segunda-feira, março 12, 2018

“Virar-se para dentro” não é solução

As alterações nas taxas aduaneiras de produtos como água engarrafada, sumos, leite e lacticínios aprovadas na lei do Orçamento do Estado para o ano 2018 têm sido desde de 1º de Janeiro matéria de intensa discussão no parlamento, na comunicação social e na sociedade. Por um lado, discute-se a sua pertinência e eficácia no quadro das políticas de apoio às indústrias nacionais.
 Por outro, questiona-se se o timing escolhido para a sua apresentação e aprovação foi intencional para privilegiar interesses perfeitamente iden-tificáveis e se é legítimo fazer isso mesmo na ausência de potenciais conflitos de interesses. O assunto é particularmente delicado porque, à partida, sabe-se que os consumidores vão perder com os preços elevados dos produtos habituais e não há certezas que serão compensados pelos novos produtos tanto no custo como na qualidade.
Apoio tarifário de governos à indústria nacional sempre foi rodeado de controvérsia em todos os países. Tende a privilegiar uns e a prejudicar outros e a afectar negativamente o comércio internacional. Com as quebras no volume de trocas todos os países acabam por arcar com as consequências, seja na diminuição da capacidade de criação de riqueza, no número de empregos e nos preços pagos pelos consumidores. Um exemplo recente é o anúncio feito pelo presidente Trump de aumentar as tarifas para o aço e o alumínio importados e que foi logo seguido de uma avalanche de reacções. A medida, pelas suas eventuais consequências, designadamente no valor do dólar, na taxa de juro e no custo de produtos estrangeiros incorporados impacto nas exportações, não reúne consenso e é altamente contestada em certos círculos. Não espanta que iniciativas do género sejam vistas com desconfiança e se procure activamente investigar se resultam de lobbies, se são actos de favorecimento de grupos económicos ou de indivíduos ou se são produto de políticas bem-intencionadas dos governos. A percepção que se tem é que os efeitos são globalmente negativos, mesmo quando a curto prazo apresentem sinais positivos em matéria de emprego, de diminuição do défice da balança comercial e de aumento das receitas alfandegárias.
Décadas atrás a protecção das indústrias nacionais pela via de barreiras tarifárias em países como o Brasil, Argentina e vários outros da América Latina foi uma peça fundamental do chamado modelo de desenvolvimento com base na substituição de importações. Em retrospectiva constata-se que perderam anos de desenvolvimento a procurar industrializarem-se seguindo esse modelo. Já os países do Sudeste asiático, os chamados Tigres da Ásia, as Maurícias e posteriormente a China, com uma opção oposta, rapidamente atingiram patamares de desenvolvimento elevados ao mesmo tempo que desenvolviam um sector privado nacional forte, orientando a sua economia para exportação. Assim, enquanto uns se fechavam no mercado interno, sacrificando a criação de emprego, o poder de compra dos consumidores e a produtividade do país, outros esforçaram-se por atrair investimento externo, por incentivar as empresas a se tornarem competitivas e por dar boa qualificação à mão-de-obra nacional com o objectivo de conquistar mercados externos e de assegurar níveis elevados de emprego e aumento sustentado de rendimento das pessoas. Até recentemente pensava-se que as medidas proteccionistas preconizadas por esse modelo estariam completamente desacreditadas mas algo mudou após a crise financeira de 2008. Com a globalização a ser posta novamente em causa e com a progressiva ansiedade nos países desenvolvidos quanto à capacidade futura de criar empregos, assiste-se hoje a tentativas de recuperação de políticas proteccionistas que conjuntamente com as dirigidas contra a imigração supostamente estancariam a hemorragia de empregos em direcção aos países emergentes.
Em Cabo Verde foi seguida durante vários anos a via de desenvolvimento com base na substituição de importações. Era parte do pacote económico do regime de partido único. Teve consequências desastrosas. Muito do comércio informal que ainda existe nas confecções e calçado deve-se à protecção em forma de tarifas que se criaram na época para proteger as fábricas Morabeza e Socal. Também é evidente que da experiência não resultou qualquer sector privado com capacidade e motivação para se lançar na conquista de mercados externos nem dinâmica económica para ultrapassar a estagnação económica dos últimos anos do regime. Em meados de 1988 já era evidente para o governo do PAICV que o modelo tinha falhado completamente e que se impunha fazer uma “extroversão da economia cabo-verdiana”e ligar o desenvolvimento industrial à possibilidade de exportar. Em 1990, quando o MpD emergiu como força política foi peremptório em afirmar a sua ruptura completa com a tradicional política de industrialização pela via de substituição de importações.
Face à experiência vivida, estranha que mais de 25 anos depois reapareça uma espécie de unanimismo das forças políticas em matéria de protecção da indústria nacional pela via de tarifas e que se volte a pôr na ordem do dia as velhas políticas de substituição de importações. A votação quase unânime do artigo 27º da lei do Orçamento de Estado para 2018 que alterou a pauta aduaneira nos sumos, lacticínios e água engarrafada, não obstante as objecções essencialmente éticas que surgiram posteriormente, poderá estar a indiciar a presença de um sentimento de “virar-se para dentro” que estaria a manifestar-se tanto no seio da classe política como na sociedade cabo-verdiana. Um sentimento marcado por elemento identitário que, a exemplo do que se passa em outras paragens estaria a afectar a actuação política e outras interacções na esfera pública, e nem sempre de forma positiva. A política crispada, o foco na capacidade redistributiva do Estado e certa forma de ver a regionalização a par com sentimentos de hostilidade em relação ao turismo e à aproximação económica com a Europa seriam algumas das suas manifestações.
A verdade, porém, é que Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de se virar mais uma vez para dentro. Como bem se sabe da experiência anterior, tal opção não beneficia a indústria nacional, não põe de pé um sector privado dinâmico e não assegura o desenvolvimento que todos almejam.
                                                                                                                              

Face à experiência vivida, estranha que mais de 25 anos depois reapareça uma espécie de unanimismo das forças políticas em matéria de protecção da indústria nacional pela via de tarifas e que se volte a pôr na ordem do dia as velhas políticas de substituição de importações. A votação quase unânime do artigo 27º da lei do Orçamento de Estado para 2018 que alterou a pauta aduaneira nos sumos, lacticínios e água engarrafada, não obstante as objecções essencialmente éticas que surgiram posteriormente, poderá estar a indiciar a presença de um sentimento de “virar-se para dentro” que estaria a manifestar-se tanto no seio da classe política como na sociedade cabo-verdiana. Um sentimento marcado por elemento identitário que, a exemplo do que se passa em outras paragens estaria a afectar a actuação política e outras interacções na esfera pública, e nem sempre de forma positiva. A política crispada, o foco na capacidade redistributiva do Estado e certa forma de ver a regionalização a par com sentimentos de hostilidade em relação ao turismo e à aproximação económica com a Europa seriam algumas das suas manifestações.
A verdade, porém, é que Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de se virar mais uma vez para dentro. Como bem se sabe da experiência anterior, tal opção não beneficia a indústria nacional, não põe de pé um sector privado dinâmico e não assegura o desenvolvimento que todos almejam.
                                                                                                                                 Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 849 de 07 de Março de 2018.

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