sábado, julho 19, 2025

Democracia e a não promoção da verdade

 Segundo a autora do livro “Democracia e Verdade: Uma Breve História”, Sophia Rosenfeld, a democracia insiste na ideia de que a verdade é simultaneamente importante e ninguém pode dizer definitivamente o que ela é”. Para a historiadora isso significa que há uma tensão intrínseca à democracia que não é passível de solução porque ninguém detém a verdade e é sempre possível debater na busca por uma representação mais próxima da realidade.

Da dinâmica gerada vem tudo o que permite a evolução de ideias e mudanças culturais, garantindo estabilidade e capacidade de adaptação aos novos tempos.

Complica-se tudo quando surgem forças que procuram resolver a tensão própria das democracias impondo a sua verdade, criando instabilidade e incapacidade de resposta adequada da sociedade no seu todo aos desafios circundantes por falta de espírito crítico e de cultura de debate. Assistiu-se a esse tipo de complicação nas celebrações do 50º aniversário da independência de Cabo Verde. Viu-se o presidente da república, conjuntamente com várias outras instituições do Estado, a homenagear os protagonistas e as suas opções no momento da independência, há 50 anos atrás. Ora, nos feriados nacionais celebram-se os interesses e valores partilhados da comunidade política que neste ano de 2025, como nos 35 anos anteriores, são completamente opostos aos dos primórdios da independência.

A França, por exemplo, celebra o seu dia nacional no dia da Tomada de Bastilha que foi a 14 de Julho de 1789. Ninguém espera que se celebre o regicídio, o período de terror ou o bonapartismo que se seguiram à movimentação popular. Da revolução francesa celebram-se hoje, nos 67 anos da V República, os princípios e valores da liberté, egalité, fraternité e da Declaração Universal do Homem e do Cidadão que são perenes e em que toda a república neles se revê. Nos Estados Unidos são homenageados os pais fundadores, hoje quase 250 anos depois da independência, porque foram eles que dotaram o país de uma Constituição democrática e liberal que fez do país uma superpotência e uma fonte de inspiração global para os povos desejosos de liberdade e democracia.

Nesse sentido, é um contra-senso, hoje na II República, homenagear como fundadores da república quem impôs ao país uma ditadura do partido único de tempo ilimitado que só soçobrou com a queda dos regimes de similar inspiração leninista no Leste da Europa e na União Soviética. Vai-se à frente com isso porque tem à sua disposição os recursos, os meios e as competências legais para agir, mas à custa de maior conflitualidade na sociedade, de maior pressão no sentido do conformismo e de menos espírito crítico. Não se pode é pretender que se esteja a promover a unidade nacional, a criar ambiente para consensos em relação ao futuro e a cimentar a confiança que permite reformas de fundo, essenciais para realmente se dar o salto em frente no país.

Parece que para certos sectores da sociedade os ganhos de curto prazo sobrepoem-se a tudo o resto. E neste momento a tendência é procurar ganhar com o tipo de polarização exacerbada da sociedade em que uma parte não ouve a outra e num jogo de soma zero só se ganha com a perda do outro. É a linha dos populistas modernos que se posicionam contra as elites, lançam a desconfiança contra o crescimento económico e refugiam-se em posicionamentos identitários para criar fracturas graves na sociedade, eliminando efectivamente o diálogo e a possibilidade de qualquer negociação ou compromisso.

Aqui em Cabo Verde percebe-se que a via encontrada para alargar as clivagens sociais e políticas foi de reviver a luta que nunca deixou de existir no país desde que às ilhas chegou o PAIGC, vindo da Guiné com o projecto de apoderar-se do poder em Cabo Verde. Conseguiu-se isso eliminando todos os adversários. Acabou por se instalar até ser desalojado do poder quinze anos mais tarde. Como sempre fazem os partidos com essa cultura política de quem se vê como instrumento da história, soube, de seguida, adaptar-se ao ambiente democrático, adoptar a linguagem adequada e a postura certa. Mesmo de regresso ao poder anos depois, por vias democráticas, não abandonou o essencial do legado dos tempos do partido único. Continua a defendê-lo cada vez mais explicitamente.

Ainda se vê no papel de demiurgo que tudo trouxe para o povo destas ilhas e reclama que o país lhe deve a libertação, o fim das fomes, a abertura política, a democracia e o progresso. Reivindicando a condição de partido africano da independência, continua a rever-se no papel de quem procura reafricanizar os espíritos. O instrumento mais recentemente criado tem sido o crioulo que se tornou o foco de uma luta de libertação tardia contra a língua portuguesa, não obstante os custos enormes dessa hostilidade para as novas gerações em termos de competência linguística, de sucesso escolar e da própria qualidade do sistema de ensino.

A isso deve-se acrescentar o sucesso conseguido em trazer a problemática da escravatura e a condição de escravo para o quotidiano do cabo-verdiano em que os modismos nos meios académicos das teorias crítica de raça ou do chamado wokismo ajudaram bastante. Também aqui não parece importar os custos dessas incursões no sentimento do cabo-verdiano que deixa de sentir uno na diversidade da sua vivência nas ilhas. Os custos acarretados são potencialmente de quebra na autoestima do cabo-verdiano e na relutância em se associar com outros e em, cada vez mais, se vitimizar.

E como o sucesso alimenta o sucesso, os ganhos recentes na guerra ideológica acelerada pelas questões de identidade confirmam a importância de se dominar na comunicação social, na cultura e fazer ressonância com modos de pensar e forma de estar em sectores-chave de influência académica e cultural. Daí que as comemorações, que juntavam o centenário de Cabral e os cinquenta da independência fossem demasiado apetitosas para serem passadas ao lado e demasiado difíceis de negar, para sectores ideologicamente hegemónicos na sociedade. O excesso do culto de personalidade, que já não se cinge unicamente pela idolatria de Cabral, mas que se espalha para quem se vê como a geração mais moral, não fica sem custos.

Entretanto, a sociedade entra por uma divisão e uma crispação reproduzindo fracturas antigas num tempo de conflito cultural e identitário que as favorecem em detrimento da unidade de propósito e de compromisso que precisa para enfrentar ameaças e aproveitar oportunidades. A satisfação pessoal que uns têm da visibilidade e aparente reconhecimento social, resultante do peso institucional e meios de quem os patrocina e oferece homenagens, tem contrapartida no descrédito dos mesmos e da função que exercem e no aumento do cinismo face a tanta hipocrisia.

E no finalmente esse reconhecimento não vai deixar de ser efémero porque suportado em alicerces frágeis e falaciosos que não resistem um debate aberto numa sociedade com espírito crítico e aderência aos factos. Também há que reconhecer que há certas ideias e práticas que há muito pertencem ao caixote de lixo da história. Sabem disso e por isso que se esforçam tanto por se camuflar com roupagem democrática para travar essa sua inexorável caminhada. Até lá os custos amontoam e são pagos por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1232 de 9 de Julho de 2025.

sexta-feira, julho 11, 2025

Celebrar o 5 de Julho com um olhar de esperança no futuro

 

Nas vésperas do feriado nacional de 5 de Julho que no corrente ano corresponde ao 50º aniversário da Independência percebe-se que as celebrações continuam subordinadas a uma narrativa única da história de Cabo Verde. É essencialmente a mesma narrativa que o PAIGC usou para exigir que só podia haver independência sob a sua direcção e que no pós 5 de Julho serviu para legitimar a instauração da ditadura do partido único que iria manter-se nos quinze seguintes. A repeti-la, como mais ou menos nuances, e, na generalidade dos casos, a validá-la, tem sido o resultado do desfilar de memórias ao longo das últimas semanas em eventos, reportagens e entrevistas, com particular destaque para as recordações “heróicas” dos antigos dirigentes do regime.

Em qualquer outro sítio seria algo bizarro encontrar, em plena democracia, antigos dirigentes de regimes autocráticos a dominar o discurso político nas celebrações dos dias nacionais. O choque de valores seria gritante. Em Cabo Verde, porém, não é assim e, como que imposta por uma vontade férrea, a narrativa do regime de partido único sobreviveu as cinco décadas e continua a permear as instituições do Estado, o sistema de ensino e a comunicação social. É algo que até parece a realização do sonho de Gramsci da hegemonia ideológica que permite “liderar antes de conquistar o poder, de liderar a exercer o poder e de continuar a liderar depois de perder o poder". E quando perde, é só uma questão de tempo para regressar ao poder.

Nestes dias de comemorações do 50º aniversário, exemplos de bizarria abundam. Nesta segunda/feira, dia 30 de Junho, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) organizou uma “singela homenagem aos protagonistas do processo eleitoral de 1975 que culminou na eleição dos deputados da Assembleia Nacional Constituinte”. Não é de fácil compreensão quais as razões por que uma CNE com funções de administração do processo eleitoral numa democracia e competência para assegurar eleições livres, plurais e justas se disponibiliza para homenagear um processo eleitoral organizado seis meses depois dos acontecimentos de Dezembro de 1974: a tomada das rádios privadas, a proibição de outros partidos políticos e a prisão de setenta cabo-verdianos, considerados inimigos do PAIGC. Umas eleições acordadas depois desses acontecimentos no chamado Acordo de Lisboa de 19 de Dezembro de1974 que, segundo o então ministro português Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público, seriam umas consultas populares em que “você, ( o PAIGC) ganham por 90 por cento e nós salvamos a face".

Ou seja, não se vê por que vir referenciar umas eleições com resultados previamente conhecidos – na realidade o PAIGC teve 92% - porque não havia adversários e a população estava a ser intimidada, Segundo a investigadora portuguesa Sandra Pires, uma nova missão que foi dada às forças armadas portuguesas (MFA) nesse período era ajudar o PAIGC a “bater definitivamente as forças conservadoras que ainda influenciam bastante certas camadas da população”. Também como homenagear uma Assembleia Nacional Constituinte eleita nesses termos que falhou até em cumprir com as funções que a lei eleitoral de Abril de 1975, artigo 2º, lhe estabeleceu de, em noventa dias, dotar Cabo Verde de uma Constituição. Depois de proclamar a independência, transformou-se numa outra entidade, uma Assembleia Nacional Popular que, através de uma Lei de Organização Política do Estado (LOPE), imediatamente transferiu todo o poder ao PAIGC que foi consagrado força dirigente da sociedade e do Estado.

Aliás, mesmo a plenitude das prerrogativas de soberania e independência ficou posta em causa com a transferência de poder para o PAIGC que era um partido supranacional que já governava um outro país, a Guiné-Bissau, em relação à qual ficou na LOPE  estabelecido que deveria elaborar um projecto de associação dos dois Estados. O simbolismo da entrega de soberania ao PAIGC ficou claro quando a nova bandeira foi entregue para ser içada no momento da independência pelas mãos do secretário-geral do PAIGC e quando se proclamou que as forças armadas eram o braço armado do partido. Não há, pois, qualquer razão para homenagens a um processo e os seus principais protagonistas que serviram para instaurar um regime de ditadura depois dos quarenta de Salazar/ Caetano.

O 5 de Julho é o dia da independência, mas é também o dia da implantação da ditadura do partido único. A promessa de liberdade não foi cumprida, nem tão-pouco a promessa da soberania. Não é por acaso que muita gente em Cabo Verde agradece ao Nino Vieira pelo golpe de Estado de 14 de Novembro na Guiné-Bissau. Permitiu que a soberania voltasse completamente para Cabo Verde, ainda para que fosse só para o PAICV. Para o povo só voltaria, de facto, com o 13 de Janeiro de 1991 e a Constituição de 1992.

Na narrativa da ditadura do partido único, o povo deve ser eternamente grato ao PAIGC/CV. Fala-se da fome, da educação e da saúde para a sua auto gratificação. Esquecem da extraordinária ajuda internacional recebida e do uso questionável que lhe foi dado por falta de visão, por opções ideológicas que fizeram o país perder oportunidades e também porque, entre manter o poder ou desenvolver o país, invariavelmente optou pelo controlo das populações. Não é á toa que Cabo Verde chega ao fim dos quinze anos de partido único com a economia estagnada e um rendimento per capita de 900 dólares.

A desesperança das pessoas no fim desses anos contrastava com a euforia e a generosidade que se sentia nos primeiros anos, mesmo com as restrições de liberdade do regime. Tais sentimentos acabaram por se esfumar perante o cinismo prevalecente. Passou a ser corriqueiro as pessoas se negarem a participar justificando que “acabou a militância” e a se desresponsabilizarem em relação à comunidade, dizendo que “não são os culpados pela morte de Cabral". O crescimento só viria depois, a partir dos anos noventa, com a liberdade, a democracia e a abertura para o mundo. Actualmente,  o rendimento per capita ultrapassa os 5 mil dólares e poderia ter sido mais se falta de visão estratégica e de mais competência não tivesse toldado o caminho nos primeiros quinze anos. Cabo Verde não estaria hoje à frente apenas de São Tomé e Príncipe, entre os países insulares (SIDS).

Neste 5 Julho que se pode celebrar todas as promessas da independência, como sejam a autodeterminação para escolher livremente os governantes e fazer as leis do país, o exercício pleno dos direitos, a começar pela liberdade de expressão, e a busca da felicidade, é tempo de se libertar da narrativa que tem tolhido o passo dos cabo-verdianos. Não é, porém, tarefa fácil no mundo de hoje em que questões identitárias estão a ser exacerbadas. A narrativa ganha mais oxigénio porque os princípios e valores que ainda promove entre os quais culto de personalidade e vanguardismo fomentam sentimentos anti-sistema nos países democráticos que facilmente podem ser aproveitados pelo populismo moderno.

Cabo Verde não está livre dessa tentação e não deve correr esse risco. Celebrar o 5 de Julho todos os anos deve, sim, significar continuar a libertar o país das amarras e mitos do passado que comprovadamente ameaçaram deixar o país para trás. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1231 de 2 de Julho de 2025.

segunda-feira, julho 07, 2025

O Partido Único em Cabo Verde - Um Assalto à Esperança

         O Partido Único em Cabo Verde            

                                Um Assalto à Esperança         

                                                                                                                             

A memória do passado é fundamental para se compreender o presente e visionar o futuro. O livro O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança procura contribuir para a preservação dessa memória. O livro foi escrito em 1992 e publicado na sua primeira edição, edição do autor, em Março 1993. 

 

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Penso que o meu livro ainda continua actual apesar de todos estes anos por duas razões principais: a primeira por que através de documentos designadamente livros, jornais, revistas, BOs e outras publicações devidamente datadas e contextualizadas procurou reproduzir o que então partido-estado e os seus dirigentes queriam fazer de Cabo Verde, as dificuldades que encontraram e as consequências da sua visão. Só foram citados documentos que podem ser acessíveis a qualquer pessoa para verificação.

 

A narrativa dos quinze anos procura ser o mais compreensivo e abrangente na sua abordagem revelando o impacto das políticas e medidas do regime em todos os aspectos da vida do cabo-verdiano seja político, económico, social e cultural. É a minha convicção que o essencial do está aí foi posteriormente validado. 

 

Notam-se ainda as marcas do regime nas instituições, na cultura política prevalecente, no baixo nível de capital social e de civismo. Justificam a crispação política existente, as dificuldades em adoptar a atitude certa para enfrentar e desenvolver no mundo de hoje, a crise de identidade e o conformismo do qual só se liberta pontualmente com chamamentos demagógicos e populistas para logo de seguida cair-se na frustração. 

 

Explicam por que foram efectivos as operações de resgate do passado, o branqueamento dos dirigentes do regime e o divisionismo no país criado por políticas identitárias comandadas pelo estado a partir do seu aparelho ideológico em todo o sistema de ensino, na comunicação social e na propaganda que através dos seus agentes produz e distribui. 


Uma segunda razão por que penso que o livro tem utilidade é que apesar dos vinte e cinco anos passados após a queda do regime do PAIGC/PAICV não se vêem muitos estudos sobre o que foram os anos de partido único. Os que existem preferem centrar-se sobre o momento da independência e a aura heróica que normalmente a acompanha e também o momento da abertura política de 1990 e a suposta generosidade e/ou sabedoria que os dirigentes repentinamente demonstraram. 

 

Para além disso tendem a suportar-se em boa parte nas interpretações que hoje os antigos dirigentes fazem dos seus actos passados e não o que disseram e fizeram quando exerciam o poder. Omisso fica realmente tudo o que se passou entre estes dois momentos e as reais motivações por detrás das políticas do regime. É essa omissão que também é um mutismo e uma amnésia cultivada que o meu livro procura suprir.

 

A questão da memória colectiva e memória história é de suma importância para qualquer sociedade. Como já celebremente tinha dito George SANTYANA quem não conhece a s sua história fica condenado a cometer os mesmos erros. São sempre graves as consequências de manipulação da memória colectiva de um povo mas é o que se faz em cabo verde desde que uma força política, o PAIGC,  surgiu nestas ilhas a reivindicar que nações são forjadas na luta pela independência e que o seu dirigente máximo é fundador da nacionalidade. 

 

Para se impor tinha que fazer esquecer que a experiência humana nestas ilhas de Cabo Verde tem mais cinco séculos de existência e que a a identidade cabo-verdiano que emergiu ao longo dos séculos dentro do império português já era conhecida muito antes da independência nacional. Em substituição dessas memórias outras, por exemplo de luta libertação, que as pessoas não têm experiência directa deviam ser implantadas e outras identidades impostas. Desestruturar a memória torna-se num objectivo claro de política. 

 

Forçam-se as pessoas a acreditar que verdade ou facto é o que é conveniente dizer ou aceitar. Na luta interminável que assim começa não há naturalmente liberdade intelectual que permita preencher os vazios, incoerências e fantasias na memória colectiva. Compreende-se assim o deserto da literatura sobre o regime de partido único. Contribuir para restauração completa e total da memória do povo caboverdiano é que me motivou a escrever este livro.

 

Uma 2ª edição foi publicada pela Editora Pedro Cardoso em Fevereiro de 2017.                                               

sexta-feira, julho 04, 2025

Com outra atitude os 50 anos podiam ter sido outros

 

O Banco Mundial no seu último relatório de actualização económica de Cabo Verde datado de 23 de Junho voltou a chamar a atenção para os riscos para o crescimento do país nos próximos anos. Referiu conflitos globais e regionais, possibilidade de alguma travagem na dinâmica da economia mundial, aumento de preços dos combustíveis e também mudanças climáticas que, além de secas, ainda incluem a elevação do nível médio do mar e prejuízos nas regiões costeiras, afectando directamente o turismo.

Esta edição da Actualização Económica de Cabo Verde 2025 inclui entre os riscos internos as pressões políticas em antecipação das próximas eleições em 2026 que podem o reduzir o ritmo das principais reformas no país. Para o BM, falha em avançar com reformas no Sistema Empresarial do Estado constitui um risco orçamental significativo.

De facto, já é perceptível o ambiente político que já se está a instalar no país a menos de um ano das eleições legislativas. E claramente que não será propício à manutenção da boa vontade e da disponibilidade para se avançar com reformas em nome do crescimento económico. Pelo contrário, na actual conjuntura a polarização de posições, que normalmente antecede períodos eleitorais, na ânsia de cada um dos partidos se esforçarem para apresentar as suas propostas alternativas, tende a extremar-se. Da parte da situação entra-se por uma via em que o marketing político parece sobrepor-se ao que devia ser uma atitude mais ponderada nos actos de governação. Da oposição fica-se com a forte impressão de que também não há ponderação nas críticas dirigidos até ao ponto de desejar que tudo corra mal.

Se nos ciclos eleitorais anteriores fenómenos similares aconteciam, actualmente, com o uso quase compulsivo das redes socias pela generalidade da população e a exploração das mesmas com conteúdos especialmente dirigidos pelas forças políticas, ganham uma dimensão nunca vista. Nesse sentido vê-se o marketing político caminhar para bem perto dos limites da decência e as críticas a raiar a maledicência. O narcisismo de uns provoca manifestações virais de cega aceitação ou indignação de seguidores numa dinâmica em que as pessoas vão se confinando em bolhas entre as quais o diálogo é impossível. Num ambiente desses não há preocupação com a verdade, opiniões sobrepõem-se aos factos e às supostas amnésias de uns procura-se compensar com paramnésia, ou seja, com memórias distorcidas ou falsas.

A controvérsia que se gerou à volta da inauguração do terminal de cruzeiros em S. Vicente é típica do que vem acontecendo no actual ambiente pré-eleitoral. Em contraposição à pompa do actos oficiais, fica-se à espreita de “incidentes” que os desqualificam. Não se cuida de fazer um real e crítico pronunciamento sobre a importância e o impacto futuro do investimento ou da obra feita. Em S. Vicente o “incidente” foi o facto do barco de cruzeiro já no porto não ter avançado para atracagem por decisão do comandante do navio, alegando condições climatéricas. Em outras circunstâncias são às vezes acontecimentos fortuitos, mas que no ambiente de conspiração que as redes sociais vêm alimentando tornam-se em indícios de corrupção ou de incompetência. Passam de indício para “facto”, ou “quase”, quando possibilitem especulação nos jornais, quando transformados em arma de arremesso político no parlamento ou sugeridos como matéria para inquérito parlamentar.

A pressão política, que o Banco Mundial identifica como um dos factores de risco, por afectar negativamente as reformas necessárias para o crescimento, é produto dessa falta de diálogo, da ausência de um espírito de compromisso e de uma disponibilidade para negociar. Aliviar esse tipo de pressão é fundamental. De facto, problemas como transportes internos, continuam por resolver; ainda não são explorados o potencial das pescas; a agricultura precisa efectivamente ir além da subsistência; deve-se encontrar um papel para a indústria; os serviços têm que sair da informalidade para contribuírem mais para a produtividade e a competitividade do país; há que contornar a fragmentação do mercado do país para conseguir ganhos de escala, aumentar a diversificação da economia e assegurar melhor distribuição de riqueza. Só pela via do diálogo e com um engajamento colectivo e com cada no seu papel de governo ou oposição, mas unidos na prossecução do interesse geral, é que será possível estar em posição de equacionar devidamente e, com tempo e ao longo de legislaturas, resolver os problemas actuais.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de perder mais tempo e não confrontar os problemas que continuam a deixar o país vulnerável aos choques externos e internos e com uma economia pouco diversificada e fortemente dependente do turismo. A extraordinária recessão de 2020 devia ter sido um aviso claro a toda a sociedade cabo-verdiana. Infelizmente, passadas as dificuldades da pandemia, a tentação foi continuar a fazer o mesmo e a manter a mesma atitude. Não se optou por fazer da grave crise de 2020 uma oportunidade para um novo recomeço.

É um facto assente que, sem uma mudança de atitude, a tentação vai ser de, como até agora, quase rejubilar quando alguma coisa corre mal e pode-se culpar o governo, com o intuito de o desgastar e conquistar o eleitorado. Está-se a pagar caro por essa atitude, isso porque, na verdade, à medida que o tempo passa, as dificuldades vão se acumulando, os problemas vão se tornando cada vez mais intratáveis e vão-se perdendo oportunidades que exigem comprometimento estratégico durante vários anos para se estar em posição de as aproveitar. São exemplos disso os problemas hoje sentidos com o sistema de ensino, com a saúde, com os transportes, com a segurança e com a falta de estruturação de uma economia que privilegia a informalidade e pode pôr em risco a expansão do turismo por falta de higiene, como informou ontem a IGAE.

Nem após 50 anos de independência e com um conjunto de indicadores do Banco Mundial a demonstrar que Cabo Verde ficou para trás quando comparado com realidades insulares similares, o país mostra vontade de fazer diferente. Ao invés de enfrentar a realidade está-se agora a oferecer-lhe a consolação de se projectar para o ano 2075. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1230 de 25 de Junho de 2025.

sexta-feira, junho 27, 2025

Cuidar da imagem do parlamento reflecte-se na democracia

 

A última sessão da Assembleia Nacional, logo no primeiro dia de trabalho, foi palco de um espectáculo insólito à volta da substituição de deputados que acabou por prolongar-se por todo o período de manhã. Em causa estava como proceder para substituir deputados quando há suspensão de mandato ou há pedidos de substituição temporária e também como agir quando cessa a suspensão. A inesperada disparidade de posições sobre os procedimentos, considerando a experiência parlamentar de quase 35 anos, fez arrastar o debate por horas. Acabou por ser ultrapassada com a votação de um recurso de uma decisão da Comissão Permanente.

Aparentemente tratava-se de uma substituição de rotina. Um ex-governante retomou o exercício do seu mandato como deputado e, de acordo com o nº2 do artigo 7º do Estatuto dos Deputados, o candidato não eleito que o estava a substituir cessou todos os poderes e imunidades. Ainda de acordo com o mesmo estatuto nº 3 do artigo 6º, que tem em epígrafe “Critérios de substituição”, o candidato deverá retomar o seu lugar na lista, para efeito de futuras substituições. Perante o estipulado, parece não ter sentido uma outra interpretação, como aquela subjacente à decisão da Comissão Permanente, que implica que um deputado, originariamente um candidato não eleito em substituição de um deputado titular do cargo, seja forçado a suspender o mandato para ceder lugar a um outro candidato. Para aí é que se inclinou o voto maioritário no plenário da Assembleia Nacional ao revogar essa decisão.

De facto, um deputado deixa de exercer o mandado em caso de suspensão temporária, se houver procedimento criminal e incompatibilidade, ou então em caso de renúncia. Tanto na renúncia como na suspensão temporária deve ser a pedido do próprio deputado. Não pode ser por imposição da direcção do grupo parlamentar. O mesmo deverá acontecer com o candidato quando substitui um titular do mandato porque, como foi anteriormente referido atrás, enquanto exerce a função, tem todos os poderes e imunidade do deputado. Assim deve ser para garantir a autonomia e a dignidade do cargo, não excluindo evidentemente a gestão política indispensável no seio dos grupos parlamentares para melhor se capacitarem no cumprimento das suas funções no parlamento.

Resolveu-se pontualmente o imbróglio, mas a impressão que deixou nas pessoas e na sociedade não foi a mais positiva. Se se considerar que os parlamentos em geral e também em Cabo Verde não gozam junto do público de grande credibilidade por várias razões, nem sempre as mais justas, o facto é que espectáculos do género não ajudam. Parecem justificar a crise de representatividade nas democracias em que os cidadãos não se revêem nos eleitos particularmente quando aparentam estar a servir-se do mandato para defender interesses próprios.

E é o pior momento para isso. Sempre houve inimigos da democracia e do parlamento como órgão vital do sistema democrático, mas agora os números aumentaram consideravelmente. Outrossim, no actual ambiente de activismo e política populistas, situações similares fazem crescer o descrédito ainda mais, em particular porque centrando-se nos proventos do deputado reforçam as acusações de corrupção dirigidas às “elites”. Daí que, para manter credível e funcional o órgão de soberania que joga um papel central no equilíbrio dos poderes e é essencial para o clima de liberdade e pluralismo no país, devia-se ter um especial cuidado na postura institucional e na imagem pública do deputado.

Nesse sentido não pode haver dúvidas quanto às condições de exercício do mandato do deputado no que respeita à autonomia e dignidade do cargo. São fundamentais para garantir que a democracia é representativa e que é possível ter estabilidade de governo.

Diz-se que o mandato do deputado é duplo porque é-lhe dado pelo povo que o elege e pelo partido político que o coloca na lista de candidatos apresentada ao eleitorado. Por isso, se é certo que no parlamento ele pode pertencer a grupos parlamentares da sua cor partidária, também é verdade que pode escolher ser deputado independente. A autonomia no exercício do mandato que a dualidade de mandato lhe permite é confirmada por outros poderes próprios que a Constituição lhe confere designadamente na apresentação de propostas de lei e de projectos de revisão constitucional e na criação de comissões de inquérito.

Saber conciliar a autonomia com a disciplina e lealdade partidária, é fundamental para a estabilidade política do país. Por essa via consegue-se não só manter a configuração parlamentar saída das eleições e constituir maiorias para apoiar governos, como também assegurar o contraditório no debate parlamentar, ter vozes plurais na fiscalização do governo e propostas alternativas na formulação das leis. O exercício digno do cargo também está nesse equilíbrio, ponderação e engajamento com o interesse público que não conjuga bem com a imagem de deputados atrelados exclusivamente a interesses partidários, fungíveis nas mãos das directorias dos partidos que os procura gerir via suspensão temporária e substituição por candidatos.

É uma imagem que cada vez mais constitui uma das razões da descredibilização do parlamento que vêem o debate parlamentar a degradar-se com manifestações de partidarismo agudo, impasse na constituição dos órgãos externos e em certos casos incapacidade de formação de governos estáveis. A isso há ainda que juntar o espectáculo de órgãos legislativos a praticamente anularem-se face a derivas iliberais a favor do poder executivo, esvaziando os checks and balance do sistema político e abrindo caminho para o autoritarismo e a tirania. A cena de um senador americano a ser atirado ao chão, algemado e detido pela polícia indicia o quanto já se desequilibrou o sistema democrático na América a ponto de dirigentes congressistas, para mostrarem alinhamento com o presidente, aconselharem que ele fosse censurado pelo Senado.

Infelizmente, o facto se de saber que os múltiplos ataques aos parlamentos protagonizados pelos próprios titulares, pelos partidos, pelos médias e pelo público, irão desembocar em instituições democráticas mais frágeis e no fim da separação de poderes com crescente supremacia do poder executivo e correspondente perda de direitos dos cidadãos, não parece que até agora tenha sido impedimento para os continuar a fazer. De facto, o extremar de posições na política, o narcisismo que tem caracterizado a intervenção política de muitos e a falta de razoabilidade que tem acompanhado as reivindicações, dificultado negociações e comprometendo o processo de procura da verdade são simultaneamente a causa e efeito de uma degradação acelerada do papel dos parlamentos. É precisamente o que os modernos populistas querem para materializar a autocracia que sonham impor.

Quando se descredibiliza o parlamento, está-se a abrir caminho para a desvalorização da liberdade, do pluralismo e da procura colectiva do bem comum. Os inimigos da democracia sabem disso e associam-se a todas as iniciativas que resultam em descrédito das instituições. Não é de se juntar a eles, mesmo em momentos de indignação, de repúdio ou de pura conveniência partidária. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1229 de 18 de Junho de 2025.

sexta-feira, junho 20, 2025

Crescer mais para não ter que partir

Na sexta-feira passada, 6 de Junho, o INE divulgou os dados do desemprego em Cabo Verde a descer para 8%, a partir de 10,3% em 2023. Ontem, 10 de Junho, o Banco Mundial actualizou em alta as previsões de crescimento do país para 2025 de 5,3% para 5,9%. Em 2024 o PIB cresceu 7,4 e a expectativa para 2026 é de continuar acima do potencial de crescimento podendo atingir 5,3% de acordo com os dados mais actuais do Banco Mundial. Está-se, de facto, perante boas notícias: na conjuntura actual de muitas incertezas as taxas de crescimento de Cabo Verde continuam acima das previsões de crescimento de 3,7% para a África Sahariana e de 2,3% para a economia global, mesmo considerando que, segundo o INE, 47,5 % dos empregados trabalha na informalidade.

As boas notícias, porém, não devem desviar o foco do país da situação extremamente séria e delicada que se vive hoje no mundo. É um facto assente que as ameaças de guerra comercial já causaram estragos terríveis. Também é evidente que as tensões geopolíticas, resultantes do reposicionamento de potências emergentes, e a quebra da ordem internacional, que tinha reinado nos últimos 80 anos, já estão a redefinir as relações internacionais e a elevar os níveis de risco para a paz mundial. O que não é muito claro é que haja ambiente em Cabo Verde para se compreender a gravidade da situação e mostrar a devida ponderação perante os extraordinários desafios que se colocam.

Vários factores contribuem para que as expectativas de todos sejam altas, entre os quais estão o nível crescente de educação, o acesso universal à informação, que dá conta de oportunidades existentes no mundo, e a crença que todos devem ser capazes de realizar os seus sonhos. O problema é quando tudo isso choca com a realidade e há que ter alguma razoabilidade considerando os recursos existentes, a necessidade de organização e capacitação para produzir riqueza e o tempo exigível para a materialização dos objectivos. De facto, não é razoável esperar a gratificação instantânea de todos os desejos, a satisfação de todas as reivindicações e solução imediata de todos os problemas, como prometido pelos populistas.

A democracia, pelo contrário, ajuda a aderir à realidade quando funciona em pleno com as suas regras e procedimentos. E é assim porque propicia o diálogo, chama à ponderação e abre espaço à negociação e ao compromisso. No processo cria-se dinâmica social, política e económica ao promover a iniciativa e criatividade do indivíduo e ao incentivar o desenvolvimento do sentido de responsabilidade para a comunidade. Responsabilidade essa que deve acompanhar o exercício da liberdade e é essencial para cumprir o contracto social com vista à prosperidade de todos. Como é de esperar em situações normais e particularmente em processos de desenvolvimento nada é linear, nem tudo acontece como planeado, não se pode ter tudo e desigualdades tendem a reproduzirem-se, não obstante os esforços para as eliminar.

Um dos problemas mais complexos com que o mundo se depara actualmente é o das migração de pessoas de uns países para outros. Os que são emissores ficam com os problemas de perda de mão-de-obra, fuga de cérebros e eventualmente perda de produtividade em sectores-chave da economia. Em contrapartida, poderão ter ganhos significativos com remessas enviadas pelos seus emigrantes e futuramente com investimentos e transferência de tecnologia, know-how e espírito empreendedor. Nos países receptores preenchem-se vagas em sectores necessitados de mão- de-obra, rejuvenescem em termos demográficos, mas têm que lidar com o problema da integração dos imigrantes e as questões políticas que podem surgir da gestão de entradas.

Cabo Verde atingiu o nível de desenvolvimento que particularmente o deixa exposto ao fenómeno das migrações. Sempre foi um país de emigrantes, mas as razões eram fundamentalmente outras. Um país sujeito a secas periódicas e a fomes terríveis forçava a saída de uma parte da população para vários continentes à procura de sobrevivência e de sustento para os familiares que ficavam para trás. As saídas actualmente parecem seguir mais o padrão típico dos países de rendimento médio que atingem o patamar dos 4 mil dólares de rendimento per capita. A motivação já não é a sobrevivência, mas sim, a procura de novas oportunidades. O perfil dos novos emigrantes é o de pessoas já com um nível médio-alto de escolarização, e com formação e experiência profissional e rendimento suficiente que permite viagem e relocalização para uma nova vida em outros países.

Naturalmente causa preocupação um fluxo migratório para o exterior de gente qualificada que cria escassez de mão-de-obra em sectores importantes da economia. A solução não passa, porém, por reivindicações contraditórias de querer facilidade de visto para viajar e ao mesmo pretender coibir emigração à procura de oportunidades de trabalho e de carreira. Estudos comparados da relação entre emigração e crescimento do PIB per capita deixam entender que em geral o fenómeno surge a partir dos 4 mil dólares per capita, atinge um máximo aos 10 mil dólares, diminuindo à medida que o país se torna mais desenvolvido.

O facto de se a estar a assistir actualmente ao que é chamado, em certos sectores, de emigração massiva, deve-se mais ao estádio de desenvolvimento em que Cabo Verde se encontra actualmente do que à questão posta por alguns se é real ou não que o país cresceu a 7,3 %, em 2024, e tem uma previsão de crescimento de 5,9% para 2025 e 5.3 para 2026, muito superior às médias mundial e da África Subsaariana. Pode-se é perguntar se, 50 anos após a independência, Cabo Verde não devia estar num outro patamar. Imagine-se se não tivesse perdido os primeiros quinze anos com políticas económicas estatizantes contrárias à iniciativa privada que bloquearam o investimento externo, impediram o desenvolvimento do turismo e não exploraram a possibilidade nos anos setenta e oitenta, a exemplo das Maurícias, de uma industrialização para a exportação, criadora de empregos e de uma mão-de-obra mais qualificada.

Só a partir dos anos noventa o país viria a ter a chance de aumentar o seu potencial de crescimento, mas muitas oportunidades ficaram para trás, irremediavelmente perdidas. A isso deve-se ainda somar as marcas que essas políticas deixaram nas instituições estatais e na cultura centralizadora, avessa ao mérito e promotora da dependência e do assistencialismo que permeia a vida do país a vários níveis. As reformas que se impõem para aumentar a produtividade e a competitividade do país, para elevar o potencial de crescimento a níveis mais elevados e permitir que os jovens e outros profissionais possam optar por ficar e se realizarem no país, estão por fazer, não obstante as promessas dos sucessivos governos.

Por causa disso já há quem, alimentando ressentimento contra as “elites”, queira ir por caminhos que minimizam o diálogo e os compromissos e inevitavelmente resvalam para o autoritarismo e correspondente perda de direitos. Basta um só olhar para o espectáculo de tropas nas ruas da cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos, para concluir que, de facto, o inimaginável pode acontecer quando a política é substituída pela exploração de sentimentos de medo e de ódio ao outro. Com o mundo sob a ameaça de uma recessão global, o desastre que a via populista representa revela a sua completa dimensão.

Cabo Verde mostra capacidade de crescer mesmo com as dificuldades que apresenta nos transportes, na segurança, na educação e na saúde que têm sido foco de preocupação das pessoas. Como os 50 anos de independência já demostraram, só a democracia, por manter sempre a possibilidade de se encontrar vias para ultrapassar as dificuldades e remover os obstáculos, pode trazer soluções. Para isso é fundamental que não se caia em derivas autoritárias, que haja confiança nas suas instituições e que prevaleça na comunidade nacional um espírito de pertença e de solidariedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1228 de 11 de Junho de 2025.

 

sexta-feira, junho 13, 2025

Populismo vive de problemas, não resolve problemas

 

A corrida para os extremos continua. No domingo passado, 1º de Junho, na Polónia, mais uma candidatura apoiada pela direita radical ganhou as eleições presidenciais. Tudo leva a crer que forças radicais em vários outros países não vão ficar por aí, particularmente quando, como no caso polaco, se tem o apoio explícito do movimento de Donald Trump (MAGA). A persistência nessas sociedades de condições propícias ao crescimento do extremismo político tanto da direita como de esquerda, entre as quais a extrema polarização, a preferência pelo discurso político na base do ressentimento e a actuação política dirigida para a descredibilização das instituições, garante que haverá mais vitórias dos radicais.

O espantoso é que quem mais sai a perder com o processo continue a actuar da mesma forma. É o que se nota nas forças políticas tradicionais apesar da sua decrescente representação eleitoral e também nos contrapoderes, como os média, os sindicatos e as ONGs, e nos próprios indivíduos, mesmo perante a evidente derrapagem a favor dos extremos. Ninguém parece disposto a alterar a sua abordagem política, sentida como distante, mas apresentada como de proximidade, nem as suas reivindicações, que ignoram consequências e responsabilidade ou a sua preferência pela gratificação pessoal e instantânea tirada de denúncias de corrupção e de demonstrações de indignação. Mesmo quando é claro e evidente para onde se dirigem as soluções de mudança propostas pelos extremos – o mal-estar e o sofrimento que geram, a erosão de direitos que provocam e o futuro menos próspero e previsível que deixam – percebe-se que não é fácil travar ou inflectir tais abordagens políticas e avançar com reformas vantajosas para todos.

Não há, porém, como negar o resultado de certas políticas, de certa forma de governar e de um certo entendimento do mundo face ao que se assiste nos Estados Unidos, e ainda não se completaram seis meses do mandato de Donald Trump. Assim, na forma típica de exercício do poder pelos populistas centrada no líder tem-se reforçado a autoridade da presidência face ao poder legislativo e ao poder judicial. O sistema de checks and balance ficou mais fraco ao se forçar a submissão do congresso e ao se desafiar continuamente os tribunais até ao limite do não cumprimento pelo executivo de decisões judiciais, no que pode vir a configurar uma crise constitucional.

Na própria administração federal, com a imagem da serra eléctrica empunhada por Elon Musk, procurou-se tornar os funcionários vulneráveis, reduzir a independência das autoridades reguladoras e diminuir a isenção e imparcialidade do serviço público a favor da lealdade directa ao presidente. Nem as forças armadas, as polícias e os serviços de inteligência ficaram imunes a intervenções divisivas em contra-corrente com a cultura institucional existente que privilegia o mérito, a competência e o respeito pela constituição.

A erosão de direitos fundamentais que de imediato se sentiu naturalmente acabou por ter o maior impacto nos imigrantes e nas minorias, com prisões, deportações e perdas de emprego e de benefícios sociais. Para a criação do novo ambiente socio- político caracterizado pela compressão de direitos, deve-se juntar a ofensiva contra os média institucionais e contra universidades de referência e institutos científicos sob a capa de combate às políticas de diversidade, equidade e inclusão.

O impacto no mundo com o desencadear da guerra das tarifas tem sido terrível a ponto da OCDE, esta terça-feira, ter previsto que o crescimento mundial em 2025 será o mais baixo depois da pandemia da Covid-19. Com a guerra comercial têm-se deteriorado também as relações entre os países, entre os chefes de Estado com o exemplo das cenas grotescas na Casa Branca nas visitas do presidente da Ucrânia e da África do Sul. O mundo globalmente tornou-se mais perigoso, com guerras intensas sem fim à vista e com o sistema de alianças que mantiveram o mundo estável a desmantelar-se.

Também as fragilidades do mundo ficaram mais expostas com o sistema de ajudas internacionais a ameaçar colapso e as instituições multilaterais a debaterem-se com várias indefinições em relação ao futuro, designadamente em relação ao processo de globalização, às migrações, à transição energética e à luta contra as alterações climáticas. E ainda está para ver como vai ser enfrentado o futuro que já se anuncia cada vez mais próximo, marcado pela emergência e a utilização universal da Inteligência Artificial.

Tratando-se da maior potência mundial e da mais velha democracia constitucional, o que se passa na América pode ser, com as devidas proporções, a imagem da actuação do populismo noutras latitudes. Aliás, o seguimento pelos modernos líderes populistas do essencial do playbook de Trump já sugere o que virá depois do acesso às rédeas do poder quanto ao impacto a ser esperado no sistema político, na estrutura económica, no tecido social e no ambiente mediático. Se nem na América se sabe realmente se os estragos serão reversíveis, imagine-se o que pode vir a verificar-se à escala de outros países com menos capacidade e recursos para resistir e inverter a marcha depois da passagem da onda populista.

A melhor opção é, a tempo, não deixar a onda formar-se e crescer. Depois de já ter ganho dimensão seria de a impedir de chegar ao poder porque pela experiência de Trump já se sabe o que vai acontecer: a tendência para o culto de personalidade do líder, para se eliminar os equilíbrios de poder que impedem a concentração do poder, para condicionar a legalidade à conveniência do poder, para limitar a liberdade dos média e para expor o indivíduo à maior discricionariedade e arbitrariedade das autoridades. Nem como putativo prémio de consolação tais regimes se mostram capazes de fornecer serviços públicos com eficiência e eficácia, gerir o país com competência nos vários sectores e implementar estratégias inovadoras para o futuro.

Cabo Verde, à semelhança da generalidade das democracias, também se confronta actualmente com uma tentação populista. Para a enfrentar é fundamental que haja convergência de forças e vontade democrática para trabalhar na renovação da confiança nas instituições democráticas. Sentimentos anti-sistema em certos sectores de opinião acenam com supostas vantagens de regimes autoritários, até trazendo exemplos de movimentos militares em países da África Ocidental. É preciso informar aos mais novos e relembrar os outros que Cabo Verde já teve a experiência durante quinze anos de ditadura do partido único à mistura com o culto de personalidade do líder messiânico rodeado dos “melhores filhos do nosso povo”. Não deu certo.

O povo teve que conquistar a democracia para ter oportunidade de ser livre e construir a prosperidade que existe hoje. Nos processos de desenvolvimento há sempre a possibilidade de deparar com obstáculos que podem afectar o crescimento. Ultrapassá-los nem sempre é fácil. Como ninguém tem a verdade, há mais hipótese de os vencer com diálogo num ambiente de pluralismo de ideias e em que há confiança porque as regras do jogo democrático são respeitadas e acredita-se que mesmo com opinião diferente todos defendem o interesse público e o bem comum.

O populismo alimenta-se da falta de confiança, da divisão e da negação da pertença de todos à comunidade nacional. A partir daí não há uso para o diálogo, adversários são inimigos, a verdade é só uma. Acaba a política e o pensamento próprio e só resta a lealdade ao líder e à sua orientação. Não custa muito ver que esse é o caminho para o autoritarismo e para o atraso do país e das suas gentes.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1227 de 4 de Junho de 2025.

segunda-feira, junho 02, 2025

Liberdade e democracia garantem terreno seguro para construir prosperidade e combater a pobreza

 

Já está a compor-se o panorama para o confronto político nas legislativas no segundo trimestre de 2026. No domingo, 25 de Maio, Francisco Carvalho, actual presidente da câmara municipal da Praia foi eleito presidente do PAICV e certamente que será o candidato a primeiro-ministro. Do lado do MpD, ficou decidido numa reunião da direcção nacional, em Janeiro último, que o actual primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva procurará um terceiro mandato. Considerando a conjuntura mundial de grandes incertezas e o ambiente politico nacional de crescente polarização e de perda de confiança nas instituições, provavelmente vai-se ter nessas eleições um embate mais crispado, menos sintonizado com o futuro e potencialmente desafiante dos fundamentos do próprio regime democrático.

As democracias vivem actualmente um momento único. Uma das razões para isso é o progressivo colapso do centro político e dos partidos tradicionais, que são os pilares do sistema constitucional, e a emergência em simultâneo de forças políticas nos extremos. Com a ascensão de forças anti-sistema, deixa de existir diálogo entre visões e estratégias de futuro a partir de uma base consensual comum para passar ao confronto político permanente e, a partir daí, à degradação do Estado de Direito e à erosão dos direitos fundamentais. É um processo visível em várias democracias onde há claros sinais de uma deriva iliberal com o enfraquecimento dos checks and balance do sistema político, a demonização dos media e a contestação do poder judicial.

Não estranha que algo similar aconteça em Cabo Verde tendo em conta que na actual conjuntura factores presentes em países democráticos favorecem o sentimento anti-sistema entre indivíduos e grupos. Normalmente difuso, esse sentimento, quando mobilizado e conjugado com a tentação populista que culpa elites, promove a desconfiança nas instituições e alimenta a desesperança, pode lançar um partido numa espiral ascendente e eventualmente até à posição de principal força política de oposição. Já aconteceu em vários países, recentemente em Portugal com o Chega, pouco antes na Alemanha com a AfD, anteriormente na América pela via da captura do partido republicano por Trump e os seus apoiantes.

É evidente que isso não acontece sem que haja resistência das outras forças políticas quando se trata de um novo partido ou de resistência interna nos casos de captura. Assim, há partidos que são deixados isolados por cercas sanitárias que lhes são impostas ou impedidos de entrar em coligação por linhas vermelhas estabelecidas pelos partidos institucionais. O processo de captura de um partido já é mais complexo e mais duro. Primeiro, conforme o ambiente encontrado, há que seduzir, aliciar e intrigar para conseguir posições de influência e controlo futuro dos lugares no partido. Conquistado, porém, um lugar sólido de poder, passa-se para a fase seguinte quando as eleições se aproximam e com elas vem “o cheiro do poder”. Aí desaparecem as resistências e a corrida para se colocar à frente e alinhar com quem mais promete sobrepõe-se a qualquer espírito crítico e a quaisquer lealdades passadas.

A disputa de liderança no PAICV tem sido vista por vários observadores como exemplo de um processo de captura de um partido. Realmente, vê-se isso pelo momento e a forma como foi anunciada a pretensão do presidente da câmara da Praia, logo que foi reeleito, em ser líder do partido e candidato a primeiro-ministro. Percebe-se que o então líder não tinha outra saída perante o que configurava um golpe de força. Também não se pode deixar de notar que as três candidaturas que se seguiram aparentemente compartilhavam da mesma motivação de impedir que uma espécie de “hostile takeover” do partido se concretizasse.

O facto de a corrida pela liderança ter sido resolvida de forma democrática com uma maioria sólida para o vencedor não impede que se olhe para todo o processo com a devida atenção e se verifique se, de facto, um partido do arco do poder em Cabo Verde foi capturado por uma liderança populista com tentações anti-sistema. Os incidentes à volta do pagamento de quotas, que estão na origem do adiamento das eleições internas, e o questionar da integridade do banco de dados dos militantes fazem lembrar as encenações provocatórias de outras paragens onde que quem as inicia tem a arte de se apresentar depois como vítima. Aliás, nas autárquicas de 2024 foram feitas acusações sobre o plano que envolvia a NOSi na alteração dos resultados eleitorais que depois se esfumaram a seguir às eleições. Se se continuar a seguir pelo mesmo “playbook” pode-se já prever novas denúncias nas vésperas das eleições legislativas.

A prática de pôr em cheque as instituições, de contornar, senão de violar, os procedimentos democráticos e de ultrapassar no exercício do poder as competências estabelecidas na lei favorece o populismo. Parece dar razão aos populistas que insistem em passar a ideia que a democracia é um jogo de cartas marcadas em que só as “elites” ganham. O “povo” ganha se confiar no seu líder que é autêntico e realmente o representa. Com isso, está-se a dizer às pessoas que a democracia não funciona, que não se pode acreditar no Estado de Direito, que política e políticos significam corrupção e que a solução para os problemas é mais simples do que parece e está á mão se for seguida a liderança do chefe. Não é à toa que nas democracias se procura evitar que tais forças populistas, que postulam uma divisão entre o “nós” e os “outros”, assumam as rédeas do poder.

Para não correr esse risco e considerando o papel central dos partidos no sistema político democrático, é do interesse geral que os seus processos internos sejam seguidos pelos cidadãos, particularmente nos momentos de escolha dos líderes. Realmente, é da capacidade dos partidos poderem representar o povo na pluralidade de opiniões e na diversidade de seus interesses que depende a qualidade do diálogo, essencial para a definição, execução e fiscalização de políticas com vista ao bem geral.

Também é do comprometimento dos partidos com as regras do jogo democrático que se assegura que, se erros forem cometidos e opções de política não se revelarem as melhores, há sempre a possibilidade de alternativas. Se, porém, se permitir que desvios sejam introduzidos no sistema político e que os procedimentos democráticos deixem de ser respeitados, a possibilidade de mudar de rumo, de corrigir erros e de acelerar o desenvolvimento com inovações e novas práticas pode ser seriamente comprometida.

Nestes tempos de grandes perigos para a democracia, a liberdade deve ser acompanhada de um sentido agudo de responsabilidade para a manutenção das condições necessárias ao seu pleno exercício, em particular a segurança e a ordem pública. Nas próximas legislativas poderão vir confrontar-se pela primeira vez, depois do 13 de Janeiro de 1991, forças comprometidas com a democracia liberal e constitucional e forças assumidamente populistas.

É fundamental, para preservar a base da prosperidade criada a partir dos anos noventa, e a capacidade de a elevar a um outro patamar e construir um futuro para todos, que não se continue a cavar o fosso entre as pessoas. E que não se promova a cultura do individualismo, do cinismo e da irresponsabilidade de quem tudo quer ou tudo promete sem a preocupação se é exequível, se compromete o futuro e se não aumenta a frustração e a desesperança. Uma coisa é certa: nos tempos difíceis que correm não é de pôr em risco o terreno seguro para construir a prosperidade e combater a pobreza que só a liberdade e a democracia garantem. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1226 de 28 de Maio de 2025.

segunda-feira, maio 26, 2025

Aviso: Populismo pode levar à tirania

 

As eleições em três países europeus no último fim-de-semana, 18 de Maio, vieram confirmar a caminhada ascendente da extrema- direita na Europa. Em Portugal, os avanços são evidentes com o partido Chega a posicionar-se para o segundo lugar no espectro político partidário e a demonstrar-se atractivo para antigos eleitores de partidos de esquerda, incluindo o partido socialista. Na Polónia e na Roménia são tão evidentes os ganhos conseguidos que é uma questão de tempo para os candidatos da extrema-direita obterem uma vitória nas disputas presidenciais. Vê-se o mesmo padrão em várias outras democracias que também enfrentam crises sociopolíticas de representação exacerbadas pela polarização da sociedade, o enfraquecimento dos partidos do centro político, as políticas identitárias e os problemas de imigração.

Nota-se que cada vez mais os votos dos eleitores parecem dirigir-se para forças políticas extremas, abandonando a preferência de classe ou ideológica de há muito estabelecida. Aparentemente, o fenómeno explica-se pela forma como o medo, o ressentimento e a incerteza em relação ao futuro tendem a prevalecer sobre o que seriam escolhas racionais ou expectáveis das pessoas com base no interesse sócio-económico, na aproximação política e no sentido de pertença a comunidades específicas. Quando é assim, há rompimento com os partidos tradicionais do centro, seja da esquerda, ou seja da direita.

O ganho maior com a convergência dos votos tem ido para a direita radical ou para a extrema-direita dando fôlego a forças políticas pré-existentes, ou promovendo novos partidos. No caso americano, trata-se de um partido tradicional, capturado por um candidato, e depois presidente, e devidamente saneado das suas elites partidárias anteriores, que se torna no grande atractor desse sentimento de desesperança, de ressentimento e até de exigência de compensação por males reais ou imaginados e mesmo vingança. Os primeiros cem dias do governo de Donald Trump têm demonstrado até que ponto se pode ir quando essas forças chegam ao poder.

Cabo Verde não está imune a essas dinâmicas que afectam outras democracias. Aqui também manifestam-se sinais de crise das democracias designadamente no fosso que parece existir entre as expectativas das pessoas e as condições reais de realização das suas aspirações ou o ritmo em que as oportunidades são criadas. Também são sinais a percepção de maior desigualdade social e o que aparentemente mostra ser a incapacidade da classe política, em particular dos partidos do arco de poder em apresentar projectos alternativos de políticas que podiam abrir um futuro mais promissor. Face a isso, seria só uma questão de tempo para, a exemplo do que vem passando em outras democracias, o descontentamento de vários sectores do eleitorado ser mobilizado por forças populistas.

A situação política especial em que o município da Praia se encontrou depois das eleições de 2020 criou o cenário ideal para isso. A instabilidade logo no início do mandato devido à disputa entre o presidente da câmara e os vereadores do seu partido destruiu a maioria na câmara municipal que o PAICV tinha ganho nas eleições. O funcionamento dos órgãos municipais passou a fazer-se a partir daí fora da normalidade legal e institucional já estabelecida por trinta anos do municipalismo democrático. Com um discurso de dupla vitimização por parte do governo e das “elites”, incluindo sectores do PAICV, o presidente da Câmara Municipal justificava a sua actuação no município.

A partir daí era possível cavar uma trajectória própria com distanciamento em relação ao partido e uma aura de impunidade em relação ao Estado. Com o poder e os recursos do município haveria uma base através da qual os entretanto identificados como “excluídos do sistema” podiam dar uma resposta assertiva às elites e à classe política. O motor do populismo era assim posto a funcionar. Diferentemente do que se passou em outras paragens, acontecia nas margens e com a cobertura de um partido que se identifica com a esquerda.

Vieram as eleições autárquicas de 2024 e a grande vitória já foi do presidente da câmara municipal e não do partido como na eleição anterior. Abriu-se a porta para a captura do partido e o reconhecimento do facto levou ao ainda líder a escusar um novo mandato. Mas como já aconteceu com outros partidos que se viram na mesma situação, as reacções não tardaram e vieram na forma de três candidaturas. Por experiência, porém, sabe-se que dificilmente se consegue impedir o processo.

De facto, com exemplos dos populistas a explorar a seu favor a condição de vítima das elites, dificilmente essas tentativas de dirigentes do partido terão sucesso. Particularmente quando não são tomadas posições políticas e se fica por questões que podem ser apresentadas como sendo de natureza procedimental e como tal “de secretaria”. É o caso das quotas que levou à interrupção do processo eleitoral e que para a candidatura visada serviu como mais uma demonstração da sua condição de vítima das elites.

A experiência recente das democracias com o populismo de direita ou de esquerda demonstra que não é fácil conter o seu ímpeto. Ao se apresentarem como campeões dos “excluídos do sistema”, por um lado, tendem a canalizar todo o descontentamento com o regime vigente político e a produzir uma mensagem política que se revela transversal atingindo vários segmentos da população. Partes significativas do eleitorado de partidos tradicionais tidos como fixos podem surpreender com a transferência de votos para os populistas, a exemplo do que se passou em Portugal.

Por outro lado, com a extrema polarização procuram criar uma realidade alternativa em que factos e dados institucionais são tidos como a verdade das elites e por isso efectivamente bloqueados ou descartados. Sem uma base comum de discussão, não fica espaço para o diálogo, para a política e para compromissos em relação ao futuro. A esfera pública reduz-se na cacofonia que é criada com a apresentação de soluções simples para situações complexas e na impossibilidade de as provar como viáveis ou inatingíveis por falta de debate.

Os vários casos de conquista do poder e das rédeas de governação por populistas demonstram a incompetência e muitas vezes o efeito destrutivo da acção governativa. Preocupante é que mesmo nesses casos de demonstrada incapacidade não é evidente que haja grande erosão da sua base de apoio. Razão mais do que suficiente para se evitar que forças populistas se tornem dominantes na sociedade. Para isso é fundamental insistir no cumprimento das normas e procedimentos democráticos, assegurar que as competências dos vários órgãos são exercidas e que os checks and balance do sistema funcionam de forma a manter a confiança nas instituições e garantir o espírito de solidariedade na comunidade.

Atacando o sistema democrático, alimentando o cinismo em relação a tudo, esvaziando a esperança no futuro, cria-se espaço para tirania futura. E para os que já se esqueceram o que significa tirania, os tiranos na actualidade relembram o que milénios atrás Platão escreveu no seu livro “A República”: “o tirano não tolera os críticos, nem sequer aqueles, precisamente, que o ajudaram a subir para o carro do Estado e que, entretanto, se mostraram os seus mais fiéis validos. A uns e outros ele elimina sucessivamente, sobretudo aqueles que o ajudaram a elevá-lo àquela posição e que têm poder para falar livremente, diante dele e uns com os outros, até que, por fim, não sobram a seu lado senão os medíocres, os ineptos e os aduladores”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1225 de 21 de Maio de 2025.

segunda-feira, maio 19, 2025

Ninguém ganha com a transmissão directa das sessões do parlamento

 

Na semana passada a Rádio Pública comunicou à Assembleia Nacional que não continuaria a “transmitir as sessões parlamentares nos moldes habituais”. Aparentemente em unanimidade os deputados condenaram a decisão e houve quem questionasse se a RCV estaria a incumprir com as suas obrigações na prestação do serviço público. A direcção da RCV justificou a sua decisão com a necessidade de maior eficácia na cobertura e de optimização da utilização dos tempos da rádio no quadro de uma programação mais diversificada.

Os argumentos avançados posteriormente em vários canais ressuscitaram as questões de sempre quanto à censura e à independência editorial dos serviços públicos de comunicação social, não obstante dias antes os Repórteres sem Fronteiras terem em mais um relatório apontado a autocensura dos jornalistas como o maior problema dos médias em Cabo Verde. Esse facto devia ser um convite para se encarar o assunto numa outra perspectiva que provavelmente iria demonstrar que com o fim das transmissões dos trabalhos parlamentares há mais ganhos do que perdas para o parlamento, para os deputados, para a rádio, para o público e para a democracia.

O costume da rádio transmitir sessões de trabalho vem dos tempos da Assembleia Nacional Popular que, como uma instituição de um regime de partido único, era uma assembleia monopartidária. Fazia naturalmente parte do sistema de propaganda do próprio regime e em geral não permitia intermediação jornalística na radiofusão dos trabalhos dos deputados. Com o advento da democracia, o costume manteve-se, mas agora num ambiente pluripartidário marcado pelo exercício do contraditório e naturalmente pelo surgimento do discurso político crispado entre as partes.

Daí foi um passo para, perante qualquer tentativa da rádio de alterar o formato da transmissão dos trabalhos, se ouvir reclamações de censura ou de tratamento privilegiado. Esse impedimento manteve-se mesmo quando se tornou evidente que a excessiva exposição do parlamento com a radiofusão de todos os seus trabalhos não era benéfica para a imagem do parlamento, para a produtividade dos trabalhos parlamentares e para a própria democracia ainda nos seus primórdios e com uma cultura institucional incipiente.

Na generalidade das democracias representativas, o parlamento nos seus primeiros passos procurou rodear-se de um certo recato para que a função de representação fosse exercida efectivamente e não se reduzisse ao papel de transmissor de recados ou de porta voz de interesses particulares. Afinal, há proibição do mandato imperativo. Só há relativamente pouco tempo que os parlamentos se abriram para transmissões directas, mas através de canais próprios da rádio e da televisão e recentemente pela via do streaming.

É verdade que as sessões dos parlamentos democráticos são públicas e como tal têm que ser acessíveis para quem as queiram seguir ou procure ter o registo dos trabalhos nos diferentes formatos. Para garantir isso no parlamento cabo-verdiano, há vários anos que se vem investindo em canais audiovisuais próprios. Actualmente também pode-se seguir os trabalhos parlamentares via internet e redes sociais. Consequentemente, há muito que deixou de fazer sentido monopolizar a rádio pública durante horas a fio a transmitir as sessões em nome da publicidade dos trabalhos parlamentares. Nem é eficaz, considerando que em democracia é difícil manter audiências cativas porque os ouvintes têm escolha de rádios e de conteúdos.

A insistência em continuar as transmissões teve e vai continuar a ter consequências ao nível da percepção pública do parlamento, da forma como os deputados e os grupos parlamentares vão desempenhar o seu papel como legisladores e fiscalizadores do governo e da produtividade e eficácia que se pode esperar dos trabalhos parlamentares. Em relação à imagem da instituição é visível a degradação aos olhos do público, em parte por conta da tendência geral das democracias em avaliar negativamente o parlamento, mas numa parte significativa devido à crispação política que a transmissão em directo na rádio enfatiza e personaliza. Numa espécie de feedback positivo a reacção do publico a seguir em directo os trabalhos acaba por exacerbar os ânimos e a afectar negativamente a produtividade dos mesmos, tanto em matéria de tempo consumido, como do nível do discurso político e da possibilidade de se chegar a compromissos na efectivação do interesse geral.

Um outro efeito da excessiva exposição dos deputados via rádio é a opção por uma postura mais performativa e individual que, com prejuízo para os trabalhos, acaba por afectar a coesão, a estratégia e a capacidade negocial do grupo parlamentar no diálogo com os adversários políticos. Ao longo do tempo tende a multiplicar-se o número de deputados a intervir sem uma preocupação de grupo, mas com o objectivo de atingir o eleitorado do seu círculo eleitoral como se as eleições fossem uninominais e não por listas plurinominais propostas pelos partidos. Daí a insistência em assoberbar o parlamento e em confrontar adversários e o governo com questões próprias das câmaras municipais.

Só que isso prejudica a democracia. Ao pôr em causa princípios como lealdade institucional que, no caso, tem na sua base o respeito pelas competências dos órgãos eleitos e a autonomia do poder local, pode-se estar a dar espaço e legitimidade para o surgimento de contrapoderes em vez de se ter um sistema político equilibrado com os seus checks and balances. Há que conter a tentação de usar tácticas políticas, a lembrar passados revolucionários, de criação de poderes paralelos para esvaziar os legítimos, diminuir a transparência no exercício no poder e retirar a possibilidade de diálogo que leva à paz social. Candidatos ao papel de contrapoder, posicionando-se acima do sistema democrático, parece que não faltam.

O imbróglio com a RCV suscita uma outra questão que tem a ver com o posicionamento hegemónico da rádio pública no espaço mediático do país. Aliás, é devido a essa posição que é atacada por uns e outros e que vê uma sua decisão unanimemente contestada pelos deputados. Mas é uma situação anómala que, se até agora não foi alterada, não parece que vá acontecer num futuro próximo, independentemente de que partido governa. Por essa razão, uma especial responsabilidade devia recair sobre a direcção da rádio e os jornalistas no sentido de com isenção assegurar a expressão e o confronto das ideias das diversas correntes de opinião.

Podia-se já com a nova cobertura do parlamento investir numa equipa jornalística conhecedora dos procedimentos, da história e das matérias em discussão para fazer a intermediação certa com o público e elevar a outro nível a informação sobre os trabalhos no plenário da Assembleia Nacional No outro pomo de discórdia pública, que é o comentário na rádio e na televisão, devia-se investir na contratação de comentadores capazes de exprimir opiniões diversas que garantissem o pluralismo de ideias e evitasse a nota monocórdia em questões importantes que várias vezes tende a prevalecer. Há um problema com os recursos, mas sabe-se que são sempre escassos e por isso deve-se estabelecer prioridades. Para órgãos que tem obrigação de mostrar pluralismo interno, o investimento em assegurar isso a todo o momento devia ser prioritário.

Da minicrise que resultou da decisão em alterar a cobertura do parlamento pela rádio pública pode ter surgido a oportunidade de, por um lado, levar a Assembleia Nacional a evoluir da condição de um “parlamento de plenário” para um parlamento onde o grosso do trabalho é feito nas comissões especializadas, como acontece em todos os parlamentos maduros. Para a RTC pode ser o momento para alocar recursos de forma a cumprir com a sua missão constitucionalmente estabelecida de contribuir para o dialogo plural, informativo e esclarecedor com foco no interesse público. Se assim for o país saíra a ganhar desta disputa.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1224 de 14 de Maio de 2025.

segunda-feira, maio 12, 2025

Libertar-se da autocensura

 

Pelo 3 de Maio, Dia da Liberdade de Imprensa, a ONG Repórteres Sem Fronteiras publica o ranking dos países com base na avaliação das condições para o exercício livre dos órgãos de comunicação social e da actividade jornalística. Cabo Verde ficou na posição 30 do ranking, uma melhoria de 11 lugares em relação ao ano anterior. Visto pelos indicadores, percebe-se que o que negativamente pesa mais é a dependência económica. Destaca-se o facto de 70% dos jornalistas estarem nos órgãos públicos que sobrevivem à custa de subsídios do Estado, usufruindo de melhores salários e estabilidade, e o facto de os média privados enfrentarem um crescimento limitado por um mercado publicitário restrito.

Quanto aos outros indicadores, em particular o do quadro jurídico para o exercício das funções e o da segurança para os jornalistas, constatam-se melhorias significativas. O que parece que não muda após sucessivos relatórios dos RSF é a questão da autocensura que, segundo o documento, “tornou-se um hábito no país”. Como explicação atribui-se Cabo Verde uma “cultura de sigilo” e acusa-se o Estado de “restringir o acesso a informações de interesse público”. Para a compreensão do fenómeno da autocensura talvez seja importante notar que não se limita aos jornalistas.

É mais amplo como recentemente se constatou num programa radiofónico da RCV em que se procurou justificar a dificuldade em conseguir comentário económico com a autocensura dos economistas. Provavelmente existirá em vários outros sectores indicando não tanto uma cultura de sigilo, mas uma atitude de conformismo com narrativas bem enraizadas e de crença em verdades convenientes. Para isso contribuíra certamente o excessivo peso dos órgãos públicos de comunicação social e a fragilidade dos média privados. Com o pluralismo na esfera pública limitado por essas distorções, dificilmente se consegue desenvolver o pensamento crítico, a coragem para apresentar ideias novas e a ousadia de ser diferente.

Não era para ser assim. A Constituição obriga a que haja um serviço público da rádio e da televisão, mas estipula que o Estado deve garantir a isenção dos órgãos e que deve ser assegurado a expressão e o confronto de ideias das diferentes correntes de opinião. Ou seja, que é fundamental existir pluralidade interna nesses órgãos e que para isso há que garantir a liberdade dos jornalistas perante o poder político e o económico. Mesmo a nomeação e a demissão dos directores de Informação e de Programação devem ser precedidas de parecer favorável da autoridade reguladora (ARC) eleita por dois terços dos deputados da Nação.

A persistência da autocensura num tal quadro deriva provavelmente dos problemas de origem dos órgãos públicos de radiodifusão e da cultura institucional subsequente. No processo de independência foram eliminadas as rádios privadas e de seguida transformadas em órgãos de propaganda política. Ao longo dos primeiros quinzes anos tudo se fez para, nas palavras de um alto dirigente, não se ter “especialistas de informação” (jornalistas), mas sim “militantes que coordenam o trabalho de levar a cada cidadão o conhecimento” do progresso do país.

Com o advento da democracia, não se mudou realmente para uma cultura de isenção e de dar expressão ao pluralismo de ideias. E a verdade é que, sem assunção completa desses valores e num quadro democrático de normal tensão entre o governo e a imprensa, a independência em relação aos poderes político e económico garantida aos jornalistas deixava espaço para simpatias políticas em relação a um partido ou para vitimização perante outro, sob a capa de autocensura. As malhas ideológicas em tensão com os novos valores e princípios constitucionais da Segunda República, que continuaram a entremear as instituições, contribuíram para que o mesmo fenómeno de simpatia ou autocensura, conforme o caso, se propagasse para outros sectores, em particular os que lidavam com o conhecimento, a informação e a cultura.

A exagerada desproporcionalidade de cobertura dos média públicos em relação aos privados criada pelas tomadas das rádios há cinquenta anos nunca foi alterada significativamente. Parece que todos os governos na vigência do regime democrático se sentiram confortáveis com a situação ou se viram impotentes para a alterar, apesar de todos os partidos a criticarem quando na oposição. Em consequência, a expressão e o confronto de ideias no país não acontecem ao nível que se seria de desejar em democracia.

No público há os constrangimentos, já referidos, no pluralismo interno exigido aos órgãos. Nos média privados, a autocensura pode ser uma forma de lidar com um mercado publicitário tornado exíguo pela posição hegemónica do Estado. O problema é que, quando todos se alinham para sobreviver, diminui-se o pluralismo externo na base de órgãos editorialmente diversos que devia produzir o confronto de ideias.

Os sectores da cultura e da educação e as universidades que podiam compensar as deficiências na dinamização das ideias têm-nas provavelmente aumentadas. Sob a influencia de políticas identitárias e de correntes de pensamento polarizadoras da sociedade que alimentam o ressentimento e a vitimização não se cria espaço para o pluralismo e o debate de ideias. Pelo contrário, encadeiam-se incentivos como bolsas para estudo e investigação, edição de obras, facilidades de carreira e de contratação para criar activistas e passar ideias iliberais.

Nos Estados Unidos a percepção de que se está a fechar ao confronto de ideias com abordagens similares já serviu de pretexto para uma forte reacção do governo Trump contra certas universidades. O mesmo dá sinais de acontecer noutras partes do mundo. Em Cabo Verde ainda se fica pelo conformismo e pelo reforço da autocensura.

Entretanto, as consequências negativas vão-se acumulando. Um exemplo disso é o facto de no dia da língua portuguesa, que é a língua oficial, a língua escrita do país e da literatura cabo-verdiana e a língua do ensino, sem reacções de protesto não se dar trégua ao confronto do crioulo com o português e com a problemática da sua oficialização. Parece que não importa os estragos visíveis que essa atitude provoca diminuindo a disponibilidade das crianças e jovens em aprender a escrever, em ler livros e manuais escolares e em ser cidadãos plenos, porque capazes de se comunicarem plenamente na língua oficial e potenciarem todo o conhecimento acumulado do país. Sem preocupação com o impacto real do activismo de motivação ideológica na vida das pessoas parece que o pretendido é análogo ao que se consegue do bullying: conformar atitudes, criar falta de confiança e autocensurar-se.

Recentemente viu-se gente que se autoglorifica como africano ou como donos da independência a chamar os cabo-verdianos de racistas e a tomar por saudosistas quem celebrar o 25 de Abril sem a devida autorização. Por aí vê-se que o bullying no presente parece um instrumento de preferência para quem, como diz George Orwell, tudo faz para controlar o passado para poder controlar o futuro. Há, porém, que quebrar essa relação de vassalagem para que os relatórios dos RSF deixem de apontar a autocensura como um hábito e se acabe com a cultura de verdades convenientes em Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1223 de 07 de Maio de 2025.

segunda-feira, maio 05, 2025

Cabo Verde, a história imposta

 A propósito da rejeição de entrada de alguns estrangeiros oriundos da Nigéria pelos Serviços de Imigração e Fronteiras assistiu-se nas últimas semanas a mais uma avalanche de acusações rotulando Cabo Verde de país racista e os cabo-verdianos de racistas. Intervenções de titulares de órgãos de soberania e posicionamentos de partidos políticos serviram de pivot para as sucessivas vagas de ataque que se verificaram a partir de órgãos de comunicação social e das redes sociais. Aconteceu antes e irá acontecer no futuro ao mínimo pretexto, porque faz parte do cardápio dos que se servem de políticas identitárias e das paixões e ressentimentos por elas suscitadas para obter ganhos políticos.

É curioso que ninguém acusa de racista outros países da CEDEAO com um registo de rejeição de entradas superior ao de Cabo Verde ou com uma história de expulsão de nacionais da comunidade aos milhares e mesmo milhões, caso da Nigéria, da Costa do Marfim ou do Senegal. Normalmente o rótulo de racista vai para os países europeus e o Ocidente, em geral em relação aos quais reivindicações de mais ajuda e de reparações surtem efeito. Árabes e asiáticos parece que estão excluídos deste jogo.

Aplicá-lo a Cabo Verde, que não tem o passado colonial e de segregação racial desses países que poderiam justificar a existência ainda de atitudes racistas e manifestações de racismo estrutural, não faz qualquer sentido. Só se compreende se a realidade humana de Cabo Verde que, de uma determinada perspectiva, podia chamar-se de pós-racial é um elemento de perturbação para certas ideologias fixadas na raça e na luta racial. E para devolver o país a uma normalidade desejada é preciso desconstrui-la e racializá-la.

As consequências do extremar de posições em matérias de políticas identitárias em todo o mundo são hoje visíveis para todos. De facto, a afirmação de identidades distintas, em disputa permanente e incapazes de chegar a compromissos, tem contribuído para a polarização das sociedades, para o aumento na hostilidade aos imigrantes e para a ascensão de políticos e políticas radicais. Nos Estados Unidos da América foi um dos principais factores por trás da eleição de Donald Trump. Na Europa, o reforço em parte da posição da extrema-direita alimenta-se desse radicalismo que põe em causa valores universais. Daí a guinada brusca para o iliberalismo e a compressão dos direitos fundamentais, o enfraquecimento do Estado de Direito e a contestação da independência dos tribunais e o surgimento de oligarquias económico-financeiras próximas do poder político.

Não se deve esperar diferente em Cabo Verde se se continuar a prática de, sempre que a oportunidade se oferece, se recorrer à táctica de acusar o país e o povo de racista, de forçar uma escolha entre Europa e África, e de esgravatar o passado à procura de cumplicidades com o poder colonial. Corre-se o risco de enfraquecer a consciência da nação, de quebrar a unidade do país com ressentimentos forjados e de minar a democracia liberal com a perda de confiança de que os órgãos de soberania são representativos de todos. Em causa pode ficar o que distingue e constitui vantagem para o país que é o de ser uno, diverso, mas sem tensões raciais e com uma democracia estável.

Infelizmente, a tentação de se prosseguir com políticas identitárias potencialmente divisivas sem preocupação com as consequências é quase incontornável. Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974 e no processo de retirada das colónias, as ilhas de Cabo Verde foram praticamente entregues pelas autoridades portuguesas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que da Guiné, a cerca de 1000 quilómetros de distância, conduzia uma guerra de guerrilha e clamava pela independência do arquipélago. Aconteceu algo similar com as restantes colónias, mesmo com São Tomé e Príncipe em relação à qual não havia movimento armado a exigir a independência. Identificando-se como partido africano e promotor de uma unidade política com a Guiné-Bissau, o PAIGC logo no texto da proclamação da independência determinou “um destino africano” para Cabo Verde, sem que houvesse consulta popular num ambiente livre e plural. Aliás, assim como nas outras colónias e em nome do princípio de NÃO AO REFERENDO, não houve exercício do direito à autodeterminação.

Para um povo, que por mais de um século e em todas as ilhas já se reconhecia como cabo-verdiano, mesmo dentro do império português, com a sua língua, cultura, música e literatura, a imposição de uma identidade genérica (a África tem mais de 900 etnias e línguas) no quadro de uma ideologia pan-africanista em detrimento da sua não podia deixar de ser traumatizante. Também teria que provocar divisão no país entre, por um lado, os que aderiram ao novo regime, que logo se revelou totalitário e, portanto, agressivo e intolerante, e os outros. A tentação de considerar os resistentes à sua ideologia como saudosistas, europeístas ou luso-tropicalistas e pró-claridosos persiste até hoje, mesmo depois da “unidade Guiné e Cabo Verde” ter-se revelado um embuste para legitimar a implantação durante quinze anos de uma ditadura dos “melhores filhos do povo”.

Para criar fundamentação teórica para o destino africano recorreram aos escritos de António Carreira que, segundo o depoimento de Carlos Reis, ministro da Educação entre 1975/1980, para o livro de João Lopes Filho sobre esse autor, “a obra de António Carreira é aquela que mais fez para a produção e sistematização de elementos teóricos para uma possível unidade entre Guiné e Cabo Verde”. O historiador António Correia e Silva no mesmo livro diz que: “Em vez da história da cultura, das ideias e das atitudes (…) predomina em Carreira a história económica, mais concretamente a do tráfico de escravos”. Compreende-se assim por que, de acordo com Correia e Silva, a sua obra é “talvez a mais marcante para a conformação da moderna historiografia cabo-verdiana”. Ao fazer da “escravatura” e do “escravo” as chaves para se decifrar a história de cinco séculos de Cabo Verde, ficavam justificados a imposição do destino africano e o papel dos “libertadores”.

A postura cultivada de libertadores, porém, cede rapidamente para a de conquistadores, sempre que por qualquer razão acham que o país não lhes presta suficiente vassalagem. Aconteceu há poucos dias na sequência do início das comemorações dos 50 anos de independência. Acham que a celebração deve ser sobre o processo de independência e os seus dirigentes, processo esse que, como se sabe, impediu aos cabo-verdianos o exercício do direito à autodeterminação e impôs ao país uma ditadura de quinze anos na qual foram os principais protagonistas. Mas é evidente que em democracia, quando se celebra o dia do país, são os princípios e valores em que a comunidade nacional se revê que são fortalecidos, em particular o facto de a independência significar antes de tudo autodeterminação para escolher livremente os governantes, fazer as leis a serem acatadas por todos e decidir o rumo do país em eleições periódicas.

A comemoração da independência com esse sentido favorece a união e a solidariedade e renova a confiança no futuro. Mas se é luta política permanente que se pretende para conquistar o poder, vão continuar aí as questões identitárias, vai-se fustigar o país com acusações de racismo e até invocar a figura de Amílcar Cabral, sem preocupação com as consequências. A assunção de responsabilidade nunca foi um traço forte de quem procura o poder a todo o custo.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1222 de 30 de Abril de 2025.