segunda-feira, agosto 10, 2020

Oportunidade para o reforço da cidadania

O governo já marcou as eleições autárquicas para o dia 25 de Outubro. Com essa decisão foi dado o pontapé de saída para o novo ciclo eleitoral que após o embate nos municípios terá continuidade nas eleições legislativas provavelmente em Março/Abril seguido das presidenciais seis meses depois entre Setembro e Outubro.Quase sem tempo para respirar depois do debate sobre o estado da Nação os partidos vão ter que se preparar para apresentar candidatos, plataformas eleitorais e dar um outro vigor à pré-campanha autárquica que na perspectiva de muitos há muito que foi iniciada. As eleições vão acontecer em meio de uma pandemia, até há bem pouco tempo inimaginável, que para além dos efeitos potencialmente graves na saúde das pessoas traz consigo muitas incertezas quanto ao futuro e quebra real e imediata de rendimentos para a generalidade da população. Não estranha que outra vez em pleito eleitoral surjam as velhas ansiedades, agora reforçadas num ambiente de crise sanitária e económica e social, quanto à questão da representação parlamentar e de participação política. Com os olhos postos nas eleições, os cidadãos interrogam-se se realmente os partidos os representam ou se são aglomerados de interesses que servem a si próprios em vez de os servir.

O sentimento dos cabo-verdianos quanto aos partidos e quanto à democracia não é muito diferente do que se vê por aí. Há vários anos que em todo o mundo se tornou notória a crise das democracias manifestando-se no aumento da abstenção, na fuga do eleitorado para os extremos e na emergência de populismos da esquerda e da direita. Depois da crise financeira de 2008 o fenómeno agudizou-se à medida que as populações perdiam confiança nas suas elites, a desigualdade social aumentava e governos de partidos tradicionais mostravam-se incapazes de conter a deterioração das condições de trabalho e a perda de rendimentos. Em vários países a gota-de-água que fez extremar a acção política foram as migrações em particular as vindas da África subsaariana e da Síria. Na vaga de populismo que se agigantou elegeram-se líderes como Trump e Bolsonaro, conseguiu-se finalmente fazer o Reino Unido sair da União Europa e autocratas como Viktor Orban afirmaram-se no coração da Europa.

A covid-19 veio porém temperar os entusiasmos dos que se reviam na retórica anti-partido e anti-sistema, apostavam na descredibilização das instituições e das elites e propunham soluções simples para realidades complexas dos seus países. De facto, quando tudo parecia concorrer para que o fenómeno do populismo fosse mais longe, apareceu o coronavírus e viu-se logo que para o combater com alguma eficácia ter-se-ia de socorrer de conhecimentos científicos e de adoptar uma gestão competente da pandemia pelo Estado. Só assim é que se podia pretender diminuir o número de mortes, aliviar sofrimento e garantir meios de subsistência aos mais vulneráveis. E a verdade é que os líderes populistas revelaram-se incompetentes e demasiado presos na própria retórica para fornecerem liderança efectiva às populações. Descredibilizaram-se e deixaram muitos que punham fé em soluções populistas completamente desorientados.

Nem por isso porém desapareceram as manifestações de insatisfação com a actuação dos partidos, as críticas dirigidas à classe política e o vazio que enquanto cidadãos muitos sentem pelo facto de não se reverem nas opções dos partidos do chamado arco do poder. Só que agora as pessoas são atraídas para outras formas de participação e acabam por ficar reféns de soluções muitas vezes piores porque vincadamente de natureza identitária e promotora de vitimização e de ressentimentos. Em Cabo Verde, por exemplo, muita hostilidade é dirigida ao chamado bipartidarismo do MpD e do PAICV que até hoje não foi rompido pela UCID e nem no passado foi por partidos como o PCD, PRD, PTS, PSD e PP, engendrados num momento ou outro destes trinta anos de regime democrático. Há quem clame por uma espécie de terceira via que pusesse fim ao duopólio dos partidos que se têm alternado no poder. Na falta ou impossibilidade dessa outra força política o desejo é que pelo menos surgisse um partido de protesto tipo Bloco de Esquerda, em Portugal. Também por aí não se teve muita sorte.

A proximidade de eleições sempre renova esses sentimentos mistos de insatisfação com o funcionamento do sistema democrático e de hostilidade aos partidos. A pandemia com as suas incertezas piorou a situação ao revelar as vulnerabilidades do país e das suas gentes que não obstante a alternância dos dois partidos na governação não foram suficientemente minimizadas. Teve-se agora a oportunidade de ver com clareza que a prática do ilusionismo na política conjuntamente com a cultura de varrer os problemas para debaixo do tapete e a dificuldade ou indisponibilidade em combater hábitos, comportamentos e atitudes de dependência tornam de todo quase impossível realizar as reformas necessárias para mudar o país. Para sair do círculo vicioso não ajuda muito a proposta de se ver um dos partidos como “esquerda progressista” e o outro como “neoliberal”. A persistência das vulnerabilidades décadas após décadas sugere que se vá além dos rótulos ideológicos na procura das raízes dos problemas do país e que tudo se faça para governar com verdade, sem falsas ilusões e sem expectativas excessivas ou descabidas.

As eleições autárquicas, por natureza mais circunscritas, e o facto de a lei eleitoral permitir a apresentação de candidaturas por grupos independentes abrem caminho para iniciativas que poderiam atenuar os efeitos do bipartidarismo nos municípios. A exploração dessa possibilidade, que existe desde das primeiras eleições de Dezembro de 1991, não se tem revelado porém a mais frutífera. Não se conseguiu provocar suficientemente mossa no bipartidarismo e demasiadas vezes iniciativas do gênero constituíram formas encapotadas dos partidos se candidatarem ou de dar suporte a brigas entre facções do mesmo partido. Outras vezes serviram para dar corpo a disputas identitárias e divisivas com a falsa ideia de que munícipe é quem nasceu e não quem reside no concelho. O resultado é que de participação cidadã tiveram pouco e facilmente deixaram-se levar pelos maus hábitos partidários de que eram críticos.

Seria bom que desta vez houvesse iniciativas de grupos de cidadãos com um outro espírito. Grupos que exercessem a sua actividade cívica com base na verdade e na disponibilidade para servir e que se deixassem guiar por algum realismo e pragmatismo. Talvez os efeitos sobre os partidos do arco do poder fossem de induzir maior contenção na actuação política e um maior espírito compromissório na resolução dos problemas do país e em lidar com as outras forças políticas. Nesse sentido, deve-se preferir vias criativas que melhorem o funcionamento do sistema político ancorado na liberdade e no pluralismo e não deixar que a frustração leve a populismos que já se sabe não resolvem problemas, particularmente os complexos com que a covid-19 neste momento brindou toda a gente. Reformas, não revolução, precisam-se. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 975 de 5 de Agosto de 2020.

segunda-feira, agosto 03, 2020

Pandemia desafia a Nação

O estado da Nação vai estar em discussão na Assembleia Nacional esta sexta-feira, dia 31 de Julho. O debate anual é sempre um momento muito especial na vida nacional na medida em que marca o fim do ano político e põe o governo em jeito de balanço da sua governação face aos deputados de todos os partidos.

Este ano vai ser ainda mais especial considerando o momento que se vive da pandemia da covid-19 e as consequências económicas e sociais que se vêm acumulando desde da quebra brusca no ritmo de crescimento da economia e do aumento rápido do desemprego. Ninguém consegue perspectivar quão profunda será a crise e o tempo que durará. Não há data certa para se ter disponível vacinas que cheguem a toda a gente e nem se sabe como a retoma económica irá processar-se no novo quadro das relações comerciais e também políticas entre as nações no pós covid-19. Até lá incertezas várias, muita ansiedade pelo caminho e alguma angústia poderão condicionar o comportamento das pessoas. Assim será se da parte de quem governa e de toda a classe política não vier um esforço para criar confiança, incentivar o espírito de cooperação e reforçar a ideia de um destino comum compartilhado por todos, sem a qual a vitória sobre o coronavírus não será possível.

O debate da próxima sexta-feira poderá ser crucial para se alcançar um nível de concórdia indispensável com vista a enfrentar as dificuldades futuras. De antemão sabe-se que inevitavelmente vão surgir à medida que a crise se agravar e as medidas do Estado para amortecer a quebra da economia perderem eficácia e quando as pessoas começarem a sentir sentirem a perda de rendimentos derivado do desemprego e da fraca actividade económica. Confrontá-las com alguma medida de sucesso vai requerer uma frente comum que, para ser construída, exigirá que se faça uma reflexão nacional sobre tendências divisivas e sobre os porquês da persistência de vulnerabilidade e precariedade das populações após tantos anos de injecção de recursos no país. Também dever-se-á debruçar sobre as razões por que se torna tão difícil construir um ambiente onde as pessoas sintam que o mérito e o esforço pessoal, enquanto critérios para o sucesso, prevalecem sobre a cor partidária, o acesso a redes de influência e a tolerância para com jogadas obscuras que resultam em fortunas súbitas. Se motivação suficiente não existisse para isso, a previsão do VPM e Ministro das Finanças de que 150.000 postos de trabalho poderão estar em perigo se medidas robustas do governo não forem tomadas deveria ser o sinal esperado para pôr todos em alerta máxima e procurar fazer diferente e não se repetir as insuficiências tornadas tão óbvias em poucos meses pela pandemia.

No dia comemorativo dos 102 anos de Nelson Mandela, António Guterres na sua qualidade de secretário-geral da ONU fez um apelo para um Novo Contrato Social e acordo global para combater as desigualdades. Segundo Guterres, a pandemia veio fazer uma radiografia da realidade deixando a descoberto “sistemas de saúde inadequados, lacunas na protecção social, desigualdades estruturais, degradação ambiental e crise climática”. Acrescentou ainda que o mundo enfrenta o risco iminente de “haver fome de proporções históricas” e de “cem milhões de pessoas serem empurradas para a pobreza extrema”. Acabou por aconselhar que governos, sociedade civil, empresas e comunidades se juntassem na discussão do que poderá ser esse novo contrato social e o acordo global. A dinâmica da pandemia e as respostas contra os seus efeitos têm demonstrado que para se ter sucesso no combate à doença e no controlo da transmissão do vírus um novo engajamento com a população deverá existir em que competência e honestidade na comunicação surjam como cruciais para se conseguir confiança das populações e assegurar que seguirão com naturalidade as instruções e orientações das autoridades.

Com as fragilidades de Cabo Verde já conhecidas e recentemente relembradas pelos três anos de seca e tornadas mais do que óbvias pela covid-19, o mais natural é que houvesse um esforço vindo de todos os quadrantes para se fortalecer o que une a nação. Tendo como base o consenso criado no processo, o pluralismo de ideias devia permitir encontrar as melhores propostas, pressionar no sentido da gestão competente dos recursos e serviços públicos e impedir aproveitamentos indevidos de recursos públicos. Infelizmente não é esse o sentimento prevalecente nos actores políticos e sociais. Reina a polarização social, uma competição desenfreada pelos recursos sem preocupação com a racionalidade e a razoabilidade e cresce todos os dias um espírito de rivalidade entre as ilhas que torna difícil pensar o país como um todo, agravando os custos da insularidade e limitando os ganhos para o país que poderiam advir da exploração flexível e estratégica do potencial e dos recursos de cada ilha. Com a pandemia da covid-19 em vez do recuo nas divisões, nas rivalidades e na corrida aos recursos verificou-se o recrudescer das suas manifestações com os protagonistas a justificarem como legítimas as suas pretensões.

É aparentemente ignorado o facto inescapável de que o futuro próximo será de muito menos recursos disponíveis, porque já há quebra na economia nacional, o resto do mundo vive uma recessão só vista nos anos 30 do século passado e que a expectativa para os países mais desenvolvidos de regresso aos níveis do ano 2019 é de três a quatro anos. Só assim é que se explica que o discurso político – desde que se convencionou que depois do período de confinamento já se podia regressar às tricas políticas – siga por linhas de fractura que levam a seleccionar entre uns e outros quem tem estatuto especial e quem deve ser merecedor de discriminação positiva. Só assim se explica também que o discurso se centre em propor corte nos impostos, já de por si em queda livre por causa do estado da economia, sem preocupação com a boa gestão das despesas quando interferem com interesses corporativos e outros. Confrontado com os inevitáveis défices orçamentais e o aumento da dívida pública e a necessidade de os financiar a tentação é de se entreter com fórmulas que mais parecem “wishful thinking” do tipo de propor aos credores de Cabo Verde que transformem o crédito em investimento.

O óbvio devia ser que se promovesse um maior rigor na utilização dos recursos públicos, que as forças políticas demonstrassem maior contenção nas reivindicações e houvesse um maior esforço de adequação das expectativas das pessoas às possibilidades reais do país. O problema é que já se está em cima do ciclo eleitoral e o eleitoralismo nos discursos e nas promessas tende a sobrepor-se a quaisquer outras considerações. Entre ir num ou noutro sentido nos embates políticos há que se ter em devida atenção que os eleitores, face à crise pandémica, querem competência na condução dos assuntos do Estado e confiança em quem governa e não serem seduzidos por promessas ilusórias. De Angela Merkel diz-se, por exemplo, que o respeito por ela enquanto estadista deriva do facto de se dirigir a todos com honestidade, franqueza e realismo e que sob a sua liderança ninguém cria falsas expectativas nem engendra ilusões. Essa é uma referência que bem podia ajudar a elevar a qualidade do debate parlamentar da próxima sexta-feira, neste ano da pandemia da covid-19, e a ganhar um tom mais construtivo. A Nação agradeceria.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 974 de 29 de Julho de 2020.

segunda-feira, julho 27, 2020

Ir além do espectáculo

As perspectivas para Cabo Verde no futuro próximo não são boas. Do que se vem ouvindo do VPM e Ministro de Finanças em múltiplas declarações públicas e do que várias vezes tem sido realçado ao longo da semana nos webinars organizados no quadro do chamado exercício “Cabo Verde Ambição 2030” não ficam muitas dúvidas quanto às consequências negativas da pandemia da covid-19 sobre o país.
O impacto esperado mas já sentido em vários sectores virá directamente via redução brusca da actividade económica nacional em virtude das medidas de distanciamento social e de confinamento e da decisão em fechar as fronteiras indirectamente a partir da redução das exportações de bens e serviços, dos fluxos turísticos, das actividades de aviação e globalmente da contraccão no comércio internacional.
Prevê-se que o PIB diminua este ano entre os 6,8 e os 8,5%. Espera-se uma quebra brusca nas receitas dos impostos e nas receitas geradas pelo turismo que passam de 43 milhões de contos para 15 milhões. Supõe-se que irão desaparecer 20 mil empregos e que a dívida pública poderá já no próximo ano elevar-se para valores quase insustentáveis de mais de 150% do PIB. Entretanto, com a quase paralisação da economia aumentou o desemprego, diminuíram os rendimentos e milhares de pessoas viram-se forçadas a regressar às suas ilhas de origem para se ampararem junto das famílias neste momento de dificuldades. A reacção do Estado e do governo direccionada tanto para assegurar algum rendimento às pessoas e às famílias como para garantir a sobrevivência de alguma capacidade empresarial no país conseguiu em parte amortecer o choque, mas não é sustentável a prazo. A ajuda externa não é infinita e há limite no uso que se pode fazer dos recursos do INPS.
A esta simples verdade deve-se acrescentar que a saída do imbróglio só pode ser equacionada a partir da retoma da actividade económica. Agir nesse sentido não pode depender da disponibilização de uma vacina, que, na melhor das hipóteses, só acontecerá no próximo ano. Nem tão pouco deve-se esperar que a confiança entre as pessoas, actualmente afectada por constrangimentos e restrições diversas impostos pela pandemia, por si só se restaure ao nível anterior. Há que ser proactivo e contribuir com medidas estratégicas e encadeadas para que isso aconteça e esperar que na sequência se verifique a almejada circulação de pessoas, bens e capitais, crucial para a criação da riqueza das nações. Para isso uma outra atitude ter-se-á que exigir do Estado, da sociedade, das pessoas e das empresas.
Para começar, dever-se-á abandonar o ilusionismo que acompanha a prática política em Cabo Verde. A realidade pura e dura do país deverá ser encarada sem lirismos e sentimentalismos e com mais honestidade para que os passos que terão que ser dados para diminuir a vulnerabilidade e a precariedade sejam seguros e sustentáveis. A tentação de virar para dentro e construir soluções para o futuro a partir dos parcos recursos do país e do seu mercado exíguo e fragmentado deve ser posta de lado definitivamente agora que a acção do coronavírus veio demonstrar que a insistência nessa atitude perpetua vulnerabilidades e condena muitos a uma precariedade facilmente exposta por qualquer choque externo. Os hábitos adquiridos em conjugação com a adopção do modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa devem ser identificados e combatidos de forma a se romper com o modelo e construir o futuro numa outra base. No mesmo sentido deve-se fazer melhor uso dos fluxos externos para que, com ganhos de eficiência e eficácia na utilização dos meios disponibilizados, finalmente se poder libertar da dependência da generosidade dos outros.
O VPM e ministro das Finanças, Olavo Correia, na entrevista de domingo à televisão pública foi muito claro a dizer que, para o país avançar, a atitude das pessoas e das instituições tem que mudar. Na sua opinião não deverá haver xenofobia em relação ao investimento e aos investidores externos. Chamou a atenção para a impossibilidade de economias de escala num país com uma pequena população e mercado fragmentado. Propôs fazer de Cabo Verde um país-plataforma para poder posicionar-se como um exportador de bens e serviços e estar em condições de suportar um crescimento robusto da economia e criação de empregos de qualidade no horizonte de 2030. Ficou-se porém por saber, talvez porque não questionado nesse aspecto, o quão distante ainda o país e as suas gentes estão de ter as competências necessárias para isso e o que nos últimos quatro anos foi feito para se preencher essa disparidade entre o real e o ideal. Também seria de maior importância que se soubesse qual o grau de dificuldade de mudar realmente a atitude das pessoas e das instituições e o que se teria que fazer para a materializar.
Claramente que não é fácil. Mudar a atitude, trocar o chip e fazer diferente têm sido slogans dos sucessivos governos sem que nada de essencial se tenha verificado. Nem com a pandemia se consegue descortinar mudanças significativas na atitude das autoridades, das instituições e das pessoas. Mesmo face à covid-19 nota-se que ainda se toma governar por fazer política espectáculo a partir de anúncios, visitas, inaugurações e seminários. Também viu-se os costumeiros sinais de autismo nas instituições na gestão da resposta à pandemia omitindo-se nalguns casos e adiando para demasiado tempo decisões sobre testes, criação de equipas de rastreio epidemiológico e instalação de mais laboratórios apesar de repetidos apelos. Na população há sinais que parecem configurar uma espécie de dissonância cognitiva que nem a realidade de um vírus altamente contagioso consegue romper, como se viu da peça emitida pela televisão com jovens na praia de Santa Maria na Ilha do Sal . A partir do diálogo surreal com o repórter compreende-se por que se mostra tão difícil quebrar as cadeias de contágio. Com a maior desfaçatez negam a existência da doença ou negligenciam os seus sintomas sem consideração alguma para o facto que para haver retoma da economia na ilha tem que se acabar primeiro com a transmissão comunitária da doença.
Infelizmente o desencontro entre o discurso, a narrativa e a realidade não é apanágio só de alguns. A prática do ilusionismo na política por demasiado tempo deixou marcas que para serem ultrapassadas vão exigir doses maciças de realismo, uma maior aderência aos factos e um renovado amor pela ciência. Neste momento de crise sanitária, mas que já se percebe que será económica, social e até humana seria de importância fundamental que a honestidade e a verdade se sobrepusessem a qualquer tentação de se continuar a iludir a realidade dos problemas que o país tem a enfrentar. Cabo Verde tem que poder retomar o turismo e as exportações fazendo os ajustes necessários e planeando para o futuro no sentido de maior resiliência desses sectores. Se como diz o VPM o plano de negócios da CVA já não é aplicável há que encontrar uma solução e não permitir que a companhia aérea continue a ser um sugador sem fim de recursos públicos.
Nada porém será feito se não se controlar a epidemia no país e baixar os casos de transmissão para os níveis exigidos pela Europa. A economia cabo-verdiana funciona fundamentalmente com a União Europeia e falha-se gravemente quando não há conformidade com as normas estabelecidas. Sem ilusionismos, dissonâncias cognitivas e outras fugas da realidade deve-se encarar as dificuldades do país e proceder à mudança de atitude que todos parecem reconhecer como essencial para se ter o envolvimento de toda a sociedade no esforço de desenvolvimento do país. Há que se demonstrar a todo o tempo que governar não é mandar, mas sim pensar estrategicamente, servir e responsabilizar-se pelos resultados obtidos.
Humberto Cardoso

segunda-feira, julho 20, 2020

Confiança, o ingrediente crítico

Inicia-se hoje, dia 15 de Julho, uma segunda fase de desconfinamento com a abertura total da circulação aérea e marítima entre as ilhas de Cabo Verde. As restrições tinham sido impostas primeiro pelo estado de calamidade declarado para a Boa Vista a 26 de Março e depois pelo estado de emergência com efeito sobre todo o território nacional a partir de 30 de Março.
A primeira fase de desconfinamento aconteceu a 29 de Maio e, a par com a retomada da circulação entre algumas ilhas e de alguma euforia das pessoas por se verem menos condicionadas nos contactos sociais, notou-se em pouco tempo um aumento do número de casos confirmados de covid-19. A partir de 15 de Junho focos de contágio surgiram na ilha do Sal e em S.Vicente e foram confirmados casos em S.Nicolau e em Santo Antão. Segundo o director nacional da Saúde em conferência de imprensa nesta segunda pode-se distinguir dois momentos na epidemia da covid-19 em Cabo Verde. O primeiro que abrange o estado de emergência em que os casos semanais oscilavam entre os 60 e 84 e um outro com o fim do confinamento em que o número de casos fica no intervalo 126 e 180 com um pico na semana de 22-28 de Junho de 341 casos.
É provável que na sequência da liberação da circulação inter-ilhas e o fim de outras restrições designadamente no acesso às praias se vá entrar numa terceira fase de desconfinamento com consequências imprevisíveis considerando que em Santiago, a ilha mais populosa, ainda a epidemia está activa e no Sal, onde muitos esperam sair da ilha, continua galopante a transmissão comunitária. Não será muito fácil evitar um recrudescer de casos de covid-19 no país e o alastramento para as ilhas até agora poupadas. Tendo em conta os custos que tudo isso pode acarretar para a situação sanitária do país é de se perguntar como se comparam com os benefícios esperados da retoma de circulação inter-ilhas praticamente nos mesmos moldes que existiam anteriormente. Entretanto o país continua sem ligações com o exterior tendo ficado fora da lista de países autorizados a voar para a União Europeia. Um constrangimento que poderá prolongar-se se o país não se mostrar capaz de diminuir para números aceitáveis os casos diários de contágio ou ver-se confrontado com o agravamento da situação sanitária nas ilhas.
Dias atrás o director geral da OMS em várias intervenções públicas foi muito claro a dizer que no futuro próximo não há regresso ao velho normal e que se o básico do controlo da infecção que passa por testar, rastrear, isolar e fazer quarentena não for conseguido a pandemia só vai ficar pior. Também apontou como constrangimentos sérios a politização da pandemia e o envio de mensagens contraditórias que acabam por se tornar em factor de divisão e contribuem para minar a confiança das pessoas nas autoridades sanitárias. A verdade é que por todo o mundo, em maior ou menor grau, dificilmente os actores políticos resistem à tentação de tirar benefícios político-partidários da luta contra a pandemia. Todos a partir do seu ponto de vista e posicionamento no sistema tendem a mostrar o quão importante é o seu contributo para o sucesso na contenção da pandemia. O problema não é a política em si, que em democracia tem que se fazer para conseguir resultados que sirvam o interesse geral, mas as tácticas utilizadas que acabam por criar divisão, confusão nas orientações dadas para se evitar o contágio e alimentam expectativas irrealistas quanto à forma como resolver a crise sanitária. Prejudica-se enormemente aquilo que o Dr. Tedros Ghebreyesus considera o ingrediente crítico de qualquer resposta à pandemia: confiança.
Em Cabo Verde parte das dificuldades com que se depara na contenção da pandemia tem a ver com a colaboração da população. As autoridades queixam-se de que as orientações quanto ao distanciamento social e uso das máscaras não estão a ser seguidas com suficiente rigor. Também consideram que muitos, em particular os jovens, mostram-se displicentes nessas matérias e continuam a organizar festas, idas às praias e a fazer outros ajuntamentos sem preocupação com a transmissão do coronavírus, convictos de que ou não serão afectados pela doença ou então que os sintomas serão ligeiros. O problema talvez advenha de ainda em grande medida não se ter conseguido transmitir às pessoas a real gravidade da covid-19. E isso normalmente acontece como diz o director geral da OMS quando não se comunica claramente com os cidadãos e que não se desenvolve uma estratégia compreensiva focalizada na supressão de transmissões. O que está a acontecer em particular na ilha de Santiago e na ilha do Sal de facto não é tranquilizador nem transmite confiança. Pergunta-se se o que aparentemente resultou na contenção de casos na Boa Vista e em S.Vicente não tem aplicação nas outras ilhas.
Com a proximidade das eleições, a questão de confiança, crucial para a luta contra o coronavírus, tende a ficar mais difícil. A sociedade polariza-se e simplesmente não se consegue o engajamento total da população indispensável para o combate vitorioso contra a pandemia. Tudo fica ainda mais complicado se achas são deitadas na fogueira como aconteceu na última reunião plenária da Assembleia Nacional. Foram levadas para debate e votação matérias potencialmente fracturantes sem suficiente concertação das partes e ignorando que se tratava de legislação que exige dois terços dos votos dos deputados. A descredibilização das instituições e dos seus titulares que daí resulta certamente que não contribui para se manter a frente unida contra a pandemia nem transmite uma imagem de autoridade a quem deve liderar no combate ao vírus. Pior ainda quando, como aconteceu, as divisões não ficaram pelas traduzidas nos posicionamentos de cada partido e saltaram para a rua e pelas redes sociais em acusações e agressões verbais contra membros do mesmo partido. Daí foi um passo para se dar o salto e fomentar o confronto aberto entre naturais de diferentes ilhas.
No mundo inteiro enfrenta-se neste momento a pandemia provocada pelo coronavírus. É reconhecido por todos a necessidade de uma acção conjunta para debelar os efeitos da doença. Os países que menos sucesso têm tido nessa luta são os onde é maior a polarização política e mais dividida a população quanto ao distanciamento social. Cabo Verde não está bem colocado entre os países com maior sucesso no combate ao vírus. Precisa de mais unidade, melhor liderança e mais sabedoria em lidar com a crise sanitária. Devia tomar como exemplo o Ruanda que realmente viveu divisões profundas no seu seio, mas depois conseguiu unir-se para dar combate ao vírus e integrar a lista exclusiva de países com voos para a União Europeia. Infelizmente nem com a ameaça de uma pandemia consegue-se ter foco para, parafraseando Mario Cuomo, ex-governador de Nova Iorque, deixar cair a “poesia” da campanha eleitoral para se dedicar à “prosa” da governação.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020.

segunda-feira, julho 13, 2020

Fuga em frente

Cabo Verde celebrou no passado dia 5 de Julho o quadragésimo quinto aniversário da sua independência em circunstâncias únicas. As comemorações aconteceram num momento de pico da epidemia da Covid-19 e numa semana em que os números de casos confirmados no país aproximam-se dos mil e quinhentos, na ilha do Sal e em Santa Cruz o contágio dá sinais de acelerar e só nas ilhas do Fogo e da Brava ainda não se registam casos.
A pandemia constitui um choque global deixando a nu os problemas da pobreza, desigualdade e discriminação. Nenhum país é poupado. Não sendo excepção, seria de esperar que Cabo Verde usasse a data de 5 de Julho, que devia ser de unidade nacional, para assumir o quanto se tem ficado aquém de outros países insulares similares em matéria das metas de crescimento, do emprego, da educação e da saúde. Podia-se aproveitar para uma demonstração de unidade e firmeza para realmente se mudar de rumo na condução do país de modo a que deixe de ser tão vulnerável e dependente da generosidade externa.
Infelizmente tirando a disposição das personalidades e convidados nas cerimónias, cumprindo com as regras de distanciamento social, ficou-se pelo habitual ritual dos discursos a reconhecer mais uma vez que valeu a pena a independência nacional e a demonstrações de gratidão pelos que, como foi dito no acto da proclamação da independência, “se bateram na Guiné e estavam prontos e decididos para o combate armado em Cabo Verde”. O Presidente da República ainda reconheceu que Cabo Verde podia estar melhor, mas não elaborou muito para além dessa constatação. O facto de Cabo Verde ter um rendimento per capita três vezes menor que as Maurícias ou quatro vezes menor que das Seychelles, economia menos diversificada, níveis de educação e de saúde inferiores a esses países que têm praticamente os mesmos anos como países independentes não parece ser motivo suficiente para uma reflexão séria e honesta sobre a trajectória do país nos últimos 45 anos.
Nem a ameaça da pandemia sobre as populações vulneráveis, agravando a precariedade geral das pessoas, mostra-se suficiente forte para impedir que se continue a meter a cabeça na areia e a proclamar que Cabo Verde é um caso de sucesso e que bateu todos os prognósticos que o tinham como inviável. A ajuda externa e o hábito de se recorrer à generosidade internacional sempre que há secas, inundações, erupções vulcânicas epidemias ou alterações climáticas parece que tem o efeito de perpetuar o gosto pelo ilusionismo em que tudo é possível sem custo e sem um esforço colectivo para diminuir a dependência e lançar verdadeiramente as bases de um desenvolvimento sustentável. Nem a perspectiva de ver a dívida pública subir para níveis insustentáveis no mundo pós covid-19, com Cabo Verde e Angola a competirem pelos lugares cimeiros entre os países africanos mais devedores, consegue que se caia na realidade de um país dependente e frágil.
Há quem alimenta ainda a esperança que um dos choques externos venha a ter um efeito transformativo e finalmente ponha o país e os seus governantes numa outra relação com a realidade. O coronavírus parecia talhado para esse fim considerando as consequências graves sobre a saúde, o rendimento actual e as perspectivas de futuro que está a ter ao nível planetário. Paradoxalmente em muitos países não se verifica esse impacto transformativo. Talvez porque nalguns os governantes ciosos de demonstrar que venceram a luta contra o vírus apressaram-se a desconfinar. Noutros, os governantes desvalorizaram a situação e tardaram a reagir. Noutros ainda, a ineficácia da actuação centralizada do Estado dificultou a identificação dos problemas, impediu a coordenação e actuação atempada e não potenciou os recursos humanos e materiais existentes. Em todos esses casos as consequências notam-se imediatamente na resistência das pessoas em seguir as orientações das autoridades e em aceitar as recomendações feitas. Casos confirmados tendem a aumentar particularmente nos locais onde só um elevado nível de colaboração poderia substituir a falta geral de condições para se fazer distanciamento social e manter padrões aceitáveis de higiene.
No caso de Cabo Verde vê-se que se perdeu o potencial efeito transformativo da pandemia do coronavírus quando se persiste na mistificação do passado sem querer saber das origens das fragilidades do país e da sua perpetuação até ao presente e ainda se força uma descolagem da realidade com o convite à discussão da agenda “Cabo Verde Ambição de 2030”. Ou seja, lança-se uma névoa sobre o passado e faz-se uma fuga para o futuro. Nessas circunstâncias é evidente que lidar com o presente fica extremamente difícil. Exemplo disso é o ir e voltar atrás nas decisões sobre a circulação aérea e marítima na ânsia de propiciar o regresso da “normalidade” anterior correndo o risco de facilitar a transmissão do vírus para as ilhas mais desprotegidas, como aliás aconteceu. No mesmo sentido é a precipitação sobre o futuro da CVA e da TACV com pronunciamentos oficiais de garantia que vai continuar mesmo quando já não parece possível seguir o modelo de negócios do hub do Sal e se quer voltar aos voos étnicos e também com decisões em manter o leasing de três aviões praticamente inactivos durante a pandemia. Surpreendente ainda é o anúncio que se vai generalizar o ensino à distância e que para isso vão alocar verbas no orçamento rectificativo de 311 mil contos para “hardware” e sistemas de comunicação incluindo a compra anunciada pelo primeiro-ministro de 10 mil televisores e tablets. E como seria de esperar, para o “software”, ou seja, a criação de conteúdos e preparação dos professores fica-se por uma pequena verba de 21 mil contos.
Espanta a rapidez com que se fez a avaliação da experiência no ensino à distância nestes meses de covid-19 a ponto de se estar a investir nesta escala para a generalizar. É de se perguntar por que nunca se tinha pensado nisso apesar de as tecnologias da televisão de há muitas décadas terem sido generalizadas pelo mundo fora. Também é de se perguntar em que pé fica a luta pela qualidade e excelência. Será que mais uma vez vão ser sacrificadas em nome de um ensino massificado, do básico ao universitário, que, como todos hoje reconhecem, não serve o país. Muito menos poderá constituir a base para a economia do conhecimento que a agenda Cabo Verde Ambição 2030 supostamente propõe. A fuga em frente que se está a protagonizar configura ser mais uma reedição do jogo que se vem repetindo ao longo dos 45 anos de independência no qual a ênfase é colocada nos meios disponibilizados por parceiros internacionais ou mobilizados através da dívida pública em detrimento dos resultados na vida das pessoas e do retorno adequado dos investimentos feitos.
Fazer deste assalto do coronavírus um momento transformativo para o país deveria ser a oportunidade que supostamente todas as crises facultam. Infelizmente tudo indica que não vai acontecer e que vão continuar a reproduzir-se as vulnerabilidades e precariedade que a pandemia veio revelar com acuidade. E assim é porque como uma vez disse George Santayana “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 971 de 8 de Julho de 2020.

segunda-feira, julho 06, 2020

Risco moral

Sempre que se desencadeiam crises sejam elas financeiras, económico-financeiras ou de outra natureza – como é actualmente a pandemia provocada pelo coronavírus – e que medidas são tomadas para mitigar os seus efeitos, vem à tona a questão do “risco moral”. Interroga-se se os que de uma forma ou outra contribuíram para a crise não estão a ser os maiores beneficiários das medidas tomadas na sua contenção.
Aparentemente beneficiam das novas facilidades como infusão directa de dinheiro no sector privado, linhas de crédito com juros bonificados e garantias estatais para além de outras facilidades de liquidez proporcionadas pelos bancos centrais, sem que tenham assumido qualquer responsabilidade pelos prejuízos causados. O grosso do custo entretanto fica com quem perdeu o negócio ou o emprego, viu as suas poupanças desaparecerem e o seu futuro ficar difícil com as incertezas criadas. Também ninguém desconhece que em última instância, quando os efeitos da crise e o impacto da sua mitigação vão somar à dívida pública, são os contribuintes a assumir o fardo deixado pela incúria governativa e pelas falhas da regulação.
A questão do risco moral foi nos últimos 25 anos introduzida com a crise financeira asiática de 1997, retomada com a crise dos “hedge funds” em 1998 e denunciada veemente na sequência da crise de 2008 que começou por ser financeira para logo se revelar como crise económica, crise da dívida soberana e crise social. A indignação geral, quando se constatou a forma como muitos banqueiros e investidores saíram da crise mais ricos com os seus bónus e dividendos enquanto a generalidade das pessoas lutava contra o desemprego e a perda de rendimentos, serviu para lançar descrédito sobre as democracias.
O resultado foi a crise de representação que se seguiu, a descredibilização das instituições, a investida contra as elites e o progressivo desencanto com a globalização. Não espanta pois que nos últimos anos por todo o mundo tenha aumentado o fascínio pelas soluções populistas e pelos seus líderes mesmo quando se revelam autocráticos e incompetentes. A mover as pessoas estaria a percepção que uma elite cada vez mais rica beneficiava de um ambiente de progressiva globalização e de mais desregulação e que, quando algo corria mal, a carga e o infortúnio recaiam sobre a maioria, aumentando ainda mais a precariedade e as incertezas.
A resposta à crise provocada pela covid-19 foi ainda mais drástica do que nas crises anteriores. A urgência em quebrar cadeias de transmissão levou à quase total paralisação da economia e ao desemprego súbito de milhões de pessoas. As medidas de política tomadas por vários países, designadamente os três trilhões de dólares nos Estados Unidos, os 750 mais 800 bilhões de euros nos países da União Europeia e um trilhão de dólares no Japão juntos com estímulos de muitos bilhões feitos pela China e outros países não vão impedir que a economia mundial entre numa grande recessão económica só comparável à grande depressão dos anos trinta do século XX. Mesmo não havendo no caso uma elite que inequivocamente estivesse na origem da crise ou a tivesse facilitado, não se deixará de colocar a questão de quem irá beneficiar mais dos enormes estímulos feitos e se as medidas tomadas vão no sentido de criar as condições para uma retoma mais rápida ganhando todos ou se desproporcionalmente vão favorecer os «suspeitos do costume».
Há quem como a economista Mariana Mazzucato num artigo recente no Project Syndicate queira reduzir o risco moral associado às medidas anticrise e insista que sejam condicionadas. Sugere que se obrigue o Estado e o sector privado a agir e a investir de forma estratégica para conseguir um crescimento que atinja o maior número de pessoas. O objectivo é, recuperando rendimentos e diminuindo desigualdades sociais, se restaure o pacto social que mantém as democracias vivas, viáveis e dinâmicas e se ponha um travão às derivas populistas e autocráticas.
Nos países em desenvolvimento o problema de diminuição do risco moral coloca-se talvez com maior urgência. As dificuldades encontradas por esses países na busca de um desenvolvimento sustentável indicia as ineficiências já existentes na utilização de recursos próprios e dos recursos conseguidos via doações, empréstimos concessionados no âmbito da ajuda externa bilateral e multilateral. Ineficiências essas que se traduzem na apropriação por alguns de parte significativa dos fundos disponibilizados levando a desigualdades sociais gritantes, a par com a persistente vulnerabilidade e precariedade das populações que deles deviam beneficiar. As consequências desse estado de coisas tornam-se particularmente evidentes sempre que acontece algum choque externo sob a forma de secas ou inundações, baixa no preço internacional do principal produto de exportação ou súbita quebra na pujança económica dos principais parceiros. A pobreza aumenta, a dívida pública dispara e a pressão para se conseguir mais ajuda externa ganha um outro ânimo. Infelizmente ineficiências várias tendem a manter-se e os ciclos são repetidos ficando a população cada vez mais vulnerável enquanto as desigualdades aumentam e se aprofunda a polarização social.
Em Cabo Verde os três anos de seca consecutivos de 2017-2019 vieram comprovar o elevado grau de vulnerabilidade das populações rurais designadamente em Santiago, Santo Antão e Fogo. De pouco terá servido o programa do Banco Mundial que desde 2005 investiu na luta contra pobreza mais de 110 milhões de dólares ou as centenas de milhões de dólares investidos nos campos de Cabo Verde na mobilização de água, na construção de barragens, em sistemas de irrigação e nas múltiplas acções de formação e apoio directo ou indirecto às pessoas. Alguns terão tido ganhos, mas não as populações visadas. A questão que se coloca é se desta vez vai ser diferente.
A pandemia pôs o turismo que representa 25% do PIB em suspensão pelo menos por alguns meses. A necessidade de confinamento deixou milhares de pessoas que antes viviam da actividade informal numa situação de precariedade única. Os que que até Setembro vão beneficiar do novo regime de layoff simplificado com o salário reduzido a 70% vão ter que lidar com a incerteza sobre a continuidade futura da actividade em que actualmente labutam. O país não tem uma posição nas cadeias de valor internacional que lhe permita reactivar exportações de bens e serviços logo que findo os constrangimentos nos transportes se verificar a retoma da procura internacional. Quer isso dizer que não é certo que no pós covid-19 o país esteja em melhor posição de diminuir o défice orçamental, baixar a dívida pública e retomar os equilíbrios macroeconómicos indispensáveis ao desenvolvimento sustentável.
O facto de vir a receber grande volume de ajuda externa – o orçamento rectificativo prevê, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, um montante de 144 milhões de euros que, ao que tudo indica, vai ser canalizado para garantir algum rendimento à população e liquidez à economia – não significa, como não significou antes, que investimentos adequados serão dirigidos estrategicamente para garantir expansão económica rápida no futuro. A tentação é como das outras vezes de se deixar incorrer em risco moral tomando como garantido que haverá sempre ajuda externa e repetir a forma de fazer as coisas que invariavelmente tem beneficiado uma minoria, deixando largas franjas da população numa situação de precaridade. A gravidade desta pandemia e o impacto único que está a ter o mundo é um forte aviso que não há muito espaço para esse tipo de comportamento e que de há muito passou o tempo para uma mudança de rumo e de atitude. Tomar uma resolução firme nesse sentido seria a melhor forma de celebrar os 45 anos de independência nacional que se completam no próximo dia 5 de Julho.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020.

segunda-feira, junho 29, 2020

Convergência vs. desunião

O SARS-Cov-2 por ser um vírus que potencialmente a todos pode infectar constituiu um candidato sério à categoria de ameaça existencial que poderia unir a humanidade. Assim pensaram muitos optimistas que viram na conjugação de esforços indispensável para se dar combate efectivo ao vírus o prelúdio de uma acção conjunta de todos os povos e nações que depois poderia ser dirigida para enfrentar os efeitos das alterações climáticas, lutar contra a pobreza global e criar as condições para paz e justiça no mundo.
Para os pessimistas, porém, a reacção inicial de muitos países em dar uma resposta nacional à epidemia chegando mesmo a proibir exportações de medicamentos, de equipamentos médicos e de materiais de protecção, foi indício evidente que afinal nada mudou e que interesses mesquinhos e o egoísmo continuam a prevalecer nas relações humanas.
A verdade é que, com as incertezas actuais quanto à duração da pandemia, quanto à rapidez com que se pode vir a desenvolver vacinas e estabelecer tratamento médico para os casos de infecção e também sobre as consequências sócio-económicas da crise, ninguém está em posição de prever qual será o futuro a médio prazo. Chances há que afinal os realistas poderão ter razão suficiente e que existe espaço para convergências num quadro de diálogo tanto a nível nacional como internacional, apesar de se conhecerem forças apostadas na divisão e em lançar uns contra os outros em nome da luta contra a desigualdade, a xenofobia e o racismo. O problema é saber para onde penderá a balança quando ainda a esfera pública dá sinais de bloqueio devido a guerras tribais entre os partidos, ao fomento do ódio e ao uso sistemático da vitimização e do ressentimento como formas de protesto e de luta política.
Provavelmente a evolução das democracias vai depender muito da forma como se ultrapassar a actual crise sanitária. Se depois de todos os sacrifícios passados rapidamente se regressar aos comportamentos e políticas habituais dificilmente não haverá mais polarização e propensão para dar ouvidos a populismos tanto da esquerda como da direita. Se pelo contrário se for por um outro “contrato social”, que focalize a atenção da sociedade em ganhar mais resiliência contra choques externos, em distribuir melhor a prosperidade criada e em criar mais oportunidades para todos, mais bem preparado se poderá estar para enfrentar crises futuras. É algo assente que o coronavírus não vai ser eliminado a curto ou médio prazo e que se terá de conviver com ele por algum tempo sujeitando-se todos a constrangimentos que se mostrarem necessários para conter surtos e quebrar cadeias de contágio. O nível elevado de colaboração que se terá de exigir só poderá ser mantida numa base de confiança entre o governo e os cidadãos alicerçada em políticas públicas nas quais a generalidade das pessoas veja vantagens reais e uma hipótese de futuro para as novas gerações.
Infelizmente os efeitos da pandemia sobre as pessoas em muitos países têm favorecido mais razões para desunião do que incentivos para um diálogo mais alargado na sociedade. A covid-19 torna mais saliente os males sociais, entre eles as posturas discriminatórias das instituições, o acesso diferenciado aos cuidados de saúde e as insuficiências habitacionais. É facto assente que a doença expôs por todo o lado com notável crueza a vulnerabilidade das populações e a precariedade da vida das pessoas. Nas condições específicas dos Estados Unidos da América veio à superfície com particular força o racismo sistêmico que ainda subsiste e cujos efeitos foram sentidos tragicamente no número desproporcional de mortes de afro-americanos devido à covid-19.
A morte lenta de George Floyd sob a pressão do joelho do agente da polícia vista por milhões de pessoas na televisão e nas redes sociais em todo o mundo acabou por encapsular os abusos e a discriminação que se vêm arrastando há séculos. Os protestos que se seguiram em todo o mundo realçaram o quão universal são os valores da liberdade e da igualdade e como se reage em choque quando a América falha em os seguir. Já não tão positivo foi a tentação de usar localmente esses protestos para fazer da vitimização e do ressentimento as vias para exprimir e denunciar condições discriminatórias e de reduzida oportunidade com que minorias, imigrantes e africanos se deparam em vários países, designadamente na Europa. O “estado de guerra” que daí resulta impede o diálogo e prejudica a convergência necessária dos vários grupos sociais para que individualmente e institucionalmente todos se ponham à altura dos princípios e valores civilizacionais nos quais dizem rever-se.
Cabo Verde não ficou de fora em toda esta movimentação. Também aqui está-se a contestar recorrendo à vitimização e ao ressentimento. Para dar corpo à vitimização esforça-se por trazer ao de cima o esclavagismo, quando é óbvio que a experiência cabo- verdiana é diferente das ilhas do Caribe e do Brasil e até de São Tomé e Príncipe. De facto, não há sistema de plantações com suas «casas grandes e senzalas» que aguente no regime de chuvas escassas de Cabo Verde, pontuado por secas e fomes sucessivas. Também procura-se cultivar o ressentimento e atirar as ilhas umas contra as outras servindo-se de narrativas que fazem de umas agentes de conspiração na discriminação e subalternização de outras. O facto de ao longo de cinco séculos na diversidade das nove ilhas ter emergido uma nação, uma língua e uma cultura não parece importar nada. Entretanto perde-se a oportunidade para a convergência a meio de uma crise cujos efeitos terríveis já lançaram o país numa recessão nunca antes vista.
Sem um esforço colectivo de encontrar o melhor caminho para o mundo pós covid-19 a disputa vai realmente quedar-se por quem fica com o controlo e a distribuição dos recursos. Nesse sentido a configuração social e económica com as suas desigualdades, falta de oportunidades e baixa produtividade só poderá autorreproduzir-se pois o mais provável é que irão repetir-se os modelos que num e noutro momento foram aplicados em Cabo Verde. Sem um olhar para a criação de riqueza não se vai ter a preocupação em potenciar o que já existe e funciona para diminuir o impacto da recessão e os seus efeitos no crescimento e no emprego.
Com a possibilidade de criar air bridges como propõe a TUI nos voos do Reino Unido para a ilha do Sal associados ao turismo all inclusive existente, por sua natureza mais restrito à zona dos hotéis, provavelmente haverá condições para se retomar a dinâmica económica com os operadores que são responsáveis por cerca de 80% do fluxo turístico, conquanto tudo seja bem planeado e gerido com segurança sanitária e o mínimo de risco de contágio para população. Ainda se poderá aproveitar das exigências especiais do momento para regular convenientemente a prestação de serviços aos hotéis e potenciar o impacto na economia local. No mesmo sentido de criar condições para o aumento da riqueza nacional dever-se-á dar maior importância à organização de uma logística de transporte de carga entre as ilhas de forma a melhorar a eficiência do mercado interno e por essa via se estimular a produção nacional de bens alimentares na agricultura, pecuária e pesca.
Ênfase na criação de riqueza só pode vir de uma atitude que rejeita a tentação fácil de vitimização para exigir reparação por males reais e imaginários e recusa alimentar ressentimento para extrair valor dos outros. Convergência num quadro plural e não de desunião deve ser a opção a ser feita. A covid-19 veio relembrar a nossa humanidade comum e os desafios que tem que ser enfrentados não num jogo de soma nula, mas sim com a convicção de que todos podem ganhar.
Humberto Cardoso 
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 969 de 24 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 22, 2020

Culpar os outros

Mais de duas semanas depois do fim do estado de emergência na ilha de Santiago a situação da Covid-19 em Cabo Verde não é a mais rósea. Os números de contágio quase de duplicaram passando de 406 casos no dia 29 de Maio para 781 no dia 16 de Junho.
No mesmo período confirmaram-se novos casos em S. Vicente e Boa Vista e os primeiros na Ribeira Grande de Santo Antão, Ribeira Brava em São Nicolau e em Santa Catarina de Santiago. Autênticos surtos verificaram-se em Santa Cruz e na ilha do Sal que elevaram em poucos dias o número de casos positivos nessas duas ilhas a 74 e 71 respectivamente, segundo dados do dia 16 de Junho. As razões para isso são múltiplas, mas certamente que não se resumem apenas à falta de colaboração ou de sentido de responsabilidade de franjas da população.
Aparentemente o processo de desconfinamento não correu de melhor forma e terá contribuído para isso a facilitação da circulação de pessoas pelas ilhas, o desejo de maior interacção social depois do período restritivo e algum descaso da população porque não se verificaram as piores previsões. Neste particular é de notar que a maior parte dos casos têm sido assintomáticos ou com sintomas leves e que mesmo em termos de óbitos não se atingiram os números alarmantes de outros países. Os casos de mortes, até agora sete, são apresentados como tendo entre as causas comorbidades detidas pelos pacientes e não qualquer sobrecarga ou deficiência nos cuidados prestados. Um outro factor a ter em conta é a ânsia das autoridades talvez preocupadas com a economia e a perda de rendimento das pessoas em fazer crer que a restauração da normalidade não tarda muito. Com a ideia de que se terá ganho a luta contra a Covid-19 é mais difícil para as pessoas cumprirem na íntegra as recomendações de distanciamento social e as transgressões tendem a multiplicar-se particularmente entre os jovens como se pode constatar dos dados estatísticos dos casos confirmados apresentados por faixa etária.
Processos de desconfinamento noutros países pelas mesmas ou outras razões foram acompanhados de surtos e picos de contágio. Em certos casos de maior gravidade como na China e na Coreia do Sul houve quem tenha falado numa segunda vaga da Covid-19. Poucos dias atrás a OMS veio reafirmar que ainda se trata da primeira vaga e que para enfrentar o recrudescimento de casos positivos a resposta das autoridades nunca deve ser complacente nem cair em triunfalismos. O coronavírus está bem presente, ninguém o eliminou e tem que se aprender a conviver com essa realidade até que apareçam vacinas ou se identificam tratamentos para as múltiplas complicações por ele provocadas.
Nesse sentido, além do rigor em manter restrições diversas com vista a impedir proximidade excessiva das pessoas, as autoridades devem melhorar continuamente a capacidade de testar, seguir e rastrear indispensável para se conter a transmissão do vírus. A colaboração das pessoas é essencial para o sucesso no combate ao vírus e no processo de retoma da economia. Para o conseguir como diz ao jornal Financial Times o presidente da câmara de Seul, a capital da Coreia do Sul, há que, a par de medidas de prevenção e de mitigação necessárias, mostrar humildade, ser capaz de recentrar posições e até de voltar atrás nas medidas tomadas e admitir erros.
A tentação oficial em Cabo Verde de apontar a falta de colaboração das pessoas como a causa principal das falhas no combate ao coronavírus não beneficia ninguém. Aconteceu no caso do surto do vírus na Boa Vista e está acontecer actualmente com os surtos nas ilhas de Santiago e do Sal. De facto, a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso nesse e noutros domínios da vida do país é sempre do governo. Governar não significa dividir responsabilidades e assumir que cada um faz a sua parte. De quem governa exige-se liderança com vista à criação de vontades e mobilização de energia e de recursos para consecução dos objectivos traçados. Um ingrediente essencial nisso tudo é a confiança que, para ser preservada, particularmente quando se enfrenta um inimigo existencial e desconhecido como o coronavírus SARS-cov-2, se exige humildade, capacidade de reconhecer erros e abertura para rever decisões erradas.
A verdade é que se levou demasiado tempo a ir atrás do vírus e não se fizeram testes suficientes e numa perspectiva epidemiológica que pudessem dar uma visão mais clara do que se passava em cada uma das ilhas antes de se pôr fim às restrições na circulação das pessoas. Também da mesma forma como não se ouviram durante demasiado tempo as vozes que diziam para testar, testar, não se prestou a devida atenção aos que diziam que num país de nove ilhas não era racional ter-se um único laboratório para testes de Covid-19 à espera de amostras vindas por barco ou avião fretado das outras ilhas. Noutros países mobilizaram-se universidades, profissionais de saúde na reforma e investigadores nos institutos e faculdades para participar do esforço que todos reconhecem ser fundamental de testar, seguir e rastrear. Em Cabo Verde, há umas duas semanas que se acrescentou equipamento ao laboratório do INDP em S. Vicente para poder fazer testes, só agora é que se está a falar em equipar a UNICV com um RT-PCR e quanto a prover o país de recursos humanos preferiu-se usar ajuda externa do Luxemburgo para trazer uma equipa cubana.
As declarações de estado de alerta, contingência, calamidade e por fim de emergência em Março, Abril e Maio tinham como objectivo primeiro ganhar tempo para o país se preparar para enfrentar a pandemia, impedir o colapso do sistema de saúde e adequar-se ao “novo normal” que se iria instalar de convivência com o vírus, das novas relações entre as pessoas e da nova realidade de um mundo pós-covid. Era de todo o interesse que políticas nesse sentido fossem consistentes e eficazes para granjear a colaboração de todos e para potenciar o esforço que seria exigido para adaptar o país às novas circunstâncias e evitar a ilusão de que se pode voltar à normalidade anterior. O facto de perante novas falhas se estar outra vez a apontar o dedo às pessoas em vez de avaliar onde a liderança do processo ficou aquém do que era esperado e outra vez estar-se a “ir atrás do vírus” como acontece na ilha do Sal, é caso para se interrogar se alguma vez se vai deixar de fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes.
Mais de duas semanas depois do fim do estado de emergência na ilha de Santiago a situação da Covid-19 em Cabo Verde não é a mais rósea. Os números de contágio quase de duplicaram passando de 406 casos no dia 29 de Maio para 781 no dia 16 de Junho. No mesmo período confirmaram-se novos casos em S. Vicente e Boa Vista e os primeiros na Ribeira Grande de Santo Antão, Ribeira Brava em São Nicolau e em Santa Catarina de Santiago. Autênticos surtos verificaram-se em Santa Cruz e na ilha do Sal que elevaram em poucos dias o número de casos positivos nessas duas ilhas a 74 e 71 respectivamente, segundo dados do dia 16 de Junho. As razões para isso são múltiplas, mas certamente que não se resumem apenas à falta de colaboração ou de sentido de responsabilidade de franjas da população.
Aparentemente o processo de desconfinamento não correu de melhor forma e terá contribuído para isso a facilitação da circulação de pessoas pelas ilhas, o desejo de maior interacção social depois do período restritivo e algum descaso da população porque não se verificaram as piores previsões. Neste particular é de notar que a maior parte dos casos têm sido assintomáticos ou com sintomas leves e que mesmo em termos de óbitos não se atingiram os números alarmantes de outros países. Os casos de mortes, até agora sete, são apresentados como tendo entre as causas comorbidades detidas pelos pacientes e não qualquer sobrecarga ou deficiência nos cuidados prestados. Um outro factor a ter em conta é a ânsia das autoridades talvez preocupadas com a economia e a perda de rendimento das pessoas em fazer crer que a restauração da normalidade não tarda muito. Com a ideia de que se terá ganho a luta contra a Covid-19 é mais difícil para as pessoas cumprirem na íntegra as recomendações de distanciamento social e as transgressões tendem a multiplicar-se particularmente entre os jovens como se pode constatar dos dados estatísticos dos casos confirmados apresentados por faixa etária.
Processos de desconfinamento noutros países pelas mesmas ou outras razões foram acompanhados de surtos e picos de contágio. Em certos casos de maior gravidade como na China e na Coreia do Sul houve quem tenha falado numa segunda vaga da Covid-19. Poucos dias atrás a OMS veio reafirmar que ainda se trata da primeira vaga e que para enfrentar o recrudescimento de casos positivos a resposta das autoridades nunca deve ser complacente nem cair em triunfalismos. O coronavírus está bem presente, ninguém o eliminou e tem que se aprender a conviver com essa realidade até que apareçam vacinas ou se identificam tratamentos para as múltiplas complicações por ele provocadas.
Nesse sentido, além do rigor em manter restrições diversas com vista a impedir proximidade excessiva das pessoas, as autoridades devem melhorar continuamente a capacidade de testar, seguir e rastrear indispensável para se conter a transmissão do vírus. A colaboração das pessoas é essencial para o sucesso no combate ao vírus e no processo de retoma da economia. Para o conseguir como diz ao jornal Financial Times o presidente da câmara de Seul, a capital da Coreia do Sul, há que, a par de medidas de prevenção e de mitigação necessárias, mostrar humildade, ser capaz de recentrar posições e até de voltar atrás nas medidas tomadas e admitir erros.
A tentação oficial em Cabo Verde de apontar a falta de colaboração das pessoas como a causa principal das falhas no combate ao coronavírus não beneficia ninguém. Aconteceu no caso do surto do vírus na Boa Vista e está acontecer actualmente com os surtos nas ilhas de Santiago e do Sal. De facto, a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso nesse e noutros domínios da vida do país é sempre do governo. Governar não significa dividir responsabilidades e assumir que cada um faz a sua parte. De quem governa exige-se liderança com vista à criação de vontades e mobilização de energia e de recursos para consecução dos objectivos traçados. Um ingrediente essencial nisso tudo é a confiança que, para ser preservada, particularmente quando se enfrenta um inimigo existencial e desconhecido como o coronavírus SARS-cov-2, se exige humildade, capacidade de reconhecer erros e abertura para rever decisões erradas.
A verdade é que se levou demasiado tempo a ir atrás do vírus e não se fizeram testes suficientes e numa perspectiva epidemiológica que pudessem dar uma visão mais clara do que se passava em cada uma das ilhas antes de se pôr fim às restrições na circulação das pessoas. Também da mesma forma como não se ouviram durante demasiado tempo as vozes que diziam para testar, testar, não se prestou a devida atenção aos que diziam que num país de nove ilhas não era racional ter-se um único laboratório para testes de Covid-19 à espera de amostras vindas por barco ou avião fretado das outras ilhas. Noutros países mobilizaram-se universidades, profissionais de saúde na reforma e investigadores nos institutos e faculdades para participar do esforço que todos reconhecem ser fundamental de testar, seguir e rastrear. Em Cabo Verde, há umas duas semanas que se acrescentou equipamento ao laboratório do INDP em S. Vicente para poder fazer testes, só agora é que se está a falar em equipar a UNICV com um RT-PCR e quanto a prover o país de recursos humanos preferiu-se usar ajuda externa do Luxemburgo para trazer uma equipa cubana.
As declarações de estado de alerta, contingência, calamidade e por fim de emergência em Março, Abril e Maio tinham como objectivo primeiro ganhar tempo para o país se preparar para enfrentar a pandemia, impedir o colapso do sistema de saúde e adequar-se ao “novo normal” que se iria instalar de convivência com o vírus, das novas relações entre as pessoas e da nova realidade de um mundo pós-covid. Era de todo o interesse que políticas nesse sentido fossem consistentes e eficazes para granjear a colaboração de todos e para potenciar o esforço que seria exigido para adaptar o país às novas circunstâncias e evitar a ilusão de que se pode voltar à normalidade anterior. O facto de perante novas falhas se estar outra vez a apontar o dedo às pessoas em vez de avaliar onde a liderança do processo ficou aquém do que era esperado e outra vez estar-se a “ir atrás do vírus” como acontece na ilha do Sal, é caso para se interrogar se alguma vez se vai deixar de fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 968 de 17 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 15, 2020

Política habitacional omissa

A problemática da habitação vai mais uma vez ao parlamento esta quarta-feira. Pela forma como o palco foi montado nas últimas semanas com denúncias na comunicação, visitas de deputados da nação e cenas de demolição de barracas sob protecção ostensiva da polícia e de militares, pode-se imaginar que o resultado do debate parlamentar não será muito diferente do já verificado em sessões anteriores.
As exigências a serem apresentadas para discussão, segundo declaração de deputados à imprensa, resumem-se à “distribuição de lotes para as pessoas de pouco renda, distribuição de lotes aos privados para a venda ou então o próprio Estado construir ou disponibilizar casas para venda”.
O direito à habitação, no entendimento geral, significaria que as pessoas teriam direito a casa própria e também que o Estado e as autarquias deveriam assumir a responsabilidade de proporcionar os meios para a sua efectivação. O facto de até agora essa política ser uma das principais razões pela situação de défice habitacional no país, pela existência de bairros degradados nos principais centros urbanos e pelo aparecimento das barracas nas ilhas da Boa Vista e Sal, parece não incomodar. Insiste-se na ideia peregrina de que todo o cabo-verdiano deve ter direito a um lote de terreno e à possibilidade de por si próprio nele construir a sua residência sem olhar às consequências que vão se acumulando ano após ano.
Uma das dissonâncias cognitivas produzidas por esse “direito inalienável” é a separação que na prática se faz entre habitação e economia como se fossem dois mundos à parte. Por um lado, não se vê que a edificação de casas constitui uma parte substancial do sector da construção civil e que como outros sectores deve poder orientar-se pela procura de ganhos de produtividade e de qualidade e ainda pela maior eficiência na utilização dos recursos humanos e físicos disponíveis. Resumindo, a informalidade na construção não deve ser norma. Por outro lado, não há aparentemente compreensão imediata que para se ter casa é preciso ter rendimento, seja para amortizar o financiamento de casa própria, seja para pagamento da renda. Ou seja, não é viável ter-se uma política de habitação separada de uma política de estruturação e modernização do sector da construção civil e de políticas de criação de emprego sustentáveis para a generalidade da população.
O chamado projecto Casa para Todos é o exemplo acabado do que acontece quando, por razões espúrias, não se dá atenção ao óbvio. Criou-se o projecto de habitação social, mas também com ofertas para as classes média e média baixa na base de um crédito de natureza comercial, mas com juros bonificados pelo Estado português. Como contrapartida ao subsídio, as obras seriam feitas por consórcios maioritariamente portugueses e utilizando material de construção de origem portuguesa até 60% do total. Pelo que se vê, o projecto não resultou da aplicação da poupança interna, não serviu para estimular e estruturar o empresariado nacional e não foi concebido como gerador de empregos. Aconteceu o contrário, o país agravou significativamente a sua dívida externa, o empresariado do sector de construção saiu fragilizado e por todo o país ficaram milhares de apartamentos por vender e por arrendar porque, ou por razões de custo, de localização ou da adequação dos imóveis, não havia mercado para os absorver.
Ainda se criou um banco, o Novo Banco, para completar a ilusão de que o projecto era racional e era viável. Como podia-se prever, logo à nascença dessa instituição, em 2010, o desfecho não foi o melhor. Quando finalmente se disponibilizaram os apartamentos já não havia o Novo Banco para financiar créditos aos eventuais compradores. Considerando o timing de lançamento do projecto Casa para Todos e da criação do Novo Banco nas vésperas de eleições legislativas, é natural pensar que existissem outras motivações por detrás. A verdade, porém, é que o défice habitacional continuou e as barracas aumentaram enquanto alguns milhares de apartamentos do projecto até agora permanecem sem destino certo.
Estranhamente, ainda hoje não há certeza de que o país reflectiu devidamente sobre a dimensão do erro cometido. Mesmo depois da dívida pública ter atingido os três dígitos, de ter aumentado o número de barracas e de se ser obrigado cinco anos depois a conviver com o espectáculo de prédios vazios e apartamentos sem compradores, ainda no confronto político se trocam acusações sobre quem é o culpado por ter feito e quem é culpado por não ter vendido. As questões de fundo sobre a política de habitação continuam sem resposta e persistem equívocos em como proceder para gerar riqueza, criar empregos e garantir rendimento sustentável às famílias. Também nota-se a tentação de se regressar sempre às opções e soluções que, por experiência repetida, conduzem a elefantes brancos e a ineficiências diversas e ao tipo de vulnerabilidades e de precariedade que, quando acontecem secas e outros choques externos, facilmente se revelam. É como se o país não tivesse capacidade de aprender, de alterar o rumo e de inovar a partir dos próprios erros, mesmo em situações extremas.
Um exemplo disso é a questão do emprego. Com a dinâmica do crescimento dos últimos anos, em particular do turismo e de actividades conexas, o desemprego aproximou-se da barreira que o podia fazer cair para um dígito. Provavelmente os empregos podiam ser maiores e mais qualificados se houvesse um esforço mais dirigido para se conseguir um maior impacto do turismo e melhorar os recursos humanos. Isso, porém, seria incompatível com discursos e políticas que dizem querer combater o desemprego, mas opõem-se ao chamado êxodo rural, e querem fixar as populações nas ilhas quando se sabe que para criar riqueza tem que se aumentar a produtividade e direcionar a mão-de-obra para os sectores mais produtivos da indústria e dos serviços. Também deve-se proporcionar mão-de-obra qualificada nos pontos de maior investimento e nesse sentido criar condições para migrações internas e programar formação profissional de forma a se ter mão-de-obra competitiva a nível global em sectores emergentes, particularmente nos domínios da tecnologia de informação e de comunicação.
Uma política habitacional adequada é essencial para se conjugar recursos financeiros físicos e humanos e obter o maior retorno possível em termos de criação de riqueza e de emprego. Infelizmente a debandada que se verifica actualmente em direcção às ilhas de origem na sequência da paralisia da economia ligada ao turismo e à aviação deixa antever que não se conseguiu criar nos jovens estabilidade e sentido de pertença essenciais para o sucesso de uma política de habitação nas ilhas turísticas. Se, de facto, está-se de passagem, não espanta que proliferem barracas e falhem as tentativas de produzir um crescimento urbano ordeiro e inclusivo. Da mesma forma, mantendo-se aliciante a ideia de trabalhar para o Estado, não há como evitar o crescimento descontrolado dos bairros particularmente na capital do país.
O grande desafio que se coloca é como harmonizar políticas de crescimento e de criação de emprego com a política de habitação de forma a garantir maiores ganhos para o país, diminuir a vulnerabilidade e precariedade das populações e manter viva a diversidade cultural enriquecedora das diferentes ilhas. Até agora tem imperado o desnorte nestas matérias com todas as consequências que se conhecem. Talvez seja desta que finalmente se trace um novo rumo que traga prosperidade e uma vida melhor para todos. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 08, 2020

Desafios do pós-confinamento

Depois de dois meses em estado de emergência a ilha de Santiago finalmente sai do confinamento domiciliário imposto à população e vê diminuídas muitas das restrições à actividade económica. Boa Vista duas semanas antes tinha sido aliviada das exigências do estado de emergência enquanto S.Vicente e as ilhas sem casos confirmados de covid-19 viram-se libertas das medidas de excepção a 2 de Maio.
Sente-se o suspiro de alívio do país, mas de facto não há muito espaço para baixar a guarda. O aparecimento dos primeiros casos na ilha do Sal e a importação de outro em S.Vicente vindo do Sal vieram relembrar que o fim do estado de emergência não significa que o país esteja livre do coronavírus.
Nem tão pouco implica que o desconfinamento e a diminuição de constrangimentos na circulação de pessoas constitui o regresso à normalidade social antes vivida. De facto, a pandemia persiste em todo o mundo e a possibilidade de surtos de coronavírus vai existir até que se crie uma vacina ou que a população de outra forma ganhe imunidade. Em qualquer dos casos não é algo que vai acontecer amanhã – as previsões apontam para mais de ano e meio – e por isso é fundamental que se adopte a atitude certa e se aprenda a conviver com o coronavírus, evitando contágio a nível individual, identificando surtos e movendo-se de forma rápida e efectiva para desmantelar eventuais cadeias de transmissão.
Com o fim do estado de emergência terminou uma etapa que a exemplo do que aconteceu noutros países procurou-se ganhar tempo para proteger os mais vulneráveis e para não sobrecarregar os serviços de saúde com um fluxo insustentável de pessoas infectadas. O quadro de excepção permitiu impor o confinamento das pessoas, indispensável para quebrar cadeias de contágio e conter a propagação do vírus, mas não para o eliminar. Nesse sentido parecem deslocadas e contraproducentes quaisquer manifestações de triunfalismo vindas de onde vierem. Tendem a fazer baixar a guarda da população, quando precisamente se quer que as pessoas mantenham um nível de alerta necessário em relação ao vírus e mostrarem-se dispostas a acatar as regras de distanciamento social para impedir a transmissão.
Tratando-se apenas de uma primeira batalha numa guerra que possivelmente vai ter mais episódios, deveria ser fundamental não se fazer aproveitamentos que pudessem prejudicar a colaboração essencial que de todos se espera para realmente se dominar a covid-19. Infelizmente não foi o que se viu na última sessão plenária da Assembleia Nacional em que o “regresso da política” aconteceu da pior forma. O surgimento de novos casos diariamente em Santiago e a eventualidade de nas outras ilhas virem a surgir surtos do vírus devia levar a uma atitude mais sóbria capaz não só de focalizar a atenção de todos nos efeitos da pandemia como também de manter a confiança nas autoridades sanitárias. Está-se num ano de eleições e é de evitar posições partidárias extremadas que podem interferir com a gestão da pandemia, como se vê acontecer nos Estados Unidos e no Brasil.
É assumido que à crise sanitária da covid-19 vai seguir uma crise económica e social. Crescimento negativo e desemprego resultante da paralisação da economia em todos os países afectados pelo coronavírus colocam desafios especiais de como gerir a quebra nos rendimentos da generalidade das pessoas, as incertezas trazidas pelo desaparecimento de certos tipos de negócios e pela suspensão por tempo desconhecido de outros, o aumento da pobreza e da precariedade de existência de muitos e as interrupções na vida académica e profissional de jovens a entrar na idade adulta. São questões complexas que só no quadro da Democracia e do pluralismo terão uma chance de encontrar soluções que respeitando a liberdade e o primado da lei tragam respostas para a necessidade de criar riqueza, garantir inclusão e limitar as desigualdades. Para isso, porém, é preciso ter partidos cientes das suas diferenças de políticas, mas capazes de construir entendimentos para se mitigar os efeitos da pandemia na economia e preparar o quadro de uma retoma. Ganhos de curto prazo ou a expensas do outro não têm aqui lugar porque a verdade é que o mundo pós/covid-19 vai ser muito diferente daquele que existia antes da pandemia e vai exigir políticas e investimentos que realmente capturem o futuro.
Olhando para outros países, vê-se por exemplo a União Europeia com o seu Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros e a aposta na criação de riqueza vai investir nas tecnologias verdes, nas infraestruturas e na habitação, na reorganização e melhoria da resiliência das cadeias de abastecimento, no sistema de saúde para fazer face a crises futuras e especialmente no capital humano para os jovens se prepararem para um mundo em constante mudança. O objectivo como disse a Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen é uma recuperação colectiva da Europa e a construção de um futuro comum em que ninguém fica para trás. Em Portugal, já está em discussão um plano que também vai completar infra-estruturas físicas e digitais, acelerar a transição digital na administração pública, escolas e universidades, potenciar investimento no sistema de saúde, apoiar redes logísticas na agricultura e na indústria e apostar nas energias renováveis e na exploração de recursos minerais. Como diz o mentor do plano, o engenheiro António Costa e Silva, há que acabar com a ladainha que o país não tem recursos. O que se tem de fazer é desenhar políticas públicas para criar valor, gerar riqueza e emprego.
Em Cabo Verde também um exercício de planificação do futuro terá que ser feito para que o país possa perspectivar retoma da economia, recuperar-se do desemprego actual e abrir o caminho para o futuro. A crise da covid-19 deverá servir para abrir os olhos de todos para os resultados das políticas aplicadas nos 45 anos de independência e que deixaram o país na situação de precariedade e de vulnerabilidade que hoje é impossível de ignorar. Insistir em fazer as mesmas coisas e em repetir as políticas do passado certamente não irão dar resultados diferentes dos que actualmente se constatam e que são manifestamente inadequados. Também a incapacidade de chegar a acordos entre os partidos em matérias de políticas de médio e longo prazo será um grande empecilho para se fazer diferente desta vez. Por último, não querer falar à Nação honestamente sobre os problemas do país e persistir nas visões fantasistas só vai continuar a alimentar o populismo, a semear a divisão e a nunca se poder colher e direcionar a energia necessária para levar o país para um outro rumo que finalmente lhe permita vencer a pobreza ancestral que sempre caracterizou estas ilhas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 966 de 03 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 01, 2020

O regresso da política

Passados os momentos piores da pandemia da covid-19, assiste-se em muitos países ao recrudescer da actividade política com as polarizações de sempre e em certos casos com as costumeiras ameaças de bloqueio.
O ambiente de consenso próprio de situações de emergência já começou a ceder lugar a desacordos em várias matérias designadamente como e quando proceder ao desconfinamento e à abertura da economia. A agitação social e política que se vê, por exemplo, na Espanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos espelha essa dinâmica. Depois das subidas de popularidade que quase inevitavelmente quem está no governo a gerir a crise acaba por obter, nota-se a preocupação da oposição em ganhar outra vez protagonismo e em cumprir plenamente a sua função de fiscalização do governo e de promotor de ideias, perspectivas e políticas diferentes das defendidas pelo executivo. E é bom que assim seja, porque mesmo em estado de excepção não há suspensão da democracia. Para além disso o desafio de construir o futuro no pós-covid-19 tornou-se mais complexa e precisa da participação de todos, mas de uma forma livre e plural.
Estados de emergência, particularmente aqueles provocados por ameaças existenciais do tipo que o coronavírus representa, convidam a um certo unanimismo e servem de pretexto para derivas autoritárias. Com o foco em salvar vidas, tende-se a inibir perspectivas diferentes das preconizadas por quem está a dirigir os esforços de toda a colectividade. Igualmente com a disponibilização de todos os meios possíveis, em nome de maior eficácia na mitigação dos efeitos da pandemia, surge a tentação de fazer da concentração pontual de poder algo mais durável e talvez permanente. É de esperar que a tendência seja essa na medida em que estados de excepção, pela sua própria natureza, invariavelmente levam à deslocação de poder para o executivo na proporção inversa em que se vê diminuir o poder do parlamento e se verifica a compressão dos direitos dos cidadãos. Por definição, são estados temporários mas ninguém garante que não apareça quem queira tornar permanente uma nova configuração das competências dos órgãos de soberania com prejuízo para o parlamento, poder judicial e para os próprios indivíduos.
Isso está visivelmente a acontecer na Hungria de Viktor Orban com a subalternização do parlamento, com as tentativas de submissão dos tribunais e os ataques às minorias. Nos Estados Unidos e no Brasil está-se a ver como nenhuma instituição vai ficar ilesa de todos os ataques populistas e demagógicos que lhes são dirigidos diariamente. Mesmo nas democracias onde não são perceptíveis ataques ao Estado de Direito a coberto da “guerra” ao coronavírus é notório que no futuro próximo o poder executivo vai ficar mais forte e que, devido à recessão económica junto com altos níveis de desemprego, os indivíduos e a sociedade civil vão passar a depender mais do Estado. Conter os efeitos dessa tendência é um dos grandes objectivos da política no mundo pós-pandemia da covid-19. Os sinais de regresso da política são por isso bem-vindos. Não devem, porém, ser um regresso à política do antigamente que deixou bem claro as suas falhas, limitações e inadequações na revelada precariedade e vulnerabilidade de largas camadas da população constatada nas últimas semanas.
Em Cabo Verde, a Assembleia Nacional reúne-se na quarta-feira, dia 27 de Maio, com uma ordem de trabalhos densa e mais em linha com o que se verifica no período pré-covid-19. Até vai ter debate com o Primeiro-ministro o que não acontecia desde 19 de Fevereiro. O governo e a maioria parlamentar sempre que questionados sobre a ausência do PM justificaram a indisponibilidade do primeiro-ministro com as exigências da luta contra a covid-19. Em democracia porém as causas públicas ficam sempre prejudicadas quando são subtraídas de uma forma ou de outra à fiscalização legítima do parlamento. A eficácia do governo depende da confiança que granjear e conservar junto da população para que esta siga as suas orientações e cumpra as suas instruções. Contribui para essa confiança a disponibilidade do governo em responder pelas suas acções e explicar-se perante a Nação em sede do contraditório como acontece no parlamento. Em plena segunda guerra mundial o parlamento inglês, a grande referência dos regimes parlamentares, não deixou de se reunir, nem Churchill se esquivou a ir ao parlamento para justificar a condução da guerra. O problema é se com a desconfiança reforçada entre as bancadas por causa da subalternização do parlamento se venha ainda a constatar menos disponibilidade dos partidos para renovar a forma de fazer política e poder assim enfrentar os desafios enormes do mundo pós-pandemia.
A crise da covid-19 deixou a nu a precariedade da existência de muitos e as profundas vulnerabilidades ainda existentes em particular nas populações rurais e nas cinturas urbanas do país. Os efeitos socio-económicos imediatos da crise e a perspectiva do prolongamento da ameaça do coronavírus por um, dois ou mais anos, dependendo de vacinas e medicamentos antivirais que forem disponibilizados, obrigam a uma radical mudança de atitude dos partidos políticos. Não se pode realmente continuar a fazer mais do mesmo. A política não pode resumir-se a quem dá ou promete mais. Não deve ficar por quem instiga mais, quem se indigna mais e quem denuncia mais. Algum sentido colectivo de responsabilidade sobre a situação real do país neste ano dos 45 anos de independência devia servir de guia para entendimentos entre as forças políticas quanto ao que deve ser feito para não se repetir o passado. É fundamental que não se continue a reproduzir as condições que resultaram na pobreza a desigualdade tornadas notórias nestas últimas semanas. Tempos difíceis estão aí à porta e é bom que não se permita que a desesperança se instale.
É verdade que o ambiente político não é o melhor para entendimentos entre os partidos. Para além da desconfiança mútua renovada nos últimos tempos, há ainda a perspectiva de conquista do poder seguida de forte bipolarizacão que o próximo ciclo eleitoral, a começar pelas autárquicas em Setembro/Outubro vai colocar. A crescente dependência da população contribuirá para fazer do papel do Estado na economia e na sociedade um elemento-chave do posicionamento das forças políticas. Mais ajuda externa irá fazer da gestão dos recursos disponibilizados um elemento de contencioso forte entre os partidos com as habituais suspeições pelo meio. A conjugação de mais ajuda e mais pobreza poderá constituir um incentivo mais no sentido de se reproduzir modelos anteriores, com resultados já conhecidos, do que em lançar o país noutros caminhos de maior sustentabilidade dos ganhos conseguidos.
Ou seja, tudo vai concorrer para que mais uma vez um choque externo de grande envergadura não sirva de pretexto para se mudar o rumo do país. Seria porém de grande importância que não fosse assim. O regresso das tradicionais palmas nas reuniões plenárias do parlamento, depois do apelo ao unanimismo de conveniência que as calaram, deveria significar a assunção de um discurso aberto, franco e construtivo de todos os sujeitos parlamentares com vista a entendimentos de fundo para se enfrentar os grandes desafios actuais e futuros. O país agradeceria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.

segunda-feira, maio 25, 2020

Soltem os melhores anjos

Quando já nuvens negras pairavam sobre os Estados Unidos e se tornava real a possibilidade de uma guerra entre o Norte e o Sul Abraham Lincoln no seu discurso inaugural como presidente fez um apelo aos “melhores anjos da natureza” dos seus compatriotas no sentido de se ultrapassar as fracturas que ameaçavam a União.
Lincoln referia-se às qualidades cívicas e patrióticas formatadas por uma vivência e uma memória comum que vinha de várias décadas sob a égide da primeira Constituição que proclamou a igualdade de todos e estabeleceu como inalienáveis o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade. Não impediu o conflito e a guerra civil acabou por acontecer, deixando um rasto de mais de 500 mil mortos, mas a unidade do país foi salva, a escravatura foi extinta e a luta pela igualdade de todos com os seus altos e baixos tem, desde então, acumulado sucessos. Houve, pois, progresso e a expressão de Lincoln serve hoje de inspiração, em particular, na luta contra os nossos piores instintos.
Há quase uma década Steven Pinker num livro com o título “Os melhores anjos da nossa natureza” procurou demonstrar que a violência dos homens contra os seus pares nos últimos trezentos anos, não obstante as guerras mundiais, as guerras coloniais e a guerra fria tem diminuído consistentemente. Na sua tese, os melhores anjos têm prevalecido apesar de tudo. Na encruzilhada em que o mundo se encontra neste momento a enfrentar a pandemia e a crise económica, social e política, que ela estará a engendrar e que ninguém sabe qual vai ser o desfecho, é de augurar que os melhores anjos voltem a triunfar sobre os piores instintos das pessoas e das nações. A dimensão do desastre que ameaça a todos com milhões de desempregados em todo o mundo e a contracção violenta da economia na generalidade dos países deixa claro que o mundo pós-covid-19 vai ser diferente. Se não for um mundo dominado por nacionalismos e rivalidades entre as grandes potências , marcado por profundas fracturas sociais e globalmente mais pobre, terá que ser o mundo menos desigual, com mais e melhores oportunidades e com mais sentido de responsabilidade individual e colectiva. Também impõe-se que seja mais sensível à necessidade de uma defesa conjunta face a ameaças como pandemias e alterações climáticas e mais aberto a uma relação de maior harmonia dos homens com o planeta e com os outros seres vivos. Para isso os melhores anjos da nossa natureza terão que sair vencedores.
À partida não se vê qualquer garantia nesse sentido. Perante a pandemia, a postura da generalidade dos países tem sido de uma resposta para dentro, fechando fronteiras e chegando ao ponto de proibir exportações de material médico e de apoio à luta contra o coronavírus. Acusações mútuas são feitas em relação à origem da epidemia e tensões xenófobas desenvolvem-se rapidamente na presença de casos importados. Relutância dos mais poderosos tanto a nível global como de entidades como a União Europeia dificultam acções de resgate dos países mais frágeis perante o que alguns já chamaram do maior desastre económico desde a grande depressão dos anos trinta do século passado. Mesmo a cooperação no quadro das organizações multilaterais como a OMS tem sido marcada por disputas que não ajudam na mobilização dos meios e interferem com a eficácia de uma luta que para ser vitoriosa precisa da cooperação de todos.
É verdade que já há iniciativas do FMI e do Banco Mundial para apoio financeiro dirigido aos países mais pobres e aos emergentes e que há também um forte movimento no sentido da perdão da dívida externa dos países africanos. Consensos em como agir, porém, não são fáceis quando se sabe, por exemplo, que o Congresso americano tem que dar luz verde ao FMI e à China terá concordar com os termos da perdão da dívida. Mesmo na União Europeia discute-se arduamente como proceder para ajudar os países mais afectados pela pandemia por forma a que os países do Norte não se sintam sobrecarregados pelos problemas do Sul. Cooperações mais pacíficas acontecem no domínio da investigação do coronavírus e de possíveis vias para o tratamento da covid-19. Outras ainda, mas já não despidas de disputas, intrigas e jogadas pouco claras envolvendo empresas farmacêuticas, focalizam na procura de uma vacina que efectivamente pudesse pôr fim à pandemia. Em todas essas interacções é visível a luta entre, por um lado, as melhores intenções de contribuir para se encontrar uma solução para a pandemia e mitigar os seus efeitos económico e sociais e, por outro, os interesses mais rasteiros com destaque para o lucro e o orgulho nacional.
Em Cabo Verde, assim como na generalidade dos países em desenvolvimento e com grande dependência da generosidade externa, a nova realidade que irá emergir no pós-covid vai colocar desafios de outra natureza, mas não menos difíceis. Já se sabe que no âmbito da crise o Estado voltou a ganhar protagonismo com os seus programas de apoio às populações e às empresas. Na perspectiva do crescimento desse protagonismo com o aumento da ajuda internacional e a diminuição esperada do contributo do sector privado devido à quebra no turismo e na procura externa de bens e serviços, a tendência vai ser de aumento da dependência do Estado. Ficará a dever bastante da capacidade e da vontade dos governantes e das autoridades evitar que o actual momento de vulnerabilidade das populações se torne instrumental no resgate da mentalidade assistencialista que todos dizem repudiar.
Os muitos anos de reciclagem da ajuda externa deixou hábitos enraizados que se manifestam tanto na corrida para abocanhar recursos como na facilitação do acesso aos mesmos para exercer poder, assegurar lealdades e obter ganhos eleitorais. Corre-se o risco de reforçar tais hábitos se, numa situação em que realmente as pessoas precisam de ajuda, houver desvio do objectivo de promover mais autonomia e responsabilidade individual para obtenção de ganhos partidários de curto prazo. E pode contribuir para isso tanto as entidades que têm os meios para dar como também os concorrentes que alimentam reivindicações muitas vezes irrazoáveis só para granjear favor e deixar as autoridades em situação difícil. Vai depender em muito dos “melhores anjos” que souberem mobilizar para que não se sucumba mais uma vez à tentação do assistencialismo, condenando as populações à precariedade e à vulnerabilidade que numa situação de crise como a actualmente vivida se revela de forma tão gritante.

Cerca de um trilhão de dólares em ajuda externa foi concedida à Africa subsaariana nas últimas cinco décadas. A situação actual desses países deixa entender que todos esses recursos não serviram de muito para evitar a situação de pobreza das populações que agora directa ou indirectamente por causa da pandemia da covid-19 vai-se aprofundar ainda mais. Com o nobre propósito de ajudar os países africanos e outros a resistir ao coronavírus certamente que mais ajuda vai ser canalizada e algum perdão da dívida externa vai-se verificar. Seria de esperar que desta vez os fundos canalizados para esses países não aumentassem a dependência das populações e, pelo contrário, o seu impacto se revelasse à altura do justamente celebrado Plano Marshall do pós-guerra na Europa. Que se soltem “os melhores anjos da nossa natureza” para que se consiga tal desiderato.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020.