
de qualidade para os milhares de jovens que saem todos os anos para o mercado
de trabalho, parece ter encontrado uma saída. Facultando a formação em empreendedorismo,
já não lhe cai em cima toda a responsabilidade pelo alto desemprego no país. Ela
passa a ser compartilhada. O raciocínio é simples: dá-se-lhes formação para se
auto empregarem e se não forem bem-sucedidos só podem culpar a si próprios.
Em Cabo Verde toma-se como normal recorrer ao
sistema de ensino para se passar as mais diferentes mensagens. Arregimentam-se
crianças em marchas pelas ruas a favor de causas as mais diversas. Matérias que
dividem a sociedade como é caso da adopção do Alupec e do ensino do crioulo são
unilateralmente forçadas no ensino pretendendo com isso acabar com todo o
debate e impor uma decisão única para a matéria. O sistema educativo é visto no
essencial como um aparelho ideológico do Estado através do qual preferências
políticas, interpretações da história e agendas partidárias são passadas para
as camadas mais influenciáveis da sociedade – os seus jovens e crianças. Resistências
socias a isso não são muitas. Persiste a tentação de se moldar as novas
gerações no ideal do homem novo. Não se apropriou ainda o princípio
constitucional de que o Estado não deve impor opções políticas, filosóficas ou
estéticas aos cidadãos da república.
Na semana passada ouviu-se
o Primeiro-ministro declarar que a rota dos escravos deveria ser estudada nas
escolas. O facto do caboverdino não se ver como descendente de escravos e
também do facto de nem nas suas obras literárias (Eugénio Tavares, Baltasar
Lopes e os outros claridosos) desde de há mais de um século e nas manifestações
artísticas populares em particular da música não evidenciarem quaisquer sinais
da vivência de escravo parece não perturbar o PM. Quer encontrar “quilombos” em
Cabo Verde. Na mesma linha apareceram outros a sugerir que se inclua no
currículo o pensamento de Amilcar Cabral.
A pressão no sentido da
“reafricanização dos espíritos” continua e a educação é o veículo escolhido para
o fazer passar. Mas não é esse o papel que se espera do sistema educativo
nacional. O seu propósito fundamental deve ser o de transmitir conhecimento já
consolidado nas diferentes áreas do saber e adequar os recursos humanos de Cabo
Verde às exigências do mundo moderno e globalizado. Deve ser evidente para
todos que a instrumentalização
político-ideológica do sistema não é a via para se atingir os níveis de
excelência e saber cruciais para o futuro de um país insular, sem recursos
naturais e com um mercado exíguo.