A ida do PAICV para a oposição talvez seja uma chance de o país se modernizar e abandonar definitivamente o lastro dos anos de independência. A análise é de Humberto Cardoso, para quem Cabo Verde está numa encruzilhada e o futuro do país depende muito do desfecho das próximas eleições. Por isso, diz o Deputado, é imperativo que o PAICV perca as eleições e o MpD tenha a possibilidade de colocar outra vez Cabo Verde no caminho do crescimento económico e do desenvolvimento sustentado capaz de debelar o desemprego e a pobreza e trazer esperança renovada para todos. A relação da sociedade cabo-verdiana com os partidos políticos, crise de representação, o fenómeno Mac# 114 e o significado das eleições de 2016 são outros tópicos desta entrevista.
André Amaral
Expresso das Ilhas – Como perspectiva o novo ano político?
Humberto Cardoso – O ano político que se inicia promete ser um ano político especial. Vai ser um ano de todas as eleições: legislativas, autárquicas e presidenciais. A possibilidade de alternância em todos os órgãos de poder político vai mobilizar a atenção e muita energia de toda a sociedade. As legislativas, em particular porque decidem quem governa, serão bastante disputadas. A situação de Cabo Verde preocupa toda a gente. Todos querem saber como vamos sair da situação de quase estagnação económica, do muito desemprego existente e da crescente desigualdade social. Sem falar da pesada dívida pública que diminui consideravelmente a possibilidade de o Estado imprimir algum dinamismo através do investimento público. Os partidos políticos, com toda a sua máquina de campanha, vão estar bastante activos com os seus projectos de governo a construir vontade política favorável e a mobilizar votos. Teremos ocasiões de alguma tensão e às vezes de maior crispação política do que o habitual, mas isso é próprio das democracias. Os momentos eleitorais são acompanhados de uma forte polarização da sociedade. Depois volta-se ao normal da legislatura em que nos próximos cinco anos de mandato há um governo e uma oposição democrática.
Como vê a relação da sociedade cabo-verdiana com os partidos políticos particularmente à luz dos acontecimentos do primeiro semestre deste ano em que muita coisa foi dita contra os políticos?
O MpD e o PAICV tiveram origem em momentos marcantes da história de Cabo Verde. Por causa disso têm raízes profundas, bases alargadas e mobilizam paixões. O que fundamentalmente os opõe são as suas diferentes narrativas que têm da história de Cabo Verde. Para o PAICV, o valor supremo é a independência. Os governos apresentam-se como paternalistas e sentem-se legitimados pelo que da ajuda internacional captam e distribuem privilegiando quem os seguiu, o que nos primeiros quinze anos pomposamente chamaram reconstrução nacional ou construção do Estado e nos últimos quinze anos chamam agenda de transformação. Curioso como no fim desses ciclos de quinze anos deixam o país numa, de facto, estagnação económica. Para o MpD, pelo contrário, a independência só faz sentido com a liberdade e a democracia. De outro modo só existe opressão, sonhos não realizados e prosperidade não conseguida. Os anos 90 foram de crescimento rápido porque soltamos a economia das grilhetas do estatismo retrógrado, valorizamos a iniciativa privada e restauramos confiança na actividade económica com a afirmação do direito de propriedade, o estabelecimento do Estado de direito e a independência dos tribunais entre outras medidas. O quadro institucional, produto das reformas económicas, deixado pelo MpD após a saída do poder em 2001 ainda permitiu que alguma bonança vinda do boom internacional, que terminou em 2008, bafejasse Cabo Verde durante três anos. Depois foi a recessão de 2009 e o crescimento anémico, não obstante os investimentos feitos com dinheiro conseguido de empréstimos que hoje colocam a dívida pública acima de 114% do PIB nacional. Como se pode ver claramente, são duas narrativas dificilmente reconciliáveis. Sendo eles os dois grandes partidos, e não havendo consenso sobre aspectos de fundo, surgem inevitavelmente crispações que acabam por afectar todo o ambiente político. Por exemplo, uma das narrativas requer que o povo seja eternamente grato e se conforme com o que vai tendo. Não assume os maus resultados e procura fazer todos responsáveis pelo que vai mal. Outra narrativa diz que a prosperidade sustentável é aquela que deriva da dinâmica pessoal, empresarial e nacional e não de ajudas ou dívida. E que a responsabilidade pela condução das políticas do Estado é obviamente do governo que tem a obrigação de prestar contas e responder pelas suas políticas. Uma das causas das dificuldades da sociedade na relação com os partidos políticos tem a ver com a sistemática fuga à responsabilidade por quem de direito. A culpa tende morrer solteira. Na confusão que daí resulta, as pessoas não vêem eficácia por exemplo na acção dos deputados em obrigar o governo a cumprir e acabam por perder respeito pelo Parlamento e a ver só interesses mesquinhos nos políticos. O sentimento geral passa então a ser de desamparo e de medo. Frustração e medo em relação a quem manda e ansiedade face ao futuro incerto. No dia-a-dia evitam falar do governo e preferem falar dos “políticos”. Quando instados falam dos deputados que não têm poder executivo e dificilmente os pode dificultar a vida.
Pode-se falar então de crise de representação?
De facto há um sentimento de que não estão a ser representados. Mas, como disse antes, isso tem muito a ver com o facto de o governo fugir às responsabilidades e quando forçados pela oposição a explicar-se, cria-se uma dessas cenas no Parlamento que depois deixa toda a gente maldisposta. A aparente impotência do Parlamento confunde as pessoas. Põem a culpa nos deputados porque é mais difícil ver que na maior parte das vezes é o eixo do governo e a sua maioria parlamentar que criam problemas no funcionamento da Assembleia Nacional. É só ver quem ganha com um Parlamento paralisado e descredibilizado para adivinhar quem tem interesse em usar tácticas que o possam deixar mal. Ou alimentar estereótipos contra deputados como é o caso do Primeiro-ministro que esteve a insinuar que não se trabalha no Parlamento. Por isso, a crise de representação de que se pode falar em Cabo Verde não é a mesma que, por exemplo, se observa nas democracias europeias. Aí o cansaço tem mais a ver com a crescente incapacidade dos órgãos nacionais de soberania em fazerem-se ouvir no quadro da União Europeia contrapondo aos interesses de um ou mais países poderosos ou então ao poder do mercado, em particular, do mercado financeiro. No caso de Cabo Verde a questão de fundo é que o governo do PAICV acha que não tem que assumir responsabilidades e prestar contas a ninguém. Quando forçado não se abstém de fragilizar as instituições para atingir os seus fins.
Como explica então o fenómeno MAC#114 e as muitas discussões sobre o Parlamento, o papel dos deputados e os círculos uninominais?
A questão dos Estatutos dos Titulares de Cargos Políticos tocou num nervo sensível. Mexer nos salários de políticos encontra sempre resistências. Não há, de facto, nenhum momento óptimo para fazer isso. Podia ter sido em 2006 mas foi chumbado pelo MpD. Neste ano o Estatuto foi discutido no âmbito de um pacote de medidas que exigiam maiorias qualificadas de dois terços. Foi um processo político longo. A questão salarial só apareceu nas vésperas da discussão e trazida pelo Primeiro-ministro. Os líderes parlamentares aceitaram introduzir mais um artigo sobre o estatuto remuneratório durante a discussão do projecto de lei. O governo não disse uma palavra ao longo de todo o debate. As manifestações que se seguiram após a aprovação tinham à sua frente “destacados militantes e dirigentes” do PAICV segundo o próprio Primeiro-ministro em declarações à radio nacional. Tudo indica que a recém-eleita presidente do PAICV Janira Almada quis afirmar-se, cavalgando uma onda de populismo dirigida fundamentalmente contra o Parlamento. É interessante notar que na sequência da entrevista do PM a dizer que o governo concordava com o ajustamento salarial não houve mais manifestações. Para alguns observadores provavelmente entusiasmados com o Podemos e o Syriza grego já estavam a pensar em novos partidos. Basicamente tudo isso foi esquecido logo a seguir ao 1º de Maio. A UNTCS junto com o MAC#114 tentou organizar manifestações contra o desemprego e foi um fiasco completo. A mensagem foi passada. Pode-se até fazer manifestações contra o Parlamento mas não contra o governo. A agitação populista teve os seus propósitos e seus instigadores. Enfraqueceu-se o Parlamento dando alento a todos que aproveitam todas as oportunidades para se queixarem das insuficiências da democracia representativa que sintomaticamente chamam de democracia “burguesa”. Na esteira disso a questão da representação no Parlamento ganhou um outro fervor e muito foram os fóruns onde se discutiram círculos uninominais, perfil dos deputados nas listas plurinominais, a introdução de primárias e até o uso de sondagens para selecção de candidatos. Enquanto a atenção crítica de todos fixava-se no Parlamento o PM e os ministros envolviam-se numa onde de inaugurações e outros eventos em todas as ilhas num frenesim que só pode compreender-se de uma campanha eleitoral antes de tempo. A toda essa actividade ainda veio juntar-se as comemorações do 40º aniversário que se prolongaram meses seguidos com deslocações ministeriais às comunidades emigradas num tom que só se compreende se for campanha eleitoral.
Quer dizer que a campanha há muito que começou? E com isso a velha questão do uso dos meios do Estado?
Veja, a campanha para as eleições de 2016 começou bem cedo com as eleições internas no PAICV. Eleições em que os candidatos eram duas ministras e o líder parlamentar. A tentação de utilização das respectivas posições no aparelho do Estado para chegar aos militantes era quase inevitável. Ganhou a ministra Janira Almada mas o líder parlamentar Felisberto Vieira denunciou situações em que se usou bolsas básicas, verguinhas, bolsas de estudo e outras benesses para a compra de votos. Noutras situações designadamente nas eleições presidências de 2012 que dividiram as hostes do PAICV denúncias do género tinham sido feitas e que na época corroboram as também feitas pelo partido na oposição. A derrota de Felisberto Vieira, que tinha contraposto essas práticas aos valores de Amilcar Cabral, sugere que cada vez mais estão a ser assimiladas pelo partido no governo. As recentes denúncias à volta do Fundo do Ambiente e de como são utilizados bens públicos para financiar organizações dirigidos por activistas locais do partido, confirmam precisamente isso. Não podia ser de outro modo. A propaganda comanda o essencial da relação do governo com a população. Toda a relação do Estado com os cidadãos é susceptível de ser transformada numa acção de propaganda. Focam-se as lentes da televisão vezes sem conta sobre um idoso que recebe um cartão de pensionista, ou uma criança que recebe materiais escolares, uma família que ocupa uma habitação social ou uma mãe que recebe uma cesta básica mas sempre na presença ministros e sem nenhum problema de consciência ou respeito pela dignidade das pessoas. Estranho que para este estado de coisas não haja indignação geral. Até parece que todos acham que é natural que assim se faça para condicionar politicamente as pessoas e ganhar votos. Se assim é, quer dizer que o fenómeno é mais profundo do que deixam antever as denúncias feitas. Talvez mais ao encontro ao que a sondagem do Afrobarómetro indicou.
Disse atrás que a campanha já começou. Desde quando?
Repare que desde da eleição da Dra. Janira Almada como líder do partido no governo que se vive uma situação peculiar em Cabo Verde. O líder de partido José Maria Neves que tinha sido, entre aspas, eleito em 2011 para o cargo de Primeiro-ministro foi substituído no partido mas continua como PM. Actualmente goza de manifestações avulsas de confiança da actual líder do partido e pelo líder da maioria parlamentar. Não se sabe se governa pelo programa de governo aprovado no parlamento em 2011 ou se segue a plataforma que elegeu a nova líder do partido que sustenta o seu governo. Indefinições nesta matéria acumulam-se. Por um lado, há tensões diversas e lutas por protagonismo entre elementos do sistema partido, governo e maioria parlamentar e por outro aparecem sintomas estranhos do género: o Primeiro-ministro já se permitir distanciar dos resultados da sua governação criticando por exemplo a partidarização da administração pública que dirigiu durante quinze anos. Há dias envolveu-se numa polémica nas redes sociais porque clamava pela desestatização das mentes quando se sabe o quanto o Estado tem feito sob a sua batuta para manter todos com rédea curta centralizando, controlando tudo, aprofundando a dependência das pessoas através do assistencialismo e incessantemente passando a sua narrativa de semideus na sua gestão de impossibilidades. Agora até se põe na posição suprapartidária de recomendar aos outros órgãos de soberania contenção neste período pré-eleitoral. Contenção do PM é que não se vê. Em campanha todos os dias no país e em largas estadias no estrangeiro a apresentar livro e até em cerimónias de supostas condecorações que quanto se sabe é uma competência do presidente da república. Quanto a governar até parece que temos um governo de gestão. A ministra das Finanças quase ausente durante meses seguidos absorvida pela sua candidatura ao BAD parece que nem agora regressou completamente. Nem os dados do segundo trimestre do INE a indicar crescimento do PIB em 0,1 % parece fazer saltar o governo para acção. É como se o que realmente interessa é ganhar as eleições em 2016, conseguir mais cinco anos de mandato, depois se verá. Por isso o que importa fazer agora é campanha sem parar e manter o país sob um manto de ilusões. Quando acordar provavelmente será tarde demais.
O que pode significar estas eleições para Cabo Verde?
Cabo Verde na minha opinião está numa encruzilhada. A política económica do governo falhou claramente. Levou praticamente à estagnação da economia com crescimento do PIB de 0,1 % no segundo trimestre deste ano e deixou uma pesada dívida pública de mais 114% do PIB. A competitividade externa do país é fraca ficando no 114º entre 140 países. Dificilmente poderá atrair investimento directo estrangeiro, criar uma capacidade exportadora e tornar-se base atractiva para a prestação de serviços nesta região. Mesmo investimentos públicos para estimular a economia são agora mais difíceis com ascensão a país de rendimento médio e com o peso excessivo da dívida. No plano externo, as dificuldades do principal parceiro, a União Europeia, mantêm-se com a instabilidade do euro e podem agravar-se com as migrações massivas e a agressividade russa na Ucrânia e agora na Síria. No contexto internacional as coisas não vão bem. O FMI na semana passada fez uma revisão em baixa das previsões do crescimento da economia global. Por mais estas razões claramente que não se pode continuar a pensar na ajuda internacional para manter o país. A verdade é que da forma como a comunicação do governo é feita todos os dias dificilmente as pessoas não vão deixar de pensar que nós sendo pequenos qualquer coisa vinda dos mais ricos vai-nos ajudar. Ou então que essa preocupação com a dívida pública é conversa de campanha porque no futuro haverá sempre quem nos perdoe grande parte do que devemos. Ou ainda que o que se vê acontecer em países como a Grécia e Portugal, Espanha e Irlanda que foram forçados a grandes ajustamentos nunca se verificará aqui. Mantem-se o país no ilusionismo quando o mundo é cada vez menos generoso e menos complacente com os que se perdem em fantasias. Fala-se por exemplo em agenda de transformação e resultados não se vêem para além do que se comprou literalmente com dinheiro emprestado. A capacidade endógena de criar riqueza a partir desses investimentos tem sido demasiado diminuta. O Banco Central no seu relatório anual chegou a constatar que mesmo que a União Europeia ganhasse mais dinâmica não era certo que Cabo Verde conseguiria ir a reboque no ritmo certo. As reformas feitas não põem o país na posição de aproveitar completamente as oportunidades criadas pela dinâmica dos outros. Não há indicador de maior fracasso do que esse. Sair deste caminho e destas políticas que ameaçam encurralar o país é o que se tem que fazer nessas eleições. Por isso é imperativo que o PAICV perca as eleições e o MpD tenha a possibilidade de colocar outra vez Cabo Verde no caminho do crescimento económico e do desenvolvimento sustentado capaz de debelar o desemprego e a pobreza e trazer esperança renovada para todos.
O significam estas eleições para o MpD e o PAICV?
Para o MpD ganhar as eleições significará antes de mais dar ao país uma alternativa a todas estas políticas que já provaram não dar os resultados desejados em vários sectores como por exemplo na economia, no emprego, na actividade empresarial, na segurança e no ensino de qualidade que o país precisa. São 15 anos do PAICV que analisados a fundo se vê que para além da cosmética e das exigências do mundo de hoje mantiveram os mesmos instintos de controlo, de centralização e de privatização do Estado para uso partidário que tiveram no passado. Da mesma forma que, mesmo fazendo conversa contrária, é evidente a mesma hostilidade em relação ao sector privado nacional, à iniciativa individual e a qualquer tentativa de afirmação de uma sociedade civil autónoma. O conformismo e frustração que se sente no dia-a-dia resultam desses anos em que promessas foram muitas, obras são apresentadas como solução para os problemas e muita esperança é posta em mandar os filhos para escola e para universidade e depois muito pouco, demasiado pouco acontece. Para o PAICV ir para a oposição talvez seja uma oportunidade de se modernizar e abandonar definitivamente o lastro dos anos de independência que não o deixa estar completamente em paz com a democracia e a economia de mercado e ser de facto um player completo e leal no Cabo Verde moderno que se começou a construir nos anos 90. Se não houver alternância nas eleições de 2016 o perigo de o PAICV se tornar um partido hegemónico não é de desprezar. Olhando para casos de outros países africanos em que os partidos que se reclamam de terem sido os libertadores mantêm uma posição hegemónica no sistema político. As consequências poderão ser terríveis para o país. Por isso é imperativo mudar para que se tome um outro rumo e o sistema político tenha o equilíbrio que é fundamental para que todas as virtudes da democracia e do pluralismo se manifestem na realização do bem comum de todos os cabo-verdianos. Para o MpD perder as eleições seria um golpe duro mas acredito que o partido tem capacidade de resiliência suficiente para efectivamente assumir o lugar que lhe couber e evitar que o sistema político se desequilibre. Os seus valores de referência são os que universalmente são aceites, mesmo pelos que os renegam na prática. A orientação sócio-económica do seu projecto de país está em linha com o que em todos os continentes tem garantido prosperidade sustentada. Não há pois que temer pelo futuro. Tem de se ir à luta convicto do extraordinário papel já feito nos anos 90 para trazer Cabo Verde para a modernidade de um país livre, democrático e capaz de andar a passos largos e de ainda 15 anos depois contribuir decisivamente para o colocar nos caminho da prosperidade para todos.