O governo, na semana passada, apresentou com pompa e
circunstância a proposta de lei da regionalização. No encontro presidido
pelo primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva e que reuniu ministros,
deputados, presidentes das câmaras municipais e personalidades vindas
expressamente de todas as ilhas foram expostas as razões que justificam a
regionalização do país. Também discutiu-se o modelo proposto de
ilha/região a aplicar a todo o país com excepção da ilha de Santiago,
que tem duas regiões, e foram levantadas questões sobre competências a
serem distribuídas pelo poder local, pelo poder regional e sobre a forma
de como deverão interagir com o poder central e com as estruturas
desconcentradas do Estado na ilha.
Para o PM,
avançar com a regionalização significa “aumentar a eficiência administrativa e
política relativamente aos resultados” e, por essa via, combater as assimetrias
e “reduzir as falhas de desenvolvimento”. Já a percepção de presentes que
participaram no debate é que ainda há várias questões a clarificar no modelo
apresentado e obstáculos legais e constitucionais a ultrapassar. Por outro
lado, advinham-se dificuldades na criação de vontade política necessária para
passar o pacote legislativo. A lei exige dois terços dos deputados e não é uma
maioria fácil de conseguir no actual ambiente político crispado entre os dois
principais partidos.No fim da reunião ficou a promessa feita pelo PM de levar a proposta de lei ao parlamento no próximo mês de Março. Mostrou-se aberto a contribuições e alterações para melhor afinar o modelo mas é provável que a lei da regionalização venha a revelar-se um “non starter” ou seja, uma proposta que não consegue arrancar e andar com os seus pés, pelo menos a curto prazo. Alterações na Constituição terão que ser primeiramente feitas e o processo não é fácil nem expedito.
Para alguns a criação de autarquias de grau superior nas ilhas com um só município parece um contra-senso, porque, ou é um simples município com poderes acrescidos, ou é uma região no mesmo território de um município e praticamente com os mesmos recursos. Em qualquer dos casos não cumpre com o que normalmente se quer das autarquias supramunicipais que é o de agregar vários municípios numa região administrativa para se conseguir dimensão territorial e reunir capacidade económica e financeira e também técnica para fazer diferente do que só um município faria.
Algo significativamente diferente seria adoptar o modelo das Canárias em que os cabildos não são somente órgãos de governo e de representação das ilhas, mas também instituições da própria Comunidade Autonómica aptas a assumir em cada ilha a representação do governo e da administração autonómica. Aí faria sentido que os órgãos regionais superintendessem sobre estruturas desconcentradas do Estado nas ilhas como está-se a prever na lei da regionalização. De qualquer modo, mudanças importantes teriam provavelmente que ser introduzidas na Constituição para que o figurino ficasse mais em linha com o que se passa nas Canárias. E não é líquido que isso fosse possível.
Uma outra alteração prevista na lei da regionalização que também deverá exigir revisão constitucional, ou pelo menos clarificação constitucional, diz respeito ao modo de constituição dos órgãos regionais. Substitui-se o sistema actual previsto para os municípios de eleição directa dos membros da câmara e da assembleia pela eleição de um único órgão deliberativo ficando como presidente da comissão executiva da região o primeiro da Lista mais votada, mas sujeito à destituição por força de moção de censura apresentada pelos eleitos locais ou por não aprovação de moção de confiança. A instabilidade do governo local que poderá advir deste modelo convida a que se reflicta sobre a solução proposta.
Aliás, o governo na legislatura anterior chegou a levar ao parlamento alterações no mesmo sentido nos estatutos dos municípios, mas a proposta não passou. O espectro da instabilidade nas autarquias com a possibilidade de quedas sucessivas das câmaras municipais dissuadiu muitos de apoiar mudança tão radical no sistema actual de eleição autárquica que se manteve sem crise nos últimos 25 anos, à excepção da que aconteceu em S. Vicente em 1994/95 onde se realizou a única eleição intercalar já verificada nos municípios do país.
Um outro empecilho a um eventual compromisso para viabilizar a lei da regionalização são as normas que retomaram as incompatibilidades entre certos cargos políticos na comissão executiva regional e cargos partidários. Incompatibilidades similares já tinham sido apresentadas ao parlamento em 2017 por iniciativa do governo e não tinham merecido dos deputados apoio suficiente para aprovação. Não parece ser muito curial voltar à carga com os mesmos propósitos e depois esperar que haja boa vontade na formação de maiorias qualificadas para passar leis importantes.
Nesta corrida para descentralizar o poder de decisão e fazer uma repartição mais justa e equitativa dos recurso poder-se-á estar a seguir por um caminho prenhe em trazer problemas novos, complexos e imprevisíveis. Os múltiplos problemas do desenvolvimento de Cabo Verde têm, em parte, origem no modelo que durantes décadas reciclou a ajuda externa e por essa via alimentou o centralismo, cultivou a dependência e alimentou o espírito burocrático e as resistências à iniciativa individual e ao investimento nacional e estrangeiro. Resquícios desse condicionamento ainda se manifestam na aversão mais ou menos disfarçada pelo turismo, no olhar muito voltado para dentro, quase paroquial que faz apologia de políticas de substituição de importações e abre espaço para a rivalidade entre as ilhas e que também não prepara o país adequadamente para enfrentaros desafios do nosso tempo. A verdade é que sem incorrer nos riscos e imprevistos de uma regionalização apressada muitos dos agravos vivenciados pelas ilhas que se sentem marginalizadas poderiam já ter sido acolhidos e eventualmente resolvidos via instituições previstas na Constituição desde 1992.
Por alguma razão finge-se que não existe, por exemplo, o Conselho Regional, um órgão onde as ilhas estão igualmente representadas por dois membros eleitos e que tem competências várias precisamente para evitar assimetrias regionais, promover um desenvolvimento mais harmonioso e assegurar uma melhor alocação de fundos por forma a que o crescimento do país beneficie a todos. Para alguns convém que seja assim porque rivalidades entre as ilhas constituem um bom ingrediente para uma certa forma de fazer política. O problema é que “no fim do dia” ninguém ganha com isso: nem o país no seu todo, nem as ilhas vitimizadas, nem eles próprios porque como políticos não conseguem erguer-se acima do mundo mesquinho que constroem à sua volta.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 848 de 28 de Fevereiro de 2018.
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