A última sessão legislativa da actual legislatura inicia-se hoje 1 de Outubro sem que se vislumbre no horizonte próximo a resolução da situação dos órgãos externos ao parlamento. Eleitos em Abril de 2015 já ultrapassaram em mais de quatro anos os órgãos com mandatos de seis anos (Comissão Nacional de Eleições, Comissão de Protecção de Dados e a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social) e em um ano o Tribunal Constitucional no seu mandato de nove anos. O presidente da república numa comunicação recente ao país referiu-se à situação dizendo que uma das das consequências mais graves da falta de diálogo é a caducidade generalizada dos mandatos dos órgãos externos ao Parlamento. Da frase do PR, fica-se com a impressão que na origem do problema estaria a falta de diálogo e que o resultado dele persistir seria a caducidade, ou perda de validade dos mandatos.
Há aí duas questões que podem imediatamente colocar-se: primeiro, para a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional são imprescindíveis votos dos dois maiores partidos para perfazer os dois terços dos votos exigidos pela Constituição. Nestas circunstâncias, a atitude das partes pode ser dialogar até chegar a acordo, tendo em vista o bem maior de dotar o país de órgãos constitucionais importantes para a regulação do jogo democrático, ou obstaculizar para conseguir ganhos políticos partidários de curto prazo, mesmo à custa do desprestígio do parlamento e dos deputados e do descrédito da democracia. Um olhar retrospectivo das eleições dos órgãos externos pode facilmente verificar que neste século até 2016 chegava-se a acordo para as realizar, como aconteceu em 2001, 2008, 2011, 2014 e 2015.
A partir daí parece que os problemas se amontoaram, apontando para a obstaculização do processo. Só em 2020, três anos depois do fim do mandato, se conseguiu eleger um novo Provedor da Justiça. Em 2023, quase 8 anos depois, foram eleitos novos membros para os conselhos superiores dos órgãos do poder judicial. A particularidade de, no caso dos conselhos, os partidos proporem dois membros cada um e, no caso do provedor, de a personalidade vir, por acordo tácito, de sectores próximos da oposição, terá propiciado, mesmo com grande atraso, as eleições. Para os outros órgãos isso tem sido praticamente impossível. Tudo indica que não se trata simplesmente de falta de diálogo, mas de algo mais que não prevaleceu nos 15 anos de governo do PAICV, mas que depois de 2016 tende a estabelecer-se como prática reiterada. E é evidente que, quando há a percepção de que as instituições não funcionam, a culpa recai fundamentalmente sobre quem está a governar, e não sobre quem escolhe ser força de bloqueio num acto que só pode ser realizado a “duas mãos”.
Uma segunda questão é a da caducidade dos mandatos, uma expressão que aparentemente o PR prefere para se referir ao termo ou ao expirar dos mandatos. Podem ter significado similar, mas num caso a enfase está na validade do mandato e no outro salienta a natureza temporária do mandato. Para o constitucionalista português Vital Moreira “por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções para além do termo do mandato, enquanto não for substituído”. Acrescenta ainda que “a prorogatio (prorrogação) de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida”. Insistir que estão caducados os mandatos de cargos públicos que chegaram ao termo, mas ainda não foram substituídos os titulares, claramente não contribui para o normal funcionamento das instituições.
Curiosamente, considerando os insistentes apelos do PR, a problemática dos mandatos “caducados” não se coloca somente para os cargos eleitos pelo parlamento. Também abrange os cargos que resultam da nomeação do presidente da república sob proposta do governo como são os do tribunal de contas, do procurador-geral da república, do chefe de estado maior das forças armadas e os cargos de embaixador. A diferença aqui é que não se trata de interacção política entre dois partidos políticos com visões alternativas da governação e que submeteram ao escrutínio do povo, obrigando-se o ganhador e os vencidos nas eleições a chegar a acordo em certas matérias específicas. Trata-se de dois órgãos de soberania em que de um lado está o PR, que não governa, mas representa interna e externamente a república e vela pelo normal funcionamento das instituições, e do outro, fica o governo, que tem constitucionalmente a direcção da política interna e externa do país e não é responsável politicamente perante o presidente da república.
Com este entendimento não se pode esperar que o processo de nomeação seja enviesado a favor do PR, como pretendem alguns, e seja ele a escolher e a nomear quando, por imposição constitucional, deve nomear mas sob proposta do governo. De facto, se falhas futuramente vierem a ser apontadas aos nomeados para esses cargos no exercício das suas competências, não é responsabilizado o PR, mas sim o governo que, a qualquer momento pode ser questionado no parlamento e confrontado pelos órgãos de comunicação social e pelos cidadãos. Por isso, introduzir viés no processo de nomeação em contramão com o princípio da separação dos poderes só pode levar a tensões desnecessárias, beliscando o sentido da unidade da nação e do Estado, essencial para o normal funcionamento das instituições.
Agrava-se a situação não ultrapassando os bloqueios e ao mesmo tempo insistir em discursos públicos que os cargos actuais estão caducados enquanto o procurador-geral da república refere-se aos órgãos já com mandatos expirados para os quais seria bom que houvesse consenso. A verdade é que em quase 35 anos de democracia nunca se viu situação semelhante mesmo quando os primeiros-ministros e os presidentes da república originariamente vinham de quadrantes políticos diferentes. Provavelmente a variação na interpretação dos poderes presidenciais e na firmeza das opções políticas do governo de alguma forma equilibravam-se. Não é como aparentemente estará a acontecer agora com algum deslizar para os extremos com excesso de protagonismo de uma parte e falta de firmeza institucional de outra parte.
Fugindo ao expectável em matéria de separação dos poderes só pode resultar no que se constata hoje em que cargos ficam por ser nomeados com prejuízo evidente para o país e para a credibilidade do sistema democrático. Complica ainda mais o quadro actual o facto de que é ao governo que se atribuí toda a responsabilidade. Às tantas, com as eleições legislativas e presidenciais no próximo ano e o futuro do país em jogo, não é de estranhar que, apesar dos apelos insistentes para se ultrapassar a situação, não haja quem queira ganhar com a projecção da imagem de um país a deslizar para o caos.
Serenidade de todos é preciso e mais do que falar em diálogo e consensos o foco deve estar em cumprir e fazer cumprir as regras do jogo e seguir à risca os procedimentos democráticos. Sem essa aderência ao que é essencial, o discurso político rapidamente degenera por si mesmo, marcado pelo cinismo e a hipocrisia.
No processo, como se vem assistindo em vários países a uma velocidade estonteante, descredibiliza-se a democracia e abre-se o caminho ao populismo que promove medidas iliberais de supressão de direitos em nome do esforço para restaurar a ordem e distribuir rendimentos. Não é certamente o futuro que se quer. Impõe-se por isso ultrapassar este impasse, controlando egos, aprofundando o sentido de pertença e combatendo o estado permanente de insatisfação, com solidariedade para com os outros.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1244 de 01 de Outubro de 2025.
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