Março, Mês da Mulher, é sempre o tempo ideal para um olhar sobre a grande caminhada para garantir direitos e oportunidades em pé de igualdade com os homens. Extraordinários avanços já foram feitos, em particular nas democracias, enquanto atrasos se mantêm em muitos países e autênticas regressões se verificam noutros. O acesso generalizado à educação nos diferentes níveis e a empregos em todos os domínios tem traduzido muito desse progresso.
É evidente a contribuição dada para a produção de riqueza global, para a diminuição extraordinária da pobreza e para um sentimento de realização contagiante que acabou por elevar para um outro patamar a vida de milhões de meninas e mulheres em todo o mundo. Afinal, trata-se da metade da humanidade e o seu bem-estar e felicidade significa ganho para todos.
Infelizmente, toda essa caminhada ainda não é feita sem que seja pontuada por muito sofrimento, violência, discriminação activa e tentativas de exclusão. Mesmo nas sociedades mais democráticas nota-se uma reacção agressiva de certos sectores da sociedade face aos grandes avanços conseguidos pelas mulheres. Em alguns países como o Irão e o Afeganistão essa reacção aos ganhos da modernidade toma formas extremas e é uma das fontes de alimentação da revolução que inequivocamente tem como uma das suas finalidades a subjugação da mulher. Em todo o mundo verifica-se o recrudescer da tensão entre homem e mulher, um fenómeno que provavelmente não está alheio a reconfiguração das lutas emancipatórias das minorias em lutas identitárias, pondo em confronto opressor e oprimido, e também o extremar de posições devido ao efeito polarizante das redes sociais.
As guerras culturais que hoje marcam uma boa parte da agenda política são marcadas pelo que são as expectativas dos diferentes grupos sociais quanto ao papel do homem e da mulher na sociedade. Não é à toa que já se nota um posicionamento diferenciado dos dois sexos na tradicional divisão de política nas democracias entre a esquerda e a direita com as mulheres a pender para esquerda e o homem a situar-se à direita. Numa matéria particularmente divisiva como o chamado direito ao aborto, em que estão em causa os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo e de ter ou não filhos, os tribalismos de esquerda e de direita funcionam plenamente.
Há dois anos atrás a maioria conservadora dos juízes no supremo tribunal dos Estados Unidos conseguiu revogá-lo causando grandes perturbações sociais e políticas com impacto nas eleições estaduais e federais. Na segunda-feira, dia 4 de Março, esse direito foi introduzido na Constituição na França através de uma emenda constitucional aprovado pelo parlamento. É a primeira vez que isso acontece na história das constituições democráticas.
Em várias situações de conflito aberto ou mesmo de guerra é visível a centralidade da questão do papel da mulher na sociedade e da sua dominação pelo homem. Muitas das paixões, da crueldade e do ressentimento que alimentam esses processos hoje a acontecer em vários pontos da África, do Médio Oriente e de outros continentes justificam-se pelo desejo de subjugação das mulheres. Em resultado, são votadas à exclusão e impedidas de conseguirem uma educação, são violadas e mortas para desmoralizar as hostes inimigas e até usadas como escudos humanos para conduzir furtivamente operações militares. No ataque a Israel a 7 de Outubro e na invasão de Gaza e ainda nos relatos de atrocidades verificadas em teatros de guerra como Etiópia, Ucrânia e no Congo tem-se uma ideia do pesado fardo de dor e sofrimento que recai sobre as mulheres nos conflitos armados em particular quanto se assumem como existenciais.
Também ao nível micro de pequenas cidades, das vilas e das famílias as notícias demasiados frequentes de violência doméstica que acaba por desembocar no assassinato da mulher e algumas vezes acompanhado do suicídio do homem deixam entrever que há questões complexas no processo emancipatório e que precisam ser enfrentadas para se poder chegar à almejada igualdade de direitos e oportunidades. Em Cabo Verde, nos últimos dias, o homicídio da passada segunda feira, em Porto Novo, a tentativa de assassinato e suicídio no Fogo são os mais recentes casos de acontecimentos similares que vêm se repetindo no país e têm lançado os números de homicídios e de suicídios para níveis preocupantes.
Há que compreender que se está a viver um período particularmente difícil no mundo inteiro com crises de vária natureza, designadamente climática e migratória, com novas tensões geopolíticas e com a possibilidade de reconfiguração de espaços e relações económicos. Em simultâneo, está-se perante um momento único na história da humanidade em termos de participação das mulheres na vida política, económica e social e cultural que, ao dar suporte à autonomia pessoal e estimular a competição em todos os domínios, abre a possibilidade da criação de tensões com relações e papéis sociais anteriormente existentes para o homem e para a mulher no espaço familiar, na empresa, na política, etc. Tudo isso concorre para criar alguma ansiedade em relação ao futuro e mesmo insegurança quando as pessoas, principalmente os homens, veem os seus empregos tradicionais destruídos, sentem-se impreparados para os novos empregos e ressentem a perda do estatuto social.
Mas, porque avançar é preciso e sem deixar ninguém para trás, o grande desafio que se impõe a todos é como fazê-lo sem cair em tensões paralisantes, na violência do género e em tentações de fazer recuar a história como prometem os diferentes fundamentalismos religiosos e alguns líderes de clara inclinação autocrática. Para isso é fundamental que a atenção não fique só por continuar a incentivar o avanço extraordinário que as mulheres têm feito. É preciso que incida sobre a necessidade de preparar os homens e especialmente os jovens rapazes para o mundo de competição de hoje, mas também de colaboração e solidariedade com as meninas num quadro de igualdade de direitos e de oportunidades.
A humanidade não pode sobreviver e muito menos prosperar com as suas duas metades de costas viradas. O 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, é também o dia para se lembrar que a caminhada deve ser feita de mãos dadas, não obstante todos os percalços que inevitavelmente acabam por aparecer.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1162 de 6 de Março de 2024.