Assiste-se actualmente em Cabo Verde ao renascer da tendência para o pensamento único sob a capa de slogans como “cumprir Cabral”, “cultura é resistência” e agora “oficialização Já! do crioulo”. Este último slogan saiu do fórum sobre a língua cabo-verdiana realizado no quadro das actividades realizadas no sábado passado a propósito do dia internacional da língua materna. O activismo que dá corpo a essa tendência autorreferencia-se pela aderência à ideologia da luta de libertação, pelo pan-africanismo e pela negação da especificidade da cabo-verdianidade. Até se faz reconhecer nas suas actividades através de uma espécie de “dress code” supostamente de resistência em que prefere o uso de indumentária típica de países do continente africano ou então a que distinguia os dirigentes do regime anterior.
Daí não viria nenhum mal ao mundo se fosse somente mais uma corrente de pensamento numa sociedade democrática e plural. O problema é que tem o patrocínio claro das instituições do Estado incluindo o suporte de órgãos de soberania, do sistema educativo do país, da universidade pública e da comunicação social do Estado. Com a percepção desse apoio institucional não estranha que ambicione e procure a ser único e que demonstre ostensivamente a sua intolerância em relação a ideias, narrativas ou factos que contrariam os fundamentos da sua ideologia. No caso da oficialização do crioulo a ajuda estatal tem outras utilidades, como bem comentou um dos mentores da sua promoção: “Ten ê ke ser ufisializóde já pa pô dnher pa fazê tude u ke mestê fazê” (tem que se oficializar já para pôr dinheiro para fazer tudo o que é preciso fazer).
A citada expressão em crioulo recorre ao alfabeto fonológico ALUPEC como, aliás, toda a comunicação do Fórum da Língua Materna. Isso acontece porque com o apoio do Estado foi o alfabeto que se impôs em detrimento do alfabeto etimológico que escritores, poetas, compositores e outros cabo-verdianos usaram por mais de um século. Pondo de lado obra consolidada e intimamente ligada às bases fundantes da cabo-verdianidade na música e na literatura e o facto do crioulo ter base lexical portuguesa em mais de 90% adoptou-se um alfabeto fonológico não por razões práticas ou culturais, mas sim por razões fundamentalmente ideológicas. Na linha do pensamento único tinha-se que impor a realidade alternativa conjecturada em tempos revolucionários da origem africana dos cabo-verdianos. A escrita na base do alfabeto etimológico revelando as origens da sua língua materna não podia denunciar o contrário.
Curiosamente nas ilhas chamadas ABC, nas Caraíbas, onde também se fala um crioulo de base lexical em boa parte de origem portuguesa uma delas, Aruba, adoptou o alfabeto etimológico para o papiamento e a outra, Curação seguiu o alfabeto fonológico no seu papiamentu. Seria interessante estudar o impacto prático da adopção dos dois alfabetos com as suas vantagens e desvantagens tendo, porém, em conta que, diferentemente de Cabo Verde com língua oficial portuguesa, o papiamento tem muito pouco do holandês, que é a língua oficial nas duas ilhas. Sem falar que não há programas de reafricanização dos espíritos do tipo existente em Cabo Verde que enviesam qualquer abordagem da realidade cabo-verdiana suportada no facto de que a consciência nacional emergiu em Cabo Verde muito antes da independência e não como resultado de lutas anticoloniais.
Talvez por causa disso não se nota nessas duas ilhas o tipo de activismo frenético que se vê em Cabo Verde. O papiamento é uma das línguas oficiais nas duas ilhas desde há mais de dez anos, mas não é língua da administração pública e apesar de ser ensinada nas escolas não é a língua de ensino. Ao holandês é reservado esse papel. Não é uma situação muito diferente do que se passa em Cabo Verde. Aqui as normas constitucionais pertinentes estão na constituição no artigo 9º sob epígrafe línguas oficiais, mas ainda não há paridade com o português. O presidente da república exprime-se oficialmente também em crioulo, o debate parlamentar muitas vezes acontece em crioulo e nos tribunais pode-se depor também em crioulo. Com esse nível de assunção pela sociedade e pelo Estado não se pode dizer com seriedade que a língua cabo-verdiana é discriminada ou secundarizada.
Por razões práticas que têm a ver designadamente com o facto de não se ter uma escrita estandardizada, suporte documental e outros recursos disponíveis em crioulo é que ainda não foi adoptado pela administração pública e pelo sistema de ensino. Precipitar o processo com voluntarismos do tipo “oficialização Já” que só servem de alimento para guerras culturais não terá qualquer efeito positivo por falta de meios de suporte para a sua materialização efectiva. Não deixará, porém, de ser disruptivo, com consequências potencialmente graves. Saber isso e insistir na mesma linha só se compreende se o objectivo é alimentar a polarização social e política mesmo quando o discurso vai no sentido contrário.
Cabo Verde chegou à independência com todos os cabo-verdianos a falar crioulo sem distinção com base no estrato social, no nível de educação ou na ilha de origem. Aparentemente dentro do império português o crioulo era consensual como língua de comunicação de todos os cabo-verdianos enquanto o português era a língua da administração do estado e a língua de ensino. Também parece que não havia conflito significativo no uso das duas línguas. A literatura fundante da cabo-verdianidade era expressa quase toda ela na língua portuguesa. O crioulo, por seu lado, desenvolvia-se na sua expressividade e plasticidade como nova língua na concepção de John McWorther, linguista da Universidade de Columbia e autor de vários livros sobre os crioulos, servindo-se do português mas sem perder a sua identidade. O Dr. Baltasar Lopes notou o facto no seu livro O Dialecto Crioulo de Cabo Verde ao escutar estudantes do liceu a discutir filosofia, física e matemática em criolo nos intervalos das aulas.
A forma como o consenso foi rompido e em consequência fracturas tão grandes foram abertas na sociedade cabo-verdiana é algo que devia merecer a reflexão de todos. Hoje é evidente que Cabo Verde, não obstante os enormes investimentos no sistema educativo do país ao longo de décadas, está longe de ter os níveis de competência linguística que o desenvolvimento no mundo globalizado exige e que podiam constituir vantagem na realização da vocação do país como prestador de serviços. Para isso terá contribuído certamente o desperdício de energia em guerras culturais quando o foco deveria ser outro: educar toda a criança e todo o jovem para ser mais proficiente no uso das línguas que permitem o acesso ao conhecimento, à tecnologia e ao estreitar das relações com outros povos, dando conteúdo à ideia de Cabo Verde como Terra da Morabeza.
Infelizmente os tempos não se mostram mais favoráveis para se arrepiar caminho. Agendas politicas ideológicas potenciadas por comemorações de datas de referência vão exacerbar os conflitos e as fracturas sociais e políticas. A sobreposição com o ciclo eleitoral poderá levar a intolerância ainda mais longe. O envolvimento ambíguo do Estado e dos seus titulares já está a criar tensões institucionais e os sinais apontam para dificuldades acrescidas à frente. O que se observa noutras democracias de deterioração da vida pública e de perda do sentido de Estado parece estar a ganhar terreno no país. Cabo Verde não se pode dar-se a esse “luxo”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1161 de 28 de Fevereiro de 2024.