O orçamento do Estado é, nas palavras do Sr. Primeiro-Ministro, um orçamento num contexto de crise internacional. Uma crise que, segundo o Governo, o País está preparado para enfrentar, porque soube criar espaço fiscal, aumentar as reservas externas e controlar a inflação. E, extraordinariamente, pôde fazer isso com o País a crescer abaixo do seu potencial e a aumentar, consideravelmente, as despesas do Estado. Com o País a manter a sua vulnerabilidade, face a fluxos externos (remessas dos emigrantes, empréstimos, ajuda orçamental, investimento directo estrangeiro), e, ao mesmo tempo, incapaz de alargar significativamente as exportações e de diminuir o desemprego. È obra!
A realidade é que nem a fotografia macroeconómica, ostentada com orgulho pelo governo, é actual. Mudaram os pressupostos. Definitivamente não é veículo para o País ver o seu futuro próximo.
Os efeitos da quebra na dinâmica económica global já se fazem sentir.
O petróleo custa menos cem dólares do que seis meses atrás. Os preços dos cereais e de matérias-primas, até há pouco imparáveis na sua subida, caíram. A ameaça actual é, cada vez mais, a possibilidade de deflação, ou seja, da queda de preços paralisante da economia, quando recentemente a preocupação geral centrava-se na inflação, embebida na alta geral dos custos de energia, dos transportes e da alimentação. A Europa, a América e o Japão estão, hoje, em recessão. Projecta-se o crescimento da China para os níveis mais baixos de há algumas décadas. Mesmo países com reservas externas significativas vêem-se aflitos com a inevitável quebra da procura para as suas exportações e receiam êxodos de capital, derivados da baixa de expectativas na performance das economias emergentes.
Só o Governo de Cabo Verde parece apanhado por um optimismo quase eufórico. Boa governação,nas palavras do Primeiro-Ministro, é petróleo e é capital estratégico. Credibilidade externa, é um diamante a ser polido e a se extrair riquezas. O PM acredita que há condições para virar a crise a favor de Cabo Verde.
Deve-se ter mente, porém, que a crise actual marca o fim de um período de exuberância financeira, de crédito fácil e de enormes fluxos de capitais cruzando o globo à procura de retornos fáceis, rápidos e lucrativos. E também de oportunidades que não se repetem. O Governador do Banco de Cabo Verde, em entrevista recente, foi claro a esse respeito: após a crise nada será como antes no sector do Turismo.
Crises são pontos de viragem e como tal propiciam momentos preciosos e únicos para o ajuizar da caminhada feita. Várias oportunidades, designadamente nos sectores do turismo e da imobiliária turística e residencial, abriram-se para Cabo Verde durante os anos de expansão financeira.
Será que as aproveitou como devia? Será que soube imprimir um sentido de urgência à exploração plena das oportunidades oferecidas e mobilizar a energia e vontade nacional, necessárias para pôr o País a crescer no nível certo e baixar, a sério, o desemprego? Ou, mais uma vez, alimentou a fantasia de se tratarem de oportunidades perenes, porque resultam das qualidades especiais do País e dos caboverdianos? E que a postura certa deve ser a de parasitar, de extrair rendas, sem preocupação se a oportunidade definha, morre ou desaparece?
Só esta última atitude de rentista sem imaginação pode justificar que se fique tranquilo enquanto são visíveis e notórios os projectos parados em várias ilhas, durante anos, a meio de confrontos entre o Estado e as Câmaras Municipais; os conflitos de terrenos entre particulares, Estado e Câmaras a dificultarem o registo de propriedade e a criarem um ambiente de insegurança jurídica; a incapacidade do Estado em assegurar níveis de ordem e tranquilidade pública, particularmente nas ilhas de vocação turística; o descontrolo na gestão da imigração clandestina; a incerteza criada no sector de energia e água por falta de capacidade de investimento; a ausência de planeamento urbano e de saneamento básico nas ilhas turísticas; a não implementação de uma política de habitação de suporte às migrações internas; o descurar do transporte marítimo e a falta de estratégia na unificação do mercado interno.
Tudo isso, e mais, são exemplos de políticas e de medidas de políticas que não foram tomadas com o sentido de urgência e a determinação certa por quem sabe, ou devia saber, que janelas de oportunidades só se abrem por tempo limitado. Janelas que não se mantêm abertas à conveniência de quem pôde vir a aproveitá-las.
A imagem do surfista é o que, talvez, melhor adequasse ao caboverdiano. O surfista sabe que ele nunca cria ondas, que elas não são eternas e que todas vão morrer à praia. Também sabe que a sua única chance é identificar as ondas o mais cedo possível e cavalgá-las no máximo de habilidade para poder ir mais longe. Sabe, ainda, que, ao longo da jornada, deve poder passar de uma onda para outra para se manter sempre em movimento.
Mas, aparentemente, o caboverdiano não quer ser surfista. Prefere alimentar a fantasia de que pode criar ondas. E que elas são eternas. Por isso diz que Cabo Verde está na moda, quando, a meio do boom imobiliário, Cabo Verde, a par com as Maurícias, as Seychelles, e muitas outras ilhas nas Caraíbas, também recebe atenção de capitais a procura de aplicação. Espalha pelos cantos que é o melhor governo de Africa, confundindo deliberadamente governo com governance, ou governabilidade, para se beneficiar da notoriedade do tema, logo que foi adoptado pelo Banco Mundial, FMI e outras instituições multilaterais para suprir o reducionismo das estratégias de desenvolvimento, no chamado consenso de Washington. Proclama que goza de credibilidadeinsuperável juntos de parceiros internacionais, porque a União Europeia, procurando conter fluxos migratórios a partir da Africa e com preocupações de segurança na sequência dos atentados terroristas em Madrid e Londres, desenvolve cooperação estreita para proteger o seu flanco sul.
O problema não é aproveitar, ou não, mudanças de conjuntura, modismos nas instituições internacionais, muitas vezes de natureza ideológica, ou interesses renovados de outros países. O problema é se, com isso, o País deixa de ter a sua própria agenda, de definir o seu próprio timing e de manter o olho na bola, como se diz na gíria futebolística. De estar focalizado nos objectivos e metas a atingir.
E a grande realidade é que Cabo Verde falhou. Falhou o crescimento a dois dígitos e falhou em fazer cair o desemprego para menos de 10%. Os objectivos estabelecidos pelo Governo do PAICV ficaram longe de serem realizados. O crescimento mantém-se a 6% e o desemprego a mais de 20%.
A celebrada agenda de transformação do Governo falhou. Não deu os frutos pretendidos.
Em relação à reforma do Estado é o próprio Chefe do Governo que vê na “postura da Administração Pública, face à economia e ao sector privado, muitos obstáculos, muitas barreiras e a persistência de uma atitude negativa em relação às empresas privadas e à capacidade de geração de riquezas”.
Em sectores económicos estratégicos como os de energia e de transporte aéreo, o PM apelida de cancros as empresas públicas chaves desses sectores, depois de terem estado oito anos sob a direcção do seu governo.
O mercado de trabalho não foi estruturado nem qualificado. Segundo o Governador do BCV, em entrevista ao “Expresso das Ilhas”, para se atingir o objectivo de crescimento e emprego preconizados pelo Governo ter-se-ia de “passar por reformas e pela modernização da nossa economia e do nosso mercado de trabalho, conferindo-a maior flexibilidade. Ter-se-ia de promover em larga escala a formação profissional, porque, já hoje, a economia procura mão-de-obra que não encontra, porque os recursos humanos não têm a formação profissional necessária”.
O impacto do investimento público nas infraestruturas na economia é limitado a vários níveis. Não diminui significativamente o desemprego, não ajuda a afirmação e consolidação das empresas nacionais de construção civil e pouco arrasta a economia local. Também as opções e prioridades dependem menos de uma visão estratégica de desenvolvimento do país e mais de interesses de natureza política partidária do Governo e de conveniências privadas das empresas nas parcerias.
Em relação ao turismo, o sector que podia trazer alguma dinâmica à economia caboverdiana é o próprio Governador do BCV a reconhecer as deficiências: a falta de formação profissional, serviço de transportes deficitários, baixa qualidade dos serviços de alojamento, de hotelaria e de restauração. E acrescenta: “A própria atitude dos caboverdianos em relação ao turista deve mudar”.
A transformação de Cabo Verde ficou por fazer. E de todas as transformações possíveis a principal é a da atitude do caboverdiano. Da forma como se identifica, como relaciona com o Estado, como se vê no esforço nacional para o desenvolvimento, como encara o ensino e o conhecimento e como lida com as oportunidades. Também, do que espera da sua direcção política: Se são prendas e favores ou se é trabalho e condições no País para prosperar, de forma sustentada e na Liberdade.
Publicado no Jornal ASemana de 12 de Dezembro de 2008