Há dois anos atrás, no dia 20 de Março, anunciava-se
uma nova alternância na governação de Cabo Verde. Com a vitória do MpD
terminavam os quinze anos ininterruptos de governo do PAICV. A sensação
no país era de alívio, à mistura com alguma euforia. Para muitos, o
terceiro mandato do PAICV tinha sido um exagero e vendo-o findar e ceder
lugar ao que se esperava ser uma lufada de ar fresco era, de facto,
razão para entusiasmo, renovação de esperança e confiança no futuro. Os
últimos cinco anos tinham sido de estagnação económica em que ano após
ano se ficou à espera da prosperidade e do emprego que resultariam da
dinâmica dos clusters, hubs, interpostos comerciais e praças financeiras
prometidos repetidamente.
Teria sido bom que a euforia da mudança não
ofuscasse as tremendas dificuldades que o país iria encontrar no novo ciclo de
governação. Não devia escapar a ninguém que Cabo Verde já fora do grupo dos
países menos desenvolvidos certamente iria encontrar maiores dificuldades em
mobilizar ajuda externa e em conseguir empréstimos concessionais. Piorava a
situação o facto de iniciar uma nova fase como país de rendimento médio atolado
numa dívida pública superior a 120% do PIB e dívidas contingenciais do sector
empresarial do Estado em particular da TACV que, por elevar ainda mais esse
valor, tornava a dívida quase insustentável. A acrescentar a isso, e ao
crescimento raso de muitos anos, ficaram reformas por fazer, em particular, na
administração pública que poderiam ter tornado o país mais competitivo e
alterado para melhor o seu ambiente de negócios.
Por outro lado, é verdade que o turismo,
devido em parte a uma conjuntura favorável provocada pela retracção dos
mercados tradicionais do Norte de África, ganhou forte dinâmica nas ilhas do
Sal e da Boa Vista e serviu para impedir que o crescimento fosse ainda mais
diminuto e também para criar milhares de postos de trabalho. O efeito, porém,
era insuficiente como constatavam as pessoas nas outras ilhas e, em particular,
nas zonas rurais que viam a sua vulnerabilidade perante as chuvas e outras
contingências manter-se ou sem alteração perceptível. O mesmo acontecia com os
muitos jovens dos centros urbanos espalhados pelo país com formação secundária
e até superior que se apercebiam que a economia não tinha emprego para eles e
os apetecidos lugares no Estado eram cada vez mais escassos. A consciência de
que mesmo na falta de sinais claros de conturbação social a situação era
crítica viu-se na forma determinada como foram decididas as três eleições:
legislativas, autárquicas e presidenciais, nesse ano de 2016 a favor de uma
mudança na visão, no estilo e nas pessoas que deviam orientar o país.
É facto que nesses dois anos a economia tem
crescido três ou mais vezes do que nos anos anteriores e que as projecções para
o ano de 2018 e seguintes apontam para valores superiores a 4% do PIB. Os dados
do INE levam a crer que a retoma teria iniciado no último trimestre de 2015 em
conjugação com a nova dinâmica da economia mundial e em particular da economia
da União Europeia que finalmente parece deixar para trás os efeitos da crise
financeira e do euro. Um outro impulso para o crescimento resultou da entrada
de um novo governo disposto a promover o sector privado e que, por esse facto,
de imediato se constituiu num factor de maior confiança na economia. Está-se
porém ainda longe dos 7% do PIB prometidos e o número de postos de trabalhos
criados mantém-se aquém do desejável especialmente para os que cada vez em
maior número terminam os seus estudos universitários.
Esperavam-se reformas mais rápidas e mais
profundas designadamente na administração pública, nas empresas públicas, no
ambiente regulatório, no sistema de segurança, na comunicação social pública e
na educação. A situação herdada era crítica e o mandato recebido de forma bem
clara e vigorosa foi para pôr em prática as soluções propostas ao eleitorado. É
percepção geral que até agora ainda não se conseguiu um nível de coordenação da
acção estatal que, por um lado, diminua as ineficiências e aumente a eficácia e
a produtividade dos serviços prestados e, por outro lado, promova a paz social
e faça convergir as vontades no esforço nacional para potenciar recursos, fazer
reformas e assumir novas atitudes necessários ao desenvolvimento. Pelo contrário,
nota-se com apreensão alguma agitação social, greves inusitadas e sinais de
contestação da autoridade do Estado. E não se pode simplesmente dizer que
resultam de cabalas ou conspirações orquestradas pela oposição. Não lhes é
alheio o funcionamento notoriamente deficiente do parlamento e de sectores da
justiça e o relacionamento entre os órgãos de soberania marcado por posturas às
vezes pouco curiais dos seus titulares que pela sua novidade no que respeita à
prática constitucional deixam um rasto de perplexidade.
Estes dois anos do novo
ciclo de governo têm coincidido com fenómenos preocupantes a nível global, não
só porque convergem na sua vertente antidemocrática, como também ameaçam a
globalização e as oportunidades que proporciona especialmente aos países mais
pequenos e insulares. Tomam a forma do populismo, do iliberalismo, da ditadura
da maioria e revelam-se em tendências autocráticas. Tem-se manifestado de
várias formas em todas as democracias recentes ou maduras e Cabo Verde não é
excepção. Assim como outros países, o país não está imune aos efeitos de
críticas destrutivas às instituições democráticas, ao aumento da desigualdade
social, aos efeitos das migrações e à forte tentação dos actores políticos para
se engajarem em políticas identitárias. Os sinais vêem-se na dinâmica no
interior dos partidos designadamente na submissão ao líder e na forte e
agravada crispação que tem sido a relação entre os partidos políticos.
Consegue-se dar a maior machadada na democracia e
favorecer todos esses populismos fazendo as pessoas acreditar que os partidos
são todos iguais e que alternância não significa uma lufada de ar fresco
mas sim mais do mesmo. Pior ainda, se no processo de diabolização mútua
se se conseguir que a democracia fique sem partidos políticos credíveis e sem
alternativa. Como se pode ver da experiência de outros países é esse o momento
que se abre o caminho para a ascensão do “homem forte” e da ditadura. Não é o
destino que se quer e por isso é que no aniversário da alternância é de maior importância
defender os princípios e valores que a tornam sempre possível e pressionar para
que os partidos políticos, essenciais como são para a criação da vontade
popular, funcionem dentro dos princípios da ética e no respeito pelo primado da
lei por forma a se se manterem sempre credíveis junto do eleitorado.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 851 de 21 de Março
de 2018.
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