O governo já marcou as eleições autárquicas para o dia 25 de Outubro. Com essa decisão foi dado o pontapé de saída para o novo ciclo eleitoral que após o embate nos municípios terá continuidade nas eleições legislativas provavelmente em Março/Abril seguido das presidenciais seis meses depois entre Setembro e Outubro.Quase sem tempo para respirar depois do debate sobre o estado da Nação os partidos vão ter que se preparar para apresentar candidatos, plataformas eleitorais e dar um outro vigor à pré-campanha autárquica que na perspectiva de muitos há muito que foi iniciada. As eleições vão acontecer em meio de uma pandemia, até há bem pouco tempo inimaginável, que para além dos efeitos potencialmente graves na saúde das pessoas traz consigo muitas incertezas quanto ao futuro e quebra real e imediata de rendimentos para a generalidade da população. Não estranha que outra vez em pleito eleitoral surjam as velhas ansiedades, agora reforçadas num ambiente de crise sanitária e económica e social, quanto à questão da representação parlamentar e de participação política. Com os olhos postos nas eleições, os cidadãos interrogam-se se realmente os partidos os representam ou se são aglomerados de interesses que servem a si próprios em vez de os servir.
O sentimento dos cabo-verdianos quanto aos partidos e quanto à democracia não é muito diferente do que se vê por aí. Há vários anos que em todo o mundo se tornou notória a crise das democracias manifestando-se no aumento da abstenção, na fuga do eleitorado para os extremos e na emergência de populismos da esquerda e da direita. Depois da crise financeira de 2008 o fenómeno agudizou-se à medida que as populações perdiam confiança nas suas elites, a desigualdade social aumentava e governos de partidos tradicionais mostravam-se incapazes de conter a deterioração das condições de trabalho e a perda de rendimentos. Em vários países a gota-de-água que fez extremar a acção política foram as migrações em particular as vindas da África subsaariana e da Síria. Na vaga de populismo que se agigantou elegeram-se líderes como Trump e Bolsonaro, conseguiu-se finalmente fazer o Reino Unido sair da União Europa e autocratas como Viktor Orban afirmaram-se no coração da Europa.
A covid-19 veio porém temperar os entusiasmos dos que se reviam na retórica anti-partido e anti-sistema, apostavam na descredibilização das instituições e das elites e propunham soluções simples para realidades complexas dos seus países. De facto, quando tudo parecia concorrer para que o fenómeno do populismo fosse mais longe, apareceu o coronavírus e viu-se logo que para o combater com alguma eficácia ter-se-ia de socorrer de conhecimentos científicos e de adoptar uma gestão competente da pandemia pelo Estado. Só assim é que se podia pretender diminuir o número de mortes, aliviar sofrimento e garantir meios de subsistência aos mais vulneráveis. E a verdade é que os líderes populistas revelaram-se incompetentes e demasiado presos na própria retórica para fornecerem liderança efectiva às populações. Descredibilizaram-se e deixaram muitos que punham fé em soluções populistas completamente desorientados.
Nem por isso porém desapareceram as manifestações de insatisfação com a actuação dos partidos, as críticas dirigidas à classe política e o vazio que enquanto cidadãos muitos sentem pelo facto de não se reverem nas opções dos partidos do chamado arco do poder. Só que agora as pessoas são atraídas para outras formas de participação e acabam por ficar reféns de soluções muitas vezes piores porque vincadamente de natureza identitária e promotora de vitimização e de ressentimentos. Em Cabo Verde, por exemplo, muita hostilidade é dirigida ao chamado bipartidarismo do MpD e do PAICV que até hoje não foi rompido pela UCID e nem no passado foi por partidos como o PCD, PRD, PTS, PSD e PP, engendrados num momento ou outro destes trinta anos de regime democrático. Há quem clame por uma espécie de terceira via que pusesse fim ao duopólio dos partidos que se têm alternado no poder. Na falta ou impossibilidade dessa outra força política o desejo é que pelo menos surgisse um partido de protesto tipo Bloco de Esquerda, em Portugal. Também por aí não se teve muita sorte.
A proximidade de eleições sempre renova esses sentimentos mistos de insatisfação com o funcionamento do sistema democrático e de hostilidade aos partidos. A pandemia com as suas incertezas piorou a situação ao revelar as vulnerabilidades do país e das suas gentes que não obstante a alternância dos dois partidos na governação não foram suficientemente minimizadas. Teve-se agora a oportunidade de ver com clareza que a prática do ilusionismo na política conjuntamente com a cultura de varrer os problemas para debaixo do tapete e a dificuldade ou indisponibilidade em combater hábitos, comportamentos e atitudes de dependência tornam de todo quase impossível realizar as reformas necessárias para mudar o país. Para sair do círculo vicioso não ajuda muito a proposta de se ver um dos partidos como “esquerda progressista” e o outro como “neoliberal”. A persistência das vulnerabilidades décadas após décadas sugere que se vá além dos rótulos ideológicos na procura das raízes dos problemas do país e que tudo se faça para governar com verdade, sem falsas ilusões e sem expectativas excessivas ou descabidas.
As eleições autárquicas, por natureza mais circunscritas, e o facto de a lei eleitoral permitir a apresentação de candidaturas por grupos independentes abrem caminho para iniciativas que poderiam atenuar os efeitos do bipartidarismo nos municípios. A exploração dessa possibilidade, que existe desde das primeiras eleições de Dezembro de 1991, não se tem revelado porém a mais frutífera. Não se conseguiu provocar suficientemente mossa no bipartidarismo e demasiadas vezes iniciativas do gênero constituíram formas encapotadas dos partidos se candidatarem ou de dar suporte a brigas entre facções do mesmo partido. Outras vezes serviram para dar corpo a disputas identitárias e divisivas com a falsa ideia de que munícipe é quem nasceu e não quem reside no concelho. O resultado é que de participação cidadã tiveram pouco e facilmente deixaram-se levar pelos maus hábitos partidários de que eram críticos.
Seria bom que desta vez houvesse iniciativas de grupos de cidadãos com um outro espírito. Grupos que exercessem a sua actividade cívica com base na verdade e na disponibilidade para servir e que se deixassem guiar por algum realismo e pragmatismo. Talvez os efeitos sobre os partidos do arco do poder fossem de induzir maior contenção na actuação política e um maior espírito compromissório na resolução dos problemas do país e em lidar com as outras forças políticas. Nesse sentido, deve-se preferir vias criativas que melhorem o funcionamento do sistema político ancorado na liberdade e no pluralismo e não deixar que a frustração leve a populismos que já se sabe não resolvem problemas, particularmente os complexos com que a covid-19 neste momento brindou toda a gente. Reformas, não revolução, precisam-se.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 975 de 5 de Agosto de 2020.