Todos queixam-se que em Cabo Verde não se debate o suficiente, que o debate quando acontece é repetitivo ou de fraca qualidade e que não poucas vezes é pontuado por acusações mútuas e tacticismos que acabam por o inviabilizar. Curioso é que neste ambiente de debates difíceis ou inefectivos, decisões cruciais para o futuro são tomadas, investimentos custosos são realizados e riscos são assumidos, sem que se tenha clara consciência do que se passa, para além do espectáculo mediático-político criado para os apresentar. É como se o país estivesse mergulhado permanentemente em bagatelas políticas e questiúnculas com implicações eleitorais de curto prazo, enquanto, por outras vias nem sempre devidamente escrutinadas, se vão implantando determinantes do que eventualmente no futuro poderá ser expectável, seja em termos de oportunidade como de rendimentos.
Na última semana, o governo lançou iniciativas de peso no domínio do turismo com a “Marca Cabo Verde” e no domínio da energia com a “Central de Armazenamento de Energias Renováveis” na ilha de Santiago. O Governo anunciou também a continuação das privatizações com a selecção de parceiro estratégico para a CV Handling e a venda de 10% das acções a emigrantes e a trabalhadores da empresa. Até o fim desta semana estará em conversações com a Millennium Challenge Corporation (MCC) com vista ao financiamento de projectos para a integração de Cabo Verde na região da África Ocidental. Não há, porém, notícia que houve preocupação em debater os desafios nestes sectores-chave para o futuro que, com os desenvolvimentos mundiais recentes (pandemia, guerras e inflação), tornaram-se ainda mais imprevisíveis convidando a uma reavaliação das abordagens, à possível alteração de objectivos e a novas alianças.
De facto, assim como não se tem apercebido de que houve qualquer esforço especial para se debater e avaliar a relação do país com a CEDEAO, face à clara degradação das relações entre os países da comunidade nos últimos tempos, também em relação a outros domínios-chave para o país não se tem sentido essa urgência. Mesmo quando as falhas são notórias, como no domínio dos transportes aéreos, em que não se tem tido o sucesso previsto com parceiros estratégicos escolhidos e se acumulam dívidas, ou fica-se com serviço mais precário e muito aquém das expectativas criadas, não há realmente um debate das razões de fundo. Todos acabam por se limitar às denúncias e acusações mútuas e, quando propostas são apresentadas para se ultrapassar a situação, de quase todos os quadrantes vem o “mais do mesmo”.
Vê-se, por exemplo, que há convergência quase total para se usar a TACV para ligar o país à diáspora e também para se ter serviço público de transporte marítimo entre as ilhas, mas não há assunção dos custos envolvidos nem do facto que dificilmente se vai conseguir satisfação geral com o nível do serviço prestado. Ou seja, a questão vai continuar a ser matéria de arremesso político ao mesmo tempo que o problema dos transportes é sempre adiado e com o acumular dos custos torna-se progressivamente intratável. A impressão é que os reais constrangimentos do país (problema de escala, fraca conectividade, estrutura produtiva limitada e insuficiências do capital humano) não são reconhecidos. Aparentemente prefere-se lidar com o irreal traduzido na proclamação que Cabo Verde é uma Nação Global.
A mesma atitude nota-se na forma como são apresentadas as novas iniciativas. Com a nova “Marca Cabo Verde” quer-se “transformar cada ilha num destino turístico que seja autêntico, genuíno e diferenciador”, como disse o Primeiro-ministro. Isso seria o ideal, mas o facto é que a grande procura turística que já tem o impacto directo de 25% no PIB é fundamentalmente de sol e praia. Uma procura que ainda não chegou a um milhão de turistas, como desde de há mais de dez anos se vem apontando como meta a atingir, por razões que em boa medida têm a ver a com falta de foco e engajamento das autoridades e de uma estratégia acompanhada de investimentos tempestivos para potenciar a atractividade das ilhas turísticas. Os recursos públicos são finitos e devem ser dirigidos para atrair essa procura externa e criar a possibilidade das outras ilhas beneficiarem da exportação “cá dentro” de bens e serviços para além do potencial turístico específico que poderão desenvolver. De facto, é de se ponderar se o que mais serve o país é a dispersão de recursos à procura desse ideal, ou se é ganhando escala num sector capaz de grande efeito de arrastamento na economia, que já é de 40%, como assinala o Banco Mundial, mas que pode ser muito maior.
No sector energético o governo optou por uma “Central de Armazenamento de Energias Renováveis” na ilha de Santiago com base num sistema de bombagem para elevação de água e posterior reconversão em energia eléctrica através de turbinas após descarga. Os estudos vêm de 2011, 2014 e 2017 e focam-se numa solução hídrica num país de baixa pluviometria e praticamente árido. A questão que se coloca é se com o grande investimento de 66 milhões de euros para uma potência de 20 megawatts não haveria outras opções menos complexas, com menos riscos e mais flexível e adequada para a produção desconcentrada de electricidade. Do início dos estudos em 2011 para cá houve inovações tecnológicas importantes na produção de baterias e tudo leva a crer que, além de que com o tempo vão ficando mais baratas, são ideais para equilibrar as redes eléctricas públicas quando injectadas com a electricidade intermitente de parques solares e eólicos.
Quanto à privatização da CV Handling, sem ainda se materializar os sinais claros de aumento substancial e sustentado do tráfego aéreo para o arquipélago, na sequência da concessão dos aeroportos à Vinci, o seu anúncio pode sugerir que se está simplesmente a seguir uma agenda de privatizações mais ligada a compromissos com o Banco Mundial do que às necessidades da economia ou oportunidades reais do país. O problema é que da última vez que se deu a entender que se estava a cumprir agendas foi em fins de Fevereiro de 2019 com assinatura da venda de 51% da TACV à Loftleidir da Icelandair. Em Junho do mesmo ano o Banco Mundial premiou o país com 40 milhões de dólares de ajuda orçamental que tinha retido durante anos até à privatização da TACV. Depois viu-se o que aconteceu e a culpa não é só da pandemia.
É verdade que o país tem que ser ousado, imaginativo e correr algum risco para ultrapassar os enormes constrangimentos ao seu desenvolvimento. Tem também que mostrar que aprende com os seus erros e ser capaz de demonstrar que dentro do possível segue a sua própria agenda e não a dos outros. No processo é sempre responsabilidade maior do governo confrontar o país com as opções possíveis e elucidá-lo quanto aos constrangimentos. Se o país tem um “Business Plan” certamente não passa por pretender ser bom aluno, mas, sim, por o colocar no caminho para o desenvolvimento sustentável com boas práticas, transparência, visão e sentido estratégico.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1160 de 21 de Fevereiro de 2024.