Desde primórdios da democracia que a crispação
política sempre caracterizou a cena política cabo-verdiana. É uma
crispação às vezes mais feroz e outras vezes com mais ou menos picardias
pelo meio aumentando e diminuindo de intensidade um pouco ao sabor dos
ciclos eleitorais. De tempos em tempo sobe anormalmente de tom devido a
algum facto político mais fracturante para, logo de seguida, descer para
os níveis de guerrilha habitual entre as forças políticas.
O estado de crispação que se vive
de há quase dois meses para cá destoa em vários aspectos do já conhecido. Além
de durar mais e de ser de intensidade
anormal aponta directamente para alvos a abater. Perante o insólito da situação
fica-se com a impressão de que o tom mais agressivo no embate político poderá
dever-se à quebra de algum acordo tácito entre os partidos quanto aos limites a
não ultrapassar na luta política.
O
ponto de partida nesta última reedição da crispação política terá sido a
autorização para um deputado do PAICV ser ouvido como testemunha e a promessa
da maioria parlamentar em rever os termos de levantamento de imunidade a deputados
para responderem a processos judiciais. Independentemente das razões, o facto é
que a partir da sessão do parlamento de Janeiro último tudo passou a ser
pretexto para demonstrar que a outra parte na luta política está imersa
profundamente na corrupção. Foram trazidos à baila as inspecções feitas a
câmaras municipais e a outras instituições, consensos à volta da alteração de
taxas aduaneiras foram rompidos e a TACV, em sede da comissão de inquérito
parlamentar, foi alvo de escrutínio mais apertado à procura dos milhões
supostamente omissos provenientes da vendas de aeronaves. Ao mesmo tempo
procurou-se focalizar a atenção sobre a relação de Olavo Correia com a Tecnicil
e possíveis conflitos de interesse que poderão surgir da relação entre o actual
titular do cargo de ministro das Finanças e a empresa que no passado
administrou e é accionista quando se sabe que uma das vertentes da política
económica do governo é promover o sector privado nacional e que não é fácil a
todo momento estabelecer uma fronteira acima de qualquer suspeita entre
favoritismo e promoção empresarial legítima.
Para um país a braços com as condições
difíceis que tem que enfrentar - a começar pela dívida pública acima dos 125%
do PIB e com problemas sérios em vários sectores – não ter diálogo construtivo entre, por um lado, o
Estado, os parceiros sociais e a sociedade e, por outro, entre as duas
principais forças políticas, pode significar deixar-se adiar para um ponto de
difícil retorno. A balbúrdia política que se tem ouvido nestas semanas não
serve a ninguém. Pelo contrário, cria um ambiente em que todos vão se sentir
tentados a tirar o máximo que for possível de onde puderem ou estiverem. E está
a acontecer. Não há uma predisposição das pessoas para com o seu esforço
“somar” e “multiplicar”, mas existe para subtrair e dividir.
Nunca
se falou tanto em greves e
manifestações. As forças políticas tratam-se como inimigos. Os
sindicatos nas
suas reivindicações fazem por ignorar a situação real das empresas. Os
operadores económicos continuam expectantes quanto aos resultados das
políticas
do governo para facilitar o financiamento, diminuir os custos de
contexto,
baixar os preços de energia e água e resolver os problemas de
transportes
inter-ilhas. Por outro lado, nota-se que a actuação na esfera pública é
cada
vez mais marcada por um excesso de protagonismo que não deixa margem
para
grandes entendimentos, nem para se insistir no cumprimento das regras e
dos
procedimentos e nem para compreender que raramente há soluções simples
para
situações complexas. No parlamento esse excesso de protagonismo é mais
visível
mas também se nota com preocupação nos outros órgãos de soberania e nas
câmaras
municipais. Perde-se com isso globalmente em autoridade do Estado e
espírito de disciplina na sociedade ao mesmo tempo que aumenta a
submissão a caprichos arbitrários de quem no momento detém o poder.
A controvérsia à volta da alteração das taxas
aduaneiras é paradigmático do desnorte e do impasse político e social que o
ambiente de crispação exacerbada provoca. Ao invés de um debate sobre os
efeitos dessas medidas de política na economia e o seu impacto nos consumidores
dedica-se praticamente o tempo todo a discutir quem é responsável pela lei, se
é do governo, da oposição, da câmara de comércio ou do parlamento. Ficando por
aí ninguém é, de facto, responsabilizado, ilações não são tiradas das políticas
adoptadas, não são conhecidas as alternativas de política possíveis e não se
desenvolve um processo firmado no contraditório para se fazer eventuais
correcções.
A democracia, porém, não funciona assim. Nas
democracias sabe-se sempre a quem assacar as responsabilidades e no regime com
forte feição parlamentar que se tem em Cabo Verde é evidente que quem responde
pela condução da política interna e externa do país é o governo, suportado pela
sua maioria parlamentar. Para o bem do país, da democracia, e do pluralismo,
essa responsabilidade deve ser assumida frontalmente e não ser diluída ou
partilhada com os outros poderes ou com a sociedade. Desempenhando cada um o
seu papel em pleno menos razões haverá para crispação e mais profícua dinâmica
política irá ajudar o país a encontrar os melhores caminhos do
desenvolvimento.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 850 de
14 de Março de 2018.
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