quarta-feira, agosto 31, 2011

Recordar o 31 de Agosto de 1981 - Uma questão de dignidade e justiça

Há trinta anos, no dia 31 de Agosto de 1981, centenas de pessoas marcharam na Ribeira Grande, S. Antão contra a reforma agrária de um governo sem legitimidade democrática. Foram recebidas com disparos da tropa e do embate resultou um morto. Seguiram-se prisões, torturas e julgamento em tribunal militar de civis que simplesmente queriam exercer direitos que hoje todos os caboverdianos tomam como garantidos: liberdade de expressão, liberdade de reunião e de manifestação. Foi-lhes negado o direito à vida, à liberdade e a serem julgados por tribunais independentes. Não eram cidadãos do seu próprio país. Quando se revoltaram viram-se à mercê de um Estado todo-poderoso que podia agir sem os constrangimentos da Lei e da Moral.

A luta pela cidadania teve que esperar longos anos. A seguir ao 31 de Agosto a opressão aumentou. O efeito sentiu-se nas eleições de 1985. Foi precisamente nas localidades em S. Antão mais sofridas que o então partido-estado recebeu 96% dos votos, uma taxa superior à média nacional de 94%. Mas o espírito não morreu e assim que as pessoas vislumbraram uma fresta no edifício do Poder desferiram um golpe demolidor. O PAICV não conseguiu eleger um deputado em S. Antão nas eleições pluripartidárias de 13 de Janeiro de 1991. A energia então libertada foi a mesma que iria motivar a adopção da Constituição de 1992 onde os direitos de cidadania de todos os caboverdianos no território nacional e na diáspora ficaram consagrados para a posteridade.

Factos recentes mostram que ainda existem entraves ao exercício pleno da cidadania. O envolvimento ostensivo do Primeiro-ministro, membros do governo e altos dirigentes da Administração e de institutos e empresas públicas na campanha pelo cargo suprapartidário de presidente da república chocou muitos na sua dignidade de cidadãos. A violência das acusações lançadas contra adversários políticos fez renascer o medo e relembrou actuações políticas causadoras de muito sofrimento. As ameaças vindas de altos dirigentes de demitir ou forçar renúncia de cargos de correligionários que dissentiram em matéria presidencial revelam a intolerância institucionalizada contra manifestações de pluralismo.

Cabo Verde continua susceptível a práticas antidemocráticas. Diferentemente de outras sociedades que fizeram a transição para a democracia não desenvolveu certas imunidades. Olha para o lado quando se manipulam politicamente crianças e jovens. Cala-se perante a flagrante partidarização da administração pública. Tolera que se explore relações de dependência do Estado para extrair votos. Já ninguém consegue 90% dos votos mas eleições ganham-se às vezes por diferenças providenciais.

Assim é porque se politiza o passado. Aceita-se normalmente o expediente politiqueiro de trazer matérias do passado para o debate político em resposta a acções de fiscalização e responsabilização do governo. Partidarizam-se datas e acontecimentos históricos. O ambiente polarizado que daí resulta desmotiva a participação dos cidadãos, prejudica a discussão do presente e do futuro do país e impede a nação de adquirir as defesas contra tentações antidemocráticas.

Neste trigésimo aniversário, recordar o 31 de Agosto não é matéria de despique político. É uma questão de dignidade e justiça. A evocação dos sacrifícios de outrora deve ser motivo para unir a nação na condenação da arbitrariedade e da prepotência e na valorização do núcleo de direitos que faz de cada caboverdiano um cidadão livre no seu país.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 31 de Agosto de 2011

sexta-feira, agosto 26, 2011

Cidadania vence

Jorge Carlos Fonseca vence na 2ª volta as eleições presidenciais de 2011 com uma margem sobre o adversário de mais de 15 mil votos. A vitória de JCF contrariou sondagens sucessivas feitas nos últimos meses que previam que no caso de passar à segunda volta dificilmente conseguiria bater qualquer dos outros dois candidatos. A renovação do espírito de cidadania verificado nestas eleições certamente teve um papel na alteração do ambiente político inicial. E o inesperado aconteceu para júbilo e alívio de muitos.

O protagonismo excessivo do Governo e do Estado provocou um súbito despertar cívico. Os métodos utilizados em granjear influência política com o objectivo de atingir objectivos eleitorais fizeram soar os alarmes. Falou-se em compra de votos, em manipulação de consciências e em ameaças de perda de trabalho e de demissão de cargos. Viu-se por todo o lado a presença forte de membros do governo, de altos funcionários e de dirigentes de empresas e institutos públicos em campanha eleitoral a favor do candidato de preferência do partido no Governo. E o surpreendente colapso nas urnas da candidatura de Aristides Lima veio relembrar a eficácia dos métodos do Poder em fazer valer a sua vontade particularmente junto dos mais vulneráveis.

A reacção popular à visível arrogância do Governo sentiu-se na segunda volta. O número de votantes aumentou em quase 20 000 e tudo indica que massivamente escolheram JCF. Uma parcela importante dos outros candidatos também se juntou a JCF em protesto contra a utilização de recursos e da autoridade do Estado numa eleição suprapartidária.

O impulso recebido por esta vaga de cidadania reforça extraordinariamente o mandato de quem já tinha proclamado que o seu caderno de encargos é a Constituição. De facto, os cidadãos caboverdianos mostraram-se nestas eleições revoltados contra o uso abusivo do poder do Estado para forçar lealdades e punir adversários políticos. Mostraram-se também indignados contra a injustiça de obrigar as pessoas vulneráveis a dar votos e apoio político em troca do que recebem do Estado e de outras entidades subsidiadas por fundos públicos. Ao terceiro presidente da II República caberá velar para que Cabo Verde continue a ser uma “república de cidadãos livres” e não de cidadãos de segunda classe como nos regimes de partido-Estado.

A percepção geral dos vinte anos da II República é que o exercício do cargo do PR não tem sido pleno no sentido de fornecer checks and balances ao sistema, de contribuir para que todos os actores se revejam no regime constitucional vigente e de ser uma força motriz e orientadora do desenvolvimento e aprofundamento institucional necessário à consolidação da democracia. Há que dar um outro conteúdo à actuação do PR, mais conforme com as exigências constitucionais. Espera-se pois do presidente eleito um novo e mais activo protagonismo no equilíbrio do sistema democrático, no aprofundamento da institucionalização do país e no desenvolvimento de uma cultura de Constituição e de respeito pelas leis.

Editorial do jornal Expresso das ilhas de 24 de Agosto de 2011

sexta-feira, agosto 19, 2011

Evitar derrapagem nas instituições

Na sequência da primeira volta das eleições presidenciais ruiu o muro de silêncio à volta do processo eleitoral em Cabo Verde. Finalmente fizeram-se ouvir as vozes que denunciavam compra de votos, manipulação de consciências e uso indevido de recursos do Estado. Testemunhos de destacados militantes do partido no governo, constatações de observadores internacionais e a indignação de muitos cidadãos convergiram em apontar que algo vai mal no seio das instituições do Estado democrático.

Há muito que se vêm manifestando sinais de erosão das instituições. O governo ignorou manifestações de má governação enquanto procurava aproveitar-se politicamente da relativa boa imagem do país no estrangeiro. Tardou em reconhecer que a sistemática fuga dos dirigentes à responsabilidade, a partidarização da função pública e a negação da meritocracia acabaria por ter um efeito nocivo tanto na sociedade como no Estado.

A existência agora revelada de compra de votos ou de um “mercado de votos”mostra como a sociedade vem sendo roubada da sua autonomia e minada pela criação de redes de dependência. Em vez de sociedade civil autónoma, há uma sociedade onde pontificam grupos, associações e redes sociais alimentados por fundos do Estado. Precisamente o que Hillary Clinton denunciou em Julho de 2010 na Cracóvia: “democracias em que governantes esforçam-se por criar a sua sociedade civil, uma colecção de ONGs, associações comunitárias, organizações juvenis, etc., dependentes em recursos e instrumentos de uma agenda maior de controlo social”.

As transferências feitas a municípios e associações nas vésperas das eleições, confirmadas na semana passada por dirigentes do partido no Governo, indiciam métodos utilizados. Chegar às pessoas via câmaras nos municípios onde o poder é da mesma cor partidária do governo e via associações nas câmaras de oposição, em violação do princípio da imparcialidade e de isenção no tratamento dos cidadãos e de não favorecimento em virtude de opções político-partidárias. Com isso perde-se o sentido do interesse público, substituído pelo interesse do partido, e as instituições e a cidadania são enfraquecidas.

A fragilidade das instituições torna-se cada vez mais notória seja em lidar com situações novas seja ainda em potenciar o conhecimento, a energia e criatividade dos seus novos quadros. A administração pública não se torna mais competente, o fornecimento de bens públicos como água e electricidade não inspiram confiança, a Justiça é morosa, a polícia não é mais eficiente e a qualidade tarda a chegar às escolas e universidades. As próprias Forças Armadas dão sinais complicados. O ataque sem qualificação dirigido ao Major Adriano Pires pelo Gabinete do Chefe de Estado Maio das Forças Armadas no jornal “A Nação” é um exemplo disso.

Problemática também se revela a inacção e o silêncio dos órgãos da direcção do Estado. Ainda não há, por exemplo, reacção da parte da procuradoria-geral da república perante acusações de compra de votos. O governo não justifica transferências vultuosas de fundos para particulares nas vésperas de eleições, em violação do código eleitoral. E os órgãos de soberania não se pronunciam face ao insólito da resposta do comando das Forças Armadas às críticas de um cidadão.

No actual contexto as eleições presidências do próximo domingo dia 21 ganham uma outra importância e pertinência. Urge evitar derivas das instituições que as afastem da realização do interesse público. O presidente da república tem umpapel essencial em assegurar-se da conformidade do funcionamento das instituições com os princípios constitucionais para que as práticas de boa governança sejam adoptadas, para que não haja discriminação e para que todos os cidadãos se sintam livres na escolha dos governantes.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Agosto de 2011

quinta-feira, agosto 11, 2011

Exorcizar o MEDO para ganhar o futuro

Em mensagem dirigida à nação na véspera das eleições de 7 de Agosto o Presidente da República veio relembrar os caboverdianos que “a livre escolha do eleitor é o princípio básico para a expressão verdadeira da vontade popular”. O PR mostrava a sua preocupação com as denúncias públicas de compra de votos, compra de consciências e abusos de poder provenientes das diferentes candidaturas. A condenação pelo PR de “quaisquer formas de pressão ou condicionalismos extra-eleitorais” deixou campo livre para um confronto sem subterfúgio com essa doença da democracia caboverdiana que os observadores da CEDEAO chamaram de “manipulação de consciência”.

Aberta a caixa de Pandora, candidatos, líderes políticos, cidadãos comuns apressaram-se a revelar casos suspeitos de pressão sobre os eleitores. O próprio Primeiro-ministro teve que se render ao engrossar das denúncias e a referir-se explicitamente à necessidade de intervenção de “autoridades judiciais” para se apurar a verdade dos factos. Pela primeira vez a Nação enfrentava a questão da compra de votos, várias vezes levantada em outros pleitos eleitorais, sem que tal fosse desconsiderada como manifestação de “dor de cotovelo” de perdedores.

No processo constatou-se que há medo na sociedade caboverdiana: medo de perder o ganha-pão, medo de ser preterido no trabalho e medo de ver passar ao lado possibilidades de carreira e de nomeação para cargos. A atitude de Aristides Lima em levar à frente a candidatura presidencial não obstante as preferências do seu partido inspirou outros a se libertarem do medo e em denunciar práticas de violação de direitos por razões políticas e eleitorais.

Quis-se saber se um militante de partido é ou não livre de se candidatar para um cargo suprapartidário, de apoiar quem candidate e mesmo de votar no candidato da sua escolha. A partir daí estava lançada a busca de outras amarras que condicionam a capacidade de escolha do eleitor caboverdiano. Pergunta-se se a dependência de serviços sociais, relações de trabalho e mesmo dívidas de gratidão estarão a ser utilizadas para fazer o cidadão dobrar-se e legitimar com seu voto o poder de alguns.

O medo amplifica a sensação de precariedade de existência. Faz as pessoas receosas do futuro e presas fáceis de anúncios demagógicos de grandes perigos em caso de mudança. As eleições caboverdianas têm sido marcadas por factos bombásticos especialmente fabricados para explorar o medo do amanhã. Na última campanha viu-se como se trouxe à baila suspeições sobre a morte de Cabral. Já quase no fim ergueu-se o espectro de uma conjura de personalidades de várias proveniências políticas e partidárias para, pela via uma eleição suprapartidária, derrubar um governo maioritário. Noutras ocasiões usaram-se tácticas similares como acusações de ligação a narcotraficantes, sabotagem na Electra e perda de credibilidade externa para pressionar o voto num determinado sentido.

Mantém-se o clima de medo partidarizando tudo, até mesmo eleições suprapartidárias, e concentrando o essencial do discurso político sobre disputas do passado. Todos ficam apanhados e em consequência, o futuro passa ao lado. Já dizia Churchillque não devemos deixar as nossas discussões sobre o passado dominar o presente porque assim perdemos o futuro”.

É tempo de acabar com esse estado de coisas. A 2ª volta das presidenciais é uma oportunidade única dos cidadãos fazerem o medo dissolver no ar. Basta ir às urnas sem as grilhetas da filiação partidária e condicionalismos outros e escolher quem pelo seu carácter, percurso e fidelidade aos princípios e valores constitucionais melhor se posiciona para defender direitos e regras do jogo democrático. Basta dar o voto livre a quem mais confiança poderá transmitir à nação nas duras lutas de adaptação às incontornáveis mudanças que se verificam no mundo. Cabo Verde precisa que os seus filhos não receiem o futuro e ponham toda a sua energia e criatividade em construir, na Liberdade, a prosperidade para todos.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 10 de Agosto de 2011

sexta-feira, agosto 05, 2011

Travões precisam-se

Diz o Lord Acton que o Poder corrompe e que o Poder absoluto corrompe absolutamente. Governos por longos períodos e pela mesma força política tendem a tornar-se cada vez mais arrogantes e mais autistas. Os 5 meses do 3º mandato do PAICV confirmam a tendência. Especialmente revelador de futuros excessos tem sido a forma como a liderança do partido no governo trata colegas do partido apoiantes de uma alternativa da mesma família política nas presidenciais.

A dureza de tratamento é sintomático do quão importante se tornou ter um presidente da república “em sintonia com a liderança do partido”. Nunca antes no Cabo Verde democrático o líder partidário no governo foi tão ostensivo em impor o seu candidato a presidente da república. Até parece que há um novo entendimento do exercício do cargo. Quer-se provavelmente cooperação e sintonia com objectivos partidários, quando o que a Constituição estabelece é que o Presidente não governa e seja árbitro e moderador do sistema.

Usar os recursos e autoridade do Estado para fazer prevalecer uma visão contrária do Presidente da República prejudica o candidato e quase que o desqualifica aos olhos dos eleitores, porque o faz refém de interesses que em consciência não pode satisfazer enquanto PR. Com tais actos perde-se mais em perturbar o sistema político do que presumivelmente podia-se ganhar em estabilidade governativa. Estabilidade, quem de facto a garante é a maioria no parlamento. O PR só tem margem para interferências nos casos em que o suporte parlamentar já foi comprometido e há impasse nas instituições.

Ter-se um PR algo diminuído no seu papel de guardião da Constituição fragiliza a democracia particularmente quando é notório o enfraquecimento da Assembleia Nacional enquanto centro do contraditório e viveiro de propostas alternativas para o país. No último debate sobre o Estado da Nação, o Primeiro Ministro apresentou a sua verdade como sendo nem “rosa nem negra”. Eventuais críticas só podiam vir de detractores brandindo as suas análises negras da realidade do país. Com o debate ferido de morte, ninguém se surpreendeu quando no discurso do fecho disse que das ideias da Oposição, umas deviam-lhe direitos de autor e outras simplesmente não serviam.

A Nação entretanto não ficou esclarecida. A questão do fornecimento de energia e água que todos os dias prejudica as pessoas e atrasa o país ficou por responder. O governo não transmitiu confiança que irá lidar resolutamente com os problemas que enfermam a polícia e diminuem a sua capacidade de confrontar os desafios actuais e futuros de segurança. Ficou-se por saber como foi o ano escolar e qual o retorno em aproveitamento, qualidade e empregabilidade dos extraordinários investimentos e sacrifícios que indivíduos, famílias e o Estado fazem no sistema de ensino. O regozijo algo deslocado pela “performance” do país em tempo de crise não deixou espaço para inventariar opções e preparar a Nação, agora país de rendimento médio, para o mundo pós-crise.

Governar em democracia passa por criar uma vontade política colectiva que se revê em princípios, ideias e objectivos. Isso constrói-se com verdade, honestidade e transparência na acção. Não com máquinas de propaganda e procurando enredar as pessoas, particularmente as vulneráveis, em relações de dependência que diminuem a sua condição de cidadão. Particularmente preocupantes nos últimos dias têm sido as denúncias vindas de todos os quadrantes políticos do inquinamento do processo eleitoral através de compra de consciências, compra de votos, medo de perda de emprego e ameaças de demissão de cargos públicos.

Por tudo isso, a eleição do Presidente da República no próximo domingo, dia 7 de Agosto, tem uma importância acrescida. É também uma forma de pôr um STOP à corrida desenfreada para a concentração do Poder num grupo partidário cujos excessos são hoje evidentes para todos. O acto desnecessário de acabar com o programa Visão Global é ilustrativo do que acontece quando se cai na tentação do poder absoluto. Travões precisam-se.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 3 de Agosto de 2011