Actualmente ninguém tem dúvida que os ventos da história não estão a soprar a favor do progresso geral como até recentemente se acreditava. Desde a segunda guerra mundial e da ordem económica liberal, que foi então criada, e particularmente depois da guerra fria e da derrocada da utopia comunista, instalou-se um optimismo em relação ao futuro da humanidade que agora dá sinais de soçobrar. Suportado sobre os princípios da dignidade humana e do respeito pelos direitos fundamentais e pelo primado da lei, as portas pareciam ter sido abertas para o crescimento económico e prosperidade geral que a globalização e o multilateralismo colocariam ao alcance de todos. Infelizmente, o mundo mudou, a ordem existente cede a olhos vistos face à emergência de um mundo multipolar marcado por conflitos geopolíticos e relações transacionais, criando na sua esteira incertezas várias que já não permitem que se espere sempre “mais e melhor”.
Para o sociólogo alemão Andreas Reckwitz os tempos de hoje trouxeram de volta a sensação de perda. Para trás vão ficando expectativas de elevação dos padrões de vida e de expansão da autorrealização. No seu livro “O fim das ilusões” escreve o autor que com as incertezas não há garantia que as perdas sejam episódios transitórios e que até podem ser irreversíveis. E é essa percepção que torna um número crescente de pessoas nas democracias sensíveis ao populismo que quer regressar aos tempos áureos do passado ou que apela ao resgate do poder das mãos da elite. Adverte, entretanto, que o populismo canaliza a raiva sobre o que desapareceu, mas fornece apenas ilusões de recuperação.
Perante o panorama mundial a desenhar-se cujos contornos a vários níveis ainda não se pode fixar, sabe-se, porém, que irá alterar cadeias de valor e de abastecimento mundial com impacto em particular nos países mais frágeis. Também irá diminuir a importância das organizações multilaterais limitando o acesso a investimentos cruciais para o desenvolvimento e cristalizar novas relações de dependência e subordinação à volta dos eixos do mundo multipolar emergente. Provavelmente solavancos políticos e socio-económicos far-se-ão sentir em vários países à medida que vão-se adaptando às novas circunstâncias.
Muitos ainda ficarão vulneráveis às alterações climáticas cuja mitigação dos seus efeitos irá sofrer com a falta de coordenação global e de engajamento das maiores potências mundiais. Um outro factor disruptivo de grande alcance será o impacto da inteligência artificial (IA) na economia. Pelos enormes investimentos dirigidos para o sector e pelo comportamento das bolsas de valores em todo o mundo vê-se que expectativa é de aumentos rápidos de produtividade para quem dominar a tecnologia. Algo que certamente irá agravar ainda mais a desigualdade dentro dos Estados e entre os Estados. Também, ao levar eventualmente a mais desemprego e a menos rendimento poderá aprofundar o sentimento nas pessoas que o contrato social da democracia de justa distribuição da riqueza nacional não está a ser cumprido. O aumento das desigualdades não deixará de aumentar a pressão migratória global nem de, no interior dos países, afectar negativamente as minorias, em particular as imigradas.
Para Andreas Reckwitz, os desafios da nova situação vão exigir três Rs: Resiliência, Reavaliação e Redistribuição. Pela resiliência quer-se fortalecer as sociedades (saúde, segurança, instituições da democracia liberal, para que sejam menos vulneráveis a eventos negativos. Pela reavalização quer-se procurar, com espírito inovador, conhecimento e iniciativa, transformar em possibilidade de fazer diferente ou em vantagem o que se perdeu, ou se foi forçado a deixar para trás, por causa de mudanças tecnológicas, climáticas ou mesmo de costumes. Pela redistribuição quer-se mostrar a preocupação em garantir que ninguém ou grupo social fique mais prejudicado quando há perdas, nem que deixe de beneficiar dos ganhos obtidos com o melhor desempenho nas novas circunstâncias.
O problema é como encarar esses desafios quando ainda se vive com a mentalidade de um mundo criado há oitenta anos, mas que está a tornar-se irreconhecível à medida que os dias passam. Os partidos tradicionais querem continuar a fazer o mais do mesmo extrapolando nas promessas de “mais e melhor” sem a devida atenção pelas dificuldades crescentes em as cumprir. As pessoas querem tudo e agora num mundo de conectividade até pouco tempo inimaginável, em que as expectativas aumentaram extraordinariamente, não parece haver limite para o que é reivindicado. As forças políticas emergentes de carácter populista, alimentando-se das frustrações, desilusões e ressentimento que o choque das promessas e das expectativas com a realidade, focam-se na descredibilização das instituições, nos ataques aos políticos e à política e no bloqueio do diálogo democrático.
Na política actualmente transformada em entretenimento, com insultos gratuitos aos adversários políticos, com bullying, com actos extravagantes e com acusações de corrupção, há cada vez menos diálogo e mais actos performativos dos políticos. O impulso maior para isso vem da política populista, mas conta também com muita ajuda dos partidos tradicionais e seus políticos e ainda de outros políticos considerados apartidários ou independentes. No espectáculo que é montado, todos querem ser protagonistas e aparecer. Fala-se muito na necessidade de diálogo, mas muito pouco em cumprir as regras do jogo democrático. A cacofonia que se cria no espaço público não contribui para se perceber que há uma ordem democrática e que não há vazio na autoridade do Estado. Gratuitamente mina-se a confiança e se reforça a atracção do populismo que se revê no culto do chefe.
Há, pois, que ultrapassar a actual situação para que o país possa debruçar sobre os problemas complexos que se colocam no mundo e adaptar-se com os três R de Reickwitz: resiliência, reavaliação e redistribuição para enfrentar os desafios de vária natureza que certamente encontrará à frente. A vitalidade do regime democrático que provém do exercício da liberdade num quadro legal igualmente respeitado e aceite por todos já provou que estará à altura. Afinal, foi com a democracia que o desenvolvimento realmente despontou. Não é de se cair em tentações populistas autocráticas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025.
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