O governo através da resolução n.º 113/2020 renovou o estado de calamidade nas ilhas do Sal e de Santiago agravando drasticamente as medidas dirigidas para impedir ajuntamentos de pessoas.
O nível de contágio nas duas ilhas tem-se mostrado preocupante e procura-se com abordagens mais resolutas das autoridades de fiscalização impor o uso de máscaras e obrigar ao distanciamento social tanto em espaços públicos abertos ou fechados como também a nível privado com a proibição de convívios alargados de amigos e familiares. A situação da covid-19 no país não é boa. Está-se já a passar o limiar dos 3000 casos confirmados quando há menos de dois meses e meio, no fim do estado de emergência a 29 de Maio, o total de infecções se situava em 409. O número de novos casos continua a ser dos mais altos em África e o país continua na lista negra dos países que não podem voar para Europa nem receber passageiros da União Europeia.
As autoridades insistem em dizer que o pico da epidemia foi atingido em Julho e que agora a tendência é para redução, mas é a impressão generalizada que a situação não está controlada. Aliás, as últimas medidas visando fundamentalmente coagir as pessoas não transmitem essa sensação de controlo. Pelo contrário, deixam passar a ideia de que a persuasão se alguma vez funcionou deixou de o fazer e já não se consegue apoio suficiente das pessoas e particularmente dos jovens para quebrar as cadeias de contágio. Se, como como diz a economista Anne Krueger, éa adesãodo público a medidas preventivas que determinará a que ritmo o vírus será vencido e se ela não está a verificar-se ao nível desejável há que reconsiderar os métodos seguidos. De facto, não há como evitar uma reflexão descomplexada sobre a estratégia seguida até agora na luta contra a pandemia, sobre as opções em matéria de comunicação e o nível de competência como foram implementadas as medidas e orientações dadas.
Infelizmente não é essa atitude que se constata e o teor da última resolução do governo a renovar o estado de calamidade é elucidativo a esse respeito. Implicitamente deixa claro que a culpa na falta de controlo da covid-19 em Cabo Verde está nas pessoas e, em conformidade, as medidas nela constantes visam essencialmente reprimir comportamentos desviantes. Repete-se o que se faz nos pronunciamentos públicos em que invariavelmente procura-se culpabilizar as pessoas pelos surtos e ilibar a actuação das autoridades de qualquer responsabilidade. Quando, como se viu na semana passada, que não era possível escapar a alguma responsabilidade oficial pela deterioração da situação imediatamente começaram as acusações intestinas entre serviços que pela sua gravidade receberam reparo público do presidente da república. Porém, a falta de coordenação e de troca de informações entre serviços vitais para a luta contra a pandemia que todos esperavam que estivessem a agir em perfeita sintonia implementando uma estratégia comum, não deixou ninguém tranquilo. E a produção da resolução com medidas controversas quanto à sua oportunidade, proporcionalidade e eficácia e ainda constitucionalmente duvidosas, porque restritivas de liberdades, só veio reforçar essa intranquilidade.
Interroga-se se mais uma vez se está-se a esconder os problemas procurando passar uma imagem de firmeza, mas na prática deixando escapar um cheirinho de insegurança disfarçado de arrogância. Ouve-se o director nacional de saúde dizer, citado pela Inforpress, “nós é que fazemos o diagnóstico, nós é que tratamos os dados e somos nós que publicamos os dados” e pergunta-se se é o mesmo assertivo “nós” que responde pela situação actual de várias dezenas de casos diários criando constrangimentos na vida económica e social e mantendo o país isolado de espaços vitais para a sua economia e sobrevivência. A verdade é que corre-se um risco grande em confrontar o coronavírus com muita assertividade particularmente aquela que esconde fragilidades na coordenação, no tratamento de dados e no uso dos meios disponíveis.
Por ser um vírus novo e portanto desconhecido, mas muito eficiente em causar contágio a velocidade e escala pouco usual, não poucas vezes está-se perante situações complicadas como foi na Boa Vista que levou ao contágio de meia centena de pessoas num hotel em Abril passado, ou à importação do vírus em Santiago em Maio ou ao súbito irromper do surto da covid-19 no mês de Junho na ilha do Sal. Todas elas situações que para serem enfrentadas com algum sucesso exigem que haja humildade, espírito de entreajuda e disposição para aprender e inovar na busca de soluções. Na semana passada viu-se um novo contágio em S.Vicente e nesta segunda-feira foi anunciado um surto na Cadeia de São Martinho. Não deixa de ser preocupante que fazem lembrar falta de coordenação, ineficiências operacionais e simples falhas de comunicação que já deviam ter sido superadas há algum tempo. Isso porém só poderia acontecer se da responsabilização por erros anteriores cometidos tivesse surgido boas práticas, lealdade institucional e maior comprometimento com a verdade. As desavenças recentes não dão muitas esperanças nesse sentido.
Muitos perguntam pelas razões por que as pessoas e em particular os jovens vêm mostrando fraca adesão às orientações das autoridades sobre como lidar com a epidemia da covid-19. Claramente que é demonstração de falta de confiança para a qual terão contribuído vários factores entre os quais a arrogância burocrática e política, a ambiguidade na actuação pública que não assume situações complicadas e a quase indisfarçável vontade das autoridades em declarar que o vírus tinha sido vencido para poder arrebatar a glória da vitória. Quando, como deveria ser previsível, o coronavírus se mostrou difícil de esmagar e rapidamente cresceu depois do período de confinamento devido em parte a alguma precipitação no levantamento de algumas restrições ficou difícil depois de descompressão levar a população a retrair-se como fizera nos dois meses de estado de emergência. Neste aspecto o facto de o governo se ter lançado em força em actos públicos de visitas, anúncios e inaugurações logo que se retomaram os voos internos, como se a velha normalidade das campanhas tivesse voltado, certamente que não ajudou as pessoas e em especial os jovens a ouvir os apelos para uma vida de restrições e de distanciamento entre as pessoas.
Infelizmente esta situação de falta de confiança manifesta-se no momento em que se apela para que os governantes consigam granjear mais confiança da população como condição sine quo non para se pensar em vencer a covid-19. Os períodos de emergência foram tempo dado para se preparar o sistema de saúde para enfrentar o vírus inesperado, para granjear a confiança da população para enfrentar os tempos difíceis que vão subsistir ainda por alguns anos e para preparar a economia e a sociedade para a nova realidade que certamente emergirá do mundo pós-covid-19. Pela pouca adesão da população e pela necessidade de recorrer a meios robustos de coação vê-se que se desperdiçou muito desse capital de confiança, o que é mau particularmente neste momento em que se está num período pré-eleitoral, por natureza mais polarizante, durante o qual restaurar a confiança é mais difícil de se conseguir. Legitimamente também poder-se-ia perguntar se em outros sectores também não se aproveitou o tempo dado e em consequência também neles o país ficou aquém do desejável.
A realidade incontornável é que o país precisa retomar a sua actividade económica mas ela só é possível se os nossos dados da covid-19 forem os que dão tranquilidade aos nossos parceiros, dos quais cerca de 80% em matéria de troca comercial, investimento e fluxo turístico encontram-se na União Europeia. Para atingir esses objetivos deve ser chamado à responsabilidade “quem de direito”: Sem desculpas, bodes expiatórios e fuga à prestação de contas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 976 de 12 de Agosto de 2020.