quinta-feira, setembro 11, 2025

Potenciar o sentimento profundo de pertença

 

Nos tempos actuais e nas democracias em geral, a esfera pública, a comunicação social e as redes sociais parecem estar na iminência de serem engolidas por uma onda de polarização e divisão, de serem minadas por frustrações e ressentimentos e de ficarem perdidas em denúncias e suspeições. Nessas circunstâncias ganha a maior importância as pontuais manifestações colectivas de solidariedade e esperança no futuro que eventualmente aconteçam. Têm o poder de contenção dos extremos e de incentivar a convergência nos objectivos comuns da colectividade. A reacção rápida e engajada da Nação e das suas comunidades emigradas à catástrofe de 11 de Agosto que abalou S.Vicente foi um sinal claro de que em Cabo Verde está bem vivo esse sentido do colectivo nacional na sua expressão de fraternidade e de crença no seu futuro.

Pode-se considerar isso como um indicador forte da resiliência face às adversidades. De facto, recentemente durante a pandemia da Covid-19 esse sentido de pertença tinha-se revelado com toda a sua pujança e outra vez face a um desastre maior voltou a manifestar-se de forma inequívoca. É de notar que aparentemente a pandemia, ao ser uma oportunidade para mostrar solidariedade, acabou por reforçar os laços entre o país e as suas comunidades no estrangeiro, avaliando pelo aumento progressivo das remessas dos emigrantes nos anos seguintes. Isso pode significar que o aumento do afecto e da confiança e da consciência da Nação já se apresenta como um significativo amortecedor a eventuais choques externos naturais ou outros que importa conservar e aprofundar.

Outrossim, o país pode e deve potenciá-lo para manter a sociedade mais coesa e mais motivada e focada no crescimento e no desenvolvimento particularmente quando, a exemplo de outras democracias, Cabo Verde está sujeita a forças políticas e sociais fracturantes e divisivas. Na falta de um respaldo suportado no cultivo de um sentido de pertença ao colectivo nacional, corre-se o risco de, ao se enfraquecerem as instituições e a ordem democrática, se abrir caminho para soluções autoritárias e restrições graves dos direitos fundamentais. Já está a acontecer noutros países democráticos, em alguns já com um grande avanço em direcção a regimes autoritários como são os casos dos Estados Unidos e da Hungria e outros como Itália, Polónia, França, Alemanha e Portugal, com equilíbrios precários, mas com tendência para o crescimento de forças iliberais,

Aliás, as forças extremistas crescem muitas vezes em reacção ao que consideram excessivo individualismo, políticas identitárias e ameaças do multiculturalismo. O ambiente actual, dominado pelas redes sociais que amplifica a expressão individual e o posicionamento identitário e promove cosmopolitismo, também permite com recurso a algoritmos sofisticados mobilizar paixões e explorar medos e ressentimentos com base no nacionalismo. Ou seja, as plataformas digitais ajudam a promover o narcisismo ao mesmo tempo que disponibilizam os meios para a criação de bolhas de opinião onde turbas furiosas, motivadas muitas vezes por sentimentos antisistémicos e antidemocráticos, cancelam ideias, criam fake news e forjam realidades alternativas. Já há quem vislumbre um mundo em que quem domina as plataformas de facto governa e deixa para a maioria da população o entretenimento e a satisfação disponibilizada pela realidade virtual.

Em Cabo Verde também as redes sociais estão disponíveis e fenómenos que fazem lembrar o que se passa em outros países já acontecem. Já se notam manifestações de narcisismo pessoal e político com efeito nas instituições. O protagonismo pessoal tende a sobrepor-se, enfraquecendo a função e a imagem institucional. Os checks and balance do sistema político são enfraquecidos com a aceleração da menorização do papel dos órgãos colegiais (parlamento, governo, câmaras municipais) e o crescente protagonismo do presidente da república, do primeiro-ministro, dos presidentes das câmaras municipais. Bolhas de opinião são criadas com a ajuda dos algoritmos das plataformas que não poucas vezes criam uma ilusão de influência que a realidade não corrobora. Sentimentos anti-sistémicos em conflito com o pluralismo e a democracia encontram expressão e nova vida nas políticas identitárias e na criação de fake news e de realidades alternativas.

Não há em Cabo Verde questões fracturantes como a imigração, o racismo e a xenofobia e conflitos religiosos que podiam ser explorados por forças políticas, a exemplo do que se passa na Europa com a extrema-direita. Não deixam, porém, de subsistir, em novas encarnações, as velhas noções cabralistas divisivas que punham em diferentes categorias população, povo e Partido com os seus melhores filhos. Justificam os epítetos pejorativos de vendedores da terra, de anti-patriotas e de luso-tropicalistas ou macaronésios aplicados aos adversários. Estão por trás da polémica à volta do monumento à Liberdade e Democracia nos 35 anos da II República, assim como, em 2018, foram contra a proposta da câmara municipal de relocalizar a estátua de Amílcar Cabral na rotunda do Homem de Pedra.

Ao manter viva uma ideologia e uma narrativa histórica datada, alimentam-se divisões à volta do crioulo e da identidade cabo-verdiana, e dá-se conforto a sentimentos anti-sistémicos na procura de justificação da ditadura do partido único. Uma última encarnação do fenómeno desse tipo de divisionismo vê-se na postura antielitista do actual presidente do PAICV, Francisco Carvalho. Assumindo-se como líder dos “abandonados” pelas elites que governaram o país durante décadas, conseguiu capturar a liderança desse partido não obstante a feroz resistência dos seus dirigentes históricos. Posicionando-se agora como candidato a primeiro-ministro, o mais provável é que continue na mesma linha populista e antielitista que nega o impacto do crescimento económico na população e contende que os benefícios do país vão apenas para uma minoria.

O tipo de confronto político marcado por divisões bloqueadoras de tipo de diálogo entre partes em praticamente todas as matérias em disputa obriga a um tacticismo político que limita o alcance das políticas e da governação. O resultado é que em Cabo Verde provavelmente mais do que em qualquer momento anterior nos últimos meses tem-se a impressão de se estar a viver em permanente sobressalto. Há acontecimentos que realmente causam alarme como foram as chuvas torrenciais e as enxurradas que resultaram em mortes e perdas materiais avultadas. Há outros menos usuais e de menor impacto com destaque para as greves sucessivas ou anúncios de greve e os problemas constantes nos transportes aéreos e marítimos que contribuem para alimentar um desassossego difuso na sociedade. Sem o respaldo de uma consciência colectiva solidária e confiante, o confronto político permanente, a actuação dos mídia, cada vez mais influenciada pelas redes sociais, e a conectividade permanente, garantida pelas plataformas digitais, só agravam a situação.

Urge reequilibrar o país para que esteja realmente na posição de, com diálogo aberto e democrático, encontrar solução para os seus problemas. Para isso é preciso potenciar o sentimento profundo de pertença que o cabo-verdiano canaliza como solidariedade e crença no futuro sempre que Cabo Verde enfrenta uma crise. Para mobilizar esse capital que está na base da resiliência do país há que, porém, ultrapassar definitivamente as divisões impostas pela história para voltar a ser a nação que se forjou no limite, sobrevivendo a fomes, ao isolamento e ao abandono. Uma nação que não se define como vítima de ninguém e sempre acreditou que nas ilhas ou em qualquer lugar para onde emigrou o futuro está ao alcance das suas mãos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1240 de 3 de Setembro de 2025.

sexta-feira, setembro 05, 2025

É preciso um olhar mais realista e pragmático

 

A propósito do imbróglio envolvendo a concessionária do serviço de transportes marítimos de passageiros e carga, CV Interilhas, e o Estado de Cabo Verde veio à baila a questão da “exclusividade” na operação desse serviço. Para uns, a concessão implica exclusividade para quem a obtém em concurso público. Para outros, suportando-se no artigo 91º da Constituição, não se pode, em nome da liberdade económica, impedir outros operadores no sector concessionado. A decisão do Tribunal Arbitral em condenar o Estado a pagamento de compensação indemnizatória, entre outras razões, por violação do contrato de concessão ao autorizar mais um operador na rota S.Vicente/Santo Antão serviu de gatilho para um assunto que parece ser objecto de muitos equívocos no país.

Aparentemente, reina em Cabo Verde a ideia de que todos os sectores de actividade estão abertos sem restrições para a iniciativa privada. Se há problema com os transportes aéreos domésticos, a solução é criar espaço para todos os operadores interessados. O mesmo devia acontecer com o transporte marítimo interilhas. No mesmo sentido, também em outros sectores não há que ter limites, como por exemplo nas rádios privadas e nas televisões privadas a transmitir em sinal aberto. É uma ideia que não tem respaldo na realidade considerando que em vários sectores existe controlo restritivo na entrada e no exercício da actividade económica como se vê, por exemplo, no caso dos bancos ou das farmácias em número e localização.

De facto, como estipula o artigo 91º da Constituição “a exploração das riquezas naturais e recursos económicos está subordinada ao interesse geral” e como tal há que assegurar a fiscalização e a regulação do mercado de forma a se criar as condições para ter consumidores satisfeitos e actividade económica rentável e sustentável. O mercado por si próprio não garante isso. Há o problema de escala, mas também da natureza da actividade em relação à qual imperfeições do mercado podem dificultar a sua realização por operadores privados ou falhas do mercado acabam por a inviabilizar. Esses e outros casos, designadamente de monopólio natural, muitas vezes exigem intervenção qualificada do Estado que deve assegurar bens e serviços públicos e que para isso tem que garantir sustentabilidade por via de subsídio e/ou concessão com exclusividade.

O normal num país arquipélago e de pequena população como Cabo Verde é que as empresas se debatam com sérios problemas de escala e que ninguém espere que o mercado seja a solução para tudo. Paradoxalmente essa realidade não parece pesar muito no enquadramento que se faz de vários problemas. Nem da parte do governo, das forças da oposição ou da sociedade civil se nota pensamento muito diferente, como se todos vivessem numa “bolha neoliberal”, no sentido vulgar do termo. O curioso é que no essencial essa crença se mantém mesmo com alternâncias na governação e com crescente insatisfação do público, designadamente no domínio dos transportes aéreos.

Um exemplo é o facto de, logo depois de, em Maio de 2017, se ter introduzido no mercado a Binter CV com 30% das acções detidas pelo Estado em troca da posição comercial da TACV nos voos domésticos, se ouvir dos governantes que o mercado estava aberto para outros operadores. Sem exclusividade efectiva e sem uma política tarifária adequada, não tardou muito para a Binter ir-se embora. Depois veio a Bestfly que também acabou por seguir o mesmo caminho, enquanto o discurso se mantinha e uma outra política mais realista para os transportes aéreos domésticos não era formulada e implementada.

Pelo sentimento que existe na sociedade em relação a essa matéria – que ainda parece acreditar numa solução pela via do mercado, não obstante as experiências recentes e as anteriores – não é de estranhar que, sem uma mudança de fundo na política de transportes, uma outra operadora venha sofrer das mesmas dificuldades. Uma política que assume que é preciso estabilizar a circulação entre as ilhas com segurança e frequência adequada e com tarifas ajustadas para facilitar a movimentação dos cabo-verdianos no território nacional. Algo que realmente contribua para um maior conhecimento do país, para unificar o mercado e desenvolver o turismo interno e para melhorar a distribuição de riqueza pelo todo nacional.

É evidente que esse desiderato, pelas suas implicações orçamentais e impacto na economia nacional, teria que merecer o consenso de todas as forças política, o que dificilmente acontecerá. É maior a tentação de aproveitar-se politicamente das dificuldades de quem está a governar em gerir os transportes aéreos do que em equacionar estrategicamente os problemas do sector numa outra perspectiva, ainda que mais vantajosa para o país. Prefere-se ficar pelos tacticismos eleitoralistas do que servir-se do exemplo dos outros arquipélagos da Macaronésia na resolução do problema para uma nova abordagem.

Os transportes marítimos que anteriormente não eram alvo da atenção dispensada aos transportes aéreos e não tinha o mesmo peso nas disputas políticas passou ao centro da atenção com a instituição do serviço público de carga e passageiro. Resultou de um processo posto em movimento num governo do PAICV e continuado no governo do MpD após 2016 que culminou numa concessão atribuída à CV Interilhas. Assim como os transportes aéreos sofriam dos mesmos problemas de escala. Claramente que a fracção da população do país que pode viajar horas seguidas pelo mar muitas vezes revolto que rodeia as ilhas não auguraria um volume de receitas apreciável e a possibilidade de ver esse número crescer estaria limitada pela pequenez da própria população. Por outro lado, a carga gerada pela estrutura produtiva do país, já de si limitada, é constrangida pela logística ainda deficiente de distribuição que a podia potenciar.

Instituído o serviço público é evidente que teria de ser subsidiado. E se aos subsídios não se acrescentasse a exclusividade de operações inevitavelmente a subvenção do Estado teria que aumentar em particular porque o mais lógico seria que os outros operadores autorizados convergissem nas rotas mais rentáveis. O clamor que se ouve hoje quanto aos valores a serem pagos não é acompanhado de um debate sobre o modelo adoptado para os transportes marítimos e sobre seus pressupostos económicos e financeiros que, considerando e escala das operações, seriam frágeis. Nega-se a exclusividade quando aparentemente tinha ficado implícita a partir do momento que, com aplauso geral, os armadores nacionais foram convidados a participar na concessionária e se estabeleceu que não seriam concedidas novas licenças para operar no sector.

Com todos estes elementos montados num determinado sentido e o discurso político focado num outro não duraria muito que tudo isso viesse a explodir num mar revolto de reivindicações. São indeminizações milionárias por parte da concessionária, sem que tenham sido feitos os investimentos previstos no caderno de encargos. São exigências de cumprimento por parte do público agora com as espectativas elevadas de horário e frequência de navios em todas as rotas. E são as manifestações de indignação nas redes sociais levadas ao paroxismo com ajuda algorítmica e movidas em boa parte por conveniência política. A verdade é que no fundo não se discute o modelo do serviço público e não se antevê o que poderá vir a acontecer se se efectivar o fim da concessão.

O governo, fiel ao seu discurso de sempre, procura anular o acórdão do Tribunal Arbitral sem uma saída obvia para o imbróglio. O país queda-se à espera de um olhar mais realista e pragmático para os seus problemas.  

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1239 de 27 de Agosto de 2025.

quinta-feira, agosto 28, 2025

Crises enfrentam-se com boa liderança e atitude certa

 

Cabo Verde vive com a trágica perda de vidas humanas, de recursos e de propriedade verificada a 11 de Agosto em S. Vicente, um desses momentos de calamidade que ficam na memória das gentes das ilhas. Ao arquipélago não é estranho desastres naturais. Secas periódicas durante séculos provocaram fomes terríveis e marcaram a fisionomia, a cultura e a atitude deste povo. De tempo em tempo o desastre não resulta das secas, mas de chuvas em excesso revelando os extremos do clima a que o país está sujeito devido à sua localização geográfica. Os últimos acontecimentos são um lembrete que a tendência é para piorar tanto na frequência como na intensidade dos extremos.

Em geral, face às dificuldades nunca faltou o espírito de entreajuda e de solidariedade, como mais uma vez se constata na actual tragédia, nem se instalou nos cabo-verdianos um espírito fatalista ou conformista. A atitude sempre foi de procurar uma via para não sucumbir ao destino de “morrer de sede ou morrer afogado”. Se antes a saída resumia-se praticamente à emigração ou para os afortunados a possibilidade de estudar e conseguir um lugar na administração pública, no Cabo Verde democrático e ligado ao mundo, oportunidades outras podem ser potenciadas. O mesmo afecto ao país e o inconformismo perante a adversidade que animava essas escolhas deve agora suportar uma nova atitude que, focada no crescimento e no desenvolvimento inclusivo do país, sirva de base para a construção da resiliência necessária a choques externos, tanto os naturais como os criados pela conjuntura económica e política.

Cabo Verde não é um país fácil, nem é tarefa fácil levar uma nação a crescer e a desenvolver-se de forma sustentável. Pela história económica das nações vê-se que, no geral, não interessa se o país é grande ou pequeno, populoso ou não, rico ou não em recursos. As dificuldades são maiores nos países insulares onde, a outros constrangimentos, somam-se vulnerabilidades várias, designadamente de conectividade e dimensão do mercado. Não é à toa que as ilhas são vistas à partida como inviáveis e na generalidade são sustentadas por ajuda internacional massiva ou por subsídios substanciais das “metrópoles” continentais. Regozijar com pretensa viabilidade ainda nos escalões inferiores de desenvolvimento não passa de puro ilusionismo que qualquer choque externo põe completamente a nu.

Dois factores destacam-se por fazer a diferença em matéria de crescimento económico: a liderança do país e a atitude da sociedade expressa num esforço dirigido para aumentar o capital social (confiança e cultura cívica) e no empenho em proporcionar um salto qualitativo ao capital humano. São dois factores que se distinguem ainda por resultarem fundamentalmente de vontade e de processos internos de cada país. De facto, é uma escolha colectiva se se deixa apanhar em malhas ideológicas, perder em nostalgia ou refugiar na vitimização. Ou pelo contrário, se se orienta pelos factos, pelo conhecimento e pelo realismo quando confrontado com os problemas do país.

Também é escolha própria exigir da liderança o comprometimento efectivo com o bem-público, níveis elevados de competência para o exercício de funções e visão que integre realisticamente objectivos de curto, médio e longo prazo. Optar no sentido oposto por procurar favores, acesso e facilidades na relação com lideranças políticas nos diferentes níveis inevitavelmente conduz à degradação governativa. Reforça-se a dependência, põe-se em causa a fiscalização e o controlo democráticos e premeia-se a incompetência. A capacidade do país de responder aos problemas em geral e aos choques externos em particular diminui e fica mais difícil projectar o futuro. A tendência é para se cair num estilo de governação marcada pela “gestão corrente” em que reais alternativas parecem não existir mesmo quando há alternâncias no governo.

Quando assim é o quotidiano ou o costumeiro só é interrompido brutalmente em caso de calamidade, como foi agora o caso das chuvas torrenciais em S.Vicente ou da pandemia da covid-19 em 2020. E aí as insuficiências de gestão, as faltas de investimento e as más práticas em geral vêm à tona. Abre-se uma crise e no horizonte das possibilidades para a ultrapassar também aparecem oportunidades para sair do status quo e inovar para o futuro. O problema é se, ao conseguir gerir a crise com recursos especialmente mobilizados, que acabam por servir de paliativos para suavizar os seus priores sintomas, se perde a motivação para enfrentar e resolver as questões de fundo.

Em meio de uma crise aberta tende a reinar a lógica do curto prazo. Da parte da situação quer-se apresentar soluções de impacto imediato e passar a imagem de indispensável na resolução de crises. Da parte da oposição não se quer perder a oportunidade de apontar culpados e de explorar emoções provocadas por acontecimentos trágicos para desencadear ondas de indignação dirigidas ás autoridades. Como é evidente, os problemas que levaram à crise ou a exacerbaram não são enfrentados. Aliás, muitos deles vêm de longe, já sobreviveram a vários ciclos eleitorais e até a outras crises. Com o fim da emergência, ganham mais um tempo de vida.

O tipo de confronto político que existe em Cabo Verde não favorece o diálogo seguido de compromissos em questões muitas vezes fundamentais. Alternâncias na governação não produzem necessariamente soluções diferentes e estáveis como se pode constatar, por exemplo, no domínio dos transportes aéreos e marítimos, na política de habitação, na segurança, na reforma da administração pública e na educação. Pior ainda, acontece ao nível do poder local em que a prática da governação na base da “campanha permanente” tende a reforçar o caciquismo dos presidentes de câmara municipal (CM) e a dissuadir qualquer possibilidade de fiscalização ou escrutínio dos actos da CM pelos munícipes.

É evidente que, sem um esforço para o desenvolvimento de uma cultura cívica ao nível local, o caminho fica aberto para o incumprimento das posturas municipais, para o uso abusivo do espaço público e para o desrespeito pelas normas de construção e de ocupação do terreno. Os custos são evidentes nas incivilidades que se normaliza, no lixo que se acumula, na fisionomia cinzenta das cidades sem casas pintadas e nas habitações inadequadas e perigosamente assentadas. Aumentam ainda com epidemias provocadas por mosquitos e, na época das chuvas, com as enxurradas que invadem casas, arrastam pertences das pessoas e põem vidas em perigo. Por isso, quando o inesperado acontece, os quase 200 mm de chuva em poucas horas, é a tragédia que se assistiu em S.Vicente.

Uma das lições a tirar da devastação provocada na ilha é a necessidade de dar uma maior atenção à gestão dos municípios de forma a impactar positivamente a segurança e qualidade de vida dos munícipes. Os custos de não fazer isso com a devida urgência tendem a subir em espiral com as alterações climáticas e o aumento da frequência de fenómenos extremos. Há que também considerar a importância de se inventariar a capacidade logística a nível de cada ilha e do país para responder a emergências em qualquer ponto do território.

Globalmente Cabo Verde estará em melhores condições de enfrentar situações de desastre se souber conter o desgaste das suas instituições democráticas sob pressão populista proveniente dos vários quadrantes. Se em tempos normais é de maior importância ter uma liderança de excelência, em tempos de crise pode ser uma questão de sobrevivência. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1238 de 20 de Agosto de 2025.

sábado, agosto 23, 2025

Fazer das crises oportunidade para construir confiança e enfrentar desafios futuros

 

Nas primeiras horas de madrugada de segunda-feira, 11 de Agosto, a ilha de S. Vicente foi submetida a um desses fenómenos climáticos extremos que sempre em Cabo Verde se rezou para não acontecer. Um sistema de baixa pressão em trânsito pelas ilhas de S. Nicolau, S. Vicente e Santo Antão fez cair sobre a ilha de toneladas de água ceifando vidas. Morreram oito pessoas entre as quais quatro crianças, e houve devastações que atingiram casas, infraestruturas e veículos. A consternação geral da população pelo sofrimento das famílias afectadas, pelos bens perdidos e pelas dificuldades de acesso a bens essenciais não deixou de ser acompanhada de um sentimento que calamidades semelhantes estão a tornar-se mais frequentes e que há que se preparar para as enfrentar.

A posição geográfica de Cabo Verde, a sua condição de arquipélago, a sua orografia e a sua origem vulcânica tornam o país altamente vulnerável a desastres naturais. Neles estão incluídos secas, inundações, tempestades tropicais, deslizamento de terras e queda de rochedos, mas também extremos de calor, erupções vulcânicas, erosão marinha das costas e outras consequências da elevação do nível das águas do mar. As alterações climáticas, que tendem a acelerar com a elevação da temperatura média do planeta nem sempre de forma linear, estão a aumentar a probabilidade de situações extremas do clima se manifestarem. A aconteceu agora em S. Vicente, mas que já se vinha notando em anos anteriores em outras ilhas. O choque do que nessa ilha se passou deve ser um impulso para uma nova atitude a ser assumida, tanto pelas pessoas como pelas autoridades locais e nacionais, para fazer face a situações que, de raras e improváveis, estão cada vez mais a se tornarem frequentes e perigosas.

O Banco Mundial num relatório sobre o clima e desenvolvimento em Cabo Verde, de Janeiro de 2025, chamou a atenção para o facto de, perante a realidade das vulnerabilidades do país, as mudanças climáticas poderem resultar em prejuízos económicos e sociais substanciais, em particular no sector turístico. Na falta de acção para as contrariar, outros sectores poderão ser afectados, como é o caso da agricultura e pecuária e também as pescas, levando num horizonte de 2050 ou de 2040 a taxas no PIB de 3,1 a 3,6 % inferiores ao que em condições normais seriam expectáveis. A par disso, ainda segundo esse relatório do BM, os prejuízos poderão estender-se às infraestruturas e aumentar a necessidade de investimentos de longo prazo, de importação e de financiamento externo. Também poderão afectar negativamente o rendimento familiar e a luta contra a pobreza.

São razões suficientes para evitar que, ainda com a memória fresca da pandemia da covid-19, se trate a calamidade que se assistiu em S. Vicente como um déjà vu e, em consequência, depois de passado o choque e ultrapassada a comoção geral, esquecer tudo e voltar à velha rotina de sempre. De facto, é de se optar efectivamente por mudar a atitude e não se comportar como das outras vezes em que o país foi confrontado com problemas únicos ou com efeitos de políticas particularmente insatisfatórias ou mesmo nefastas. Impõe-se que assim seja porque as incertezas são maiores, com as novas tensões geopolíticas, e os imprevistos acontecem de forma cada vez mais impactante, com consequências que não devem ser varridas para debaixo do tapete.

Infelizmente, a tendência que se nota actualmente nas democracias é de aumento das incertezas em relação a tudo, com a contribuição entusiástica de indivíduos e de grupos, servindo-se do megafone das redes sociais, propiciado pelas plataformas tecnológicas. Procura-se pôr em causa normas e instituições, multiplicar identidades e desconstruir elos que mantém intacto o tecido social. Há quem queira substituir o pluralismo e a tolerância pela polarização deliberada da sociedade. Conseguido isso, é caminho andado para os extremos se retroalimentarem, para inviabilizar o debate democrático e permitir o populismo afirmar-se com a sua visão alternativa da realidade.

Nessa senda acaba-se mesmo por contestar os avanços reais realizados nos diferentes sectores da vida em sociedade, lançando dúvidas quanto aos dados estatísticos. É um facto que sempre se pode discutir o método seguido na obtenção dos dados, mas daí a construir uma autêntica teoria de conspiração, na qual outras instituições idóneas do país, os parceiros de desenvolvimento e as organizações internacionais estariam a ser enganados, vai uma grande distância. Tudo isso para contestar o crescimento económico que, não obstante o que é dito, não deixa de ser real, mesmo não sendo universalmente desejável e não impactando da mesma forma todos os sectores da economia e segmentos populacionais. Aliás, é fundamental que seja reconhecida uma base comum, insatisfatória como eventualmente possa ser na perspetiva das diferentes opiniões e dos diversos interesses, para se batalhar com políticas assertivas por um crescimento robusto e um desenvolvimento mais justo, inclusivo e sustentável.

Um dos resultados de se insistir nesse caminho de minar a coesão básica das sociedades democráticas é a fragilização que daí resulta face a quaisquer imprevistos, sejam eles produtos de alterações climáticas ou de causas naturais. Imprevistos que também podem derivar das novas práticas no comércio internacional e da guerra das tarifas, ou de mudanças na relação entre os Estados, que já não é mais na base do respeito mútuo de décadas atrás. Em voga agora estão os critérios “transacionáveis”, de vassalagem ou de lisonja do mais poderoso.

O mundo em fluxo de hoje exige das democracias um esforço dirigido para manter uma base de confiança e solidariedade sob pena de se sujeitarem a todo o tipo de pressões sem possibilidade de uma estratégia e vontade própria para as enfrentar. Mesmo perante imprevistos com base em factores naturais, a melhor forma de prevenção não deixa basicamente de passar pela via da consolidação da confiança nas comunidades: Ou seja, a adesão às normas de construção que aumentam as chances de sobrevivência em caso de tremores de terra e erupções vulcânicas, o respeito pela regras urbanísticas para evitar inundações e também a cidadania activa, que responsabiliza os autarcas pela manutenção do melhor ambiente sanitário do município e que apoia o combate à corrupção local.

Deixar-se apanhar despreparado pelos imprevistos e incertezas pode significar ceder espaço ao populismo para se apresentar como instrumento do restabelecimento da ordem e segurança na sociedade, deixando na sombra a proposta escondida de autoritarismo. Liberdade e segurança devem poder reforçar-se mutuamente no quadro da ordem democrática. Outrossim, crises criadas por causas naturais ou outras podem constituir oportunidades para provar e reforçar a importância da ordem democrática no processo de as enfrentar e resolver com ganhos para o stock de confiança e solidariedade na sociedade. Para isso liderança local e nacional têm que se pôr à altura do desafio. Desta calamidade deve poder emergir um S.Vicente revitalizado e mais confiante e um país mais solidário.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1237 de 13 de Agosto de 2025.

sábado, agosto 16, 2025

Não continuar a cometer os mesmos erros

 

Parafraseando a célebre frase de Georges Santayana pode-se dizer que “quem não aprende com os erros do passado está condenado a repeti-los”. Em Cabo Verde é cada vez mais clara a resistência em lembrar o passado e em aprender com os erros cometidos. Primeiro, porque o passado está amarrado a narrativas ideológicas institucionalmente reproduzidas que dificultam o desenvolvimento do espírito crítico por tornar inconveniente qualquer sinal de inconformismo com o que é ensinado e comunicado. Segundo, porque a defesa de um certo passado é a trave-mestra de um grande sector de opinião com grande expressão no debate político do país, condicionando efectivamente o presente e qualquer futuro que se pretenda criar.

O último debate sobre o estado da Nação foi mais uma demonstração de como as forças políticas não conseguem encontrar terreno comum para, com algum consenso sobre o ponto de partida, poderem construtivamente divergir quanto ao rumo do país, identificar os entraves ao progresso nos diferentes sectores e apresentar propostas alternativas. Ignoram-se os dados e uma avaliação honesta dos mesmos para não se entenderem quanto ao crescimento do país, em como responder às novas solicitações ao sistema de saúde, às crescentes expectativas sobre a educação e à persistente percepção negativa de segurança das populações e de que forma encarar a problemática da emigração e das migrações internas. Prefere-se ficar pelo jogo de comparar, numa perspetiva mais acusatória do que de retirar ensinamentos, obras e políticas de diferentes governos e na disputa de promessas com carácter claramente eleitoralistas e sem grande preocupação pelos custos e pela oportunidade.

Entretanto, à volta ganha força o populismo que quer fazer acreditar que é diferente das elites em confronto no parlamento e que até agora se fizeram representar nos sucessivos governos. Ainda beneficia da incapacidade de diálogo democrático que na casa parlamentar demostram para promover as suas propostas bombásticas, reagindo a qualquer reparo quanto à razoabilidade das mesmas e a serem factíveis com acusações de jogo das cartas marcadas. Com a denúncia do suposto logro em que os mais pobres são os prejudicados, o populismo justifica o seu caracter antielites e a sua recusa ao diálogo. Por aí, vê-se a convergência de forças anti diálogo democrático precisamente quando o país mais precisa elevar o seu crescimento e desenvolvimento para um outro patamar.

No impasse que se cria, não é só o populismo que floresce, também fica crescentemente difícil identificar e reconhecer erros, falhas ou imperfeições na definição e execução de políticas e proceder às devidas correcções. Aliás, nem o sistema político na sua globalidade beneficia como devia do feedback de posições contrárias, pois demasiadas vezes limitam-se a ser tacticismos com vista a ganhos políticos de curto prazo. O resultado é que o país acaba impossibilitado de reconhecer os erros no passado, de os procurar compreender e de os evitar no futuro.

No debate sobre o estado da Nação a problemática dos transportes marítimos e da empresa concessionária dos mesmos foi despoletada com a publicação nas redes sociais do acórdão do tribunal arbitral que deu razão à CVI e condenou o Estado a pagamentos num valor acima de 20 milhões de euros. Em causa estão questões como exclusividade nas rotas que o Estado não teria respeitado, a remuneração compensatória de 10% das receitas de operação que teria recusado a pagar e o excessivo custo dos afretamentos dos navios Chiquinho e Dona Tututa, um deles limitado a circular entre São Vicente e Santo Antão e outro com várias baixas para reparações que tornam complicado a programação da circulação entre as ilhas.

No meio de tudo isso reina alguma perplexidade em relação ao que aconteceu com o investimento em cinco barcos a ser feito pelo vencedor do concurso público. O mesmo acontece em relação à entrada de 10 armadores com 49% na empresa concessionária à subsequente diminuição do capital social da CVI de 300 mil para 50 mil contos, segundo os documentos vindos a público. Mais complicado ainda é o que resulta da justificação dada no voto de vencido do árbitro-vogal do Tribunal Arbitral a pedir ao tribunal que declarasse “a inexistência jurídica de todas as cláusulas negociadas após a aprovação da minuta do contrato de concessão pelo Conselho de Ministros”. Segundo o árbitro-vogal, resulta dos autos que o então Ministro dos Transportes “não tinha conhecimento das discrepâncias entre a minuta e o contrato de concessão” e que, por conseguinte, em relação a certas cláusulas do documento assinado estar-se-ia “perante o vício da falta de vontade negocial”.

O problema dos transportes marítimos como dos transportes aéreos e outros sectores importantes da economia de Cabo Verde tem a ver fundamentalmente com a natureza do país arquipelágico, de nove ilhas, população de um pouco mais de meio milhão de habitantes, fracos recursos naturais e distante 600 quilómetros do continente mais próximo. Problemas graves de escala limitam a possibilidade do mercado resolver os problemas. A insularidade impõe que se reproduzam nas nove ilhas portos, aeroportos e outras infraestruturas, designadamente, nos sectores de energia e água, de educação e saúde e de telecomunicações. Perante imperfeições e falhas de mercado o Estado tem que intervir numa realidade em que escasseiam recursos financeiros e o tempo dos financiamentos concessionais e das organizações multilaterais nem sempre se prestam para aproveitamento de oportunidades de negócios.

Parcerias público-privadas sempre podiam ser uma via para colmatar dificuldade de financiamento, de know how e de acesso a mercados com outra dimensão. O problema nessas operações, que pelas características do país são sempre arriscadas, é que o custo das mesmas acabe por ser suportado apenas pelo Estado. A probabilidade de isso acontecer diminuiria se houvesse uma maior consciência da realidade difícil do arquipélago , uma predisposição maior para aprender com a experiência e para capacitar o Estado de competência negocial e menos disponibilidade para ver o país num prisma essencialmente eleitoralista de curto prazo.

Infelizmente a tentação, também para conseguir ganhos políticos, sempre que algo não acontece de melhor forma, é de atribuir as falhas a actos de corrupção. Realmente podem existir, mas a verdade é que não se resolvem os problemas minimizando a contribuição de outros factores como má preparação nas negociações das parcerias, as dificuldades inerentes ao país, a quase impossibilidade de ultrapassar certos preconceitos herdados que opõem amantes da terra a vendedores da terra.

Risco de aproveitamento indevido vai sempre existir quando há interesses em jogo. Mas não há crescimento e desenvolvimento rápido e sustentável sem correr esse risco. A história dos 50 anos pós-independência demonstra isso quando aos primeiros quinze anos que terminaram em estagnação económica sucederam anos vibrantes dinamizados pela iniciativa privada, pela atracção de investimentos e pela liberalização da economia. Minimizam-se os riscos com o pensamento livre e sentido de responsabilidade de quem aprende com os erros do passado para que o país não continue a repeti-los. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1236 de 6 de Agosto de 2025.

sexta-feira, agosto 08, 2025

Não bloquear o diálogo democrático com discursos extremados

Na próxima quinta-feira, 31 de Julho, vai ter lugar na Assembleia Nacional o último “Debate sobre o estado da Nação” desta legislatura. Praticamente em período pré-eleitoral – as eleições legislativas irão verificar-se em menos de um ano – o debate vai acontecer num momento pós-pandémico, com sinais de clara recuperação e crescimento económico do país e de desafios e incertezas causadas por tensões geopolíticas várias. Tensões essas que ameaçam as cadeias de valor e de abastecimento existentes e levantam mesmo o espectro de guerras potencialmente disruptivas das trocas comerciais globais, podendo traduzir-se em choques externos profundos com efeito na trajetória de desenvolvimento do país.

A classificação de Cabo Verde pelo Banco Mundial como país de rendimento médio-alto, por um lado, é o reconhecimento do grau de sucesso alcançado, por outro, traz novos desafios e responsabilidades. Percebe-se isso na entrevista de 16 Julho a este jornal do Representante do FMI em Cabo Verde, Rodrigo Garcia-Verdú. Apontou que a retoma económica colocou o país 11% acima do nível pré-pandémico. Acrescentou que a queda de 40 pontos do rácio da dívida pública/PIB do PIB foi espectacular, apesar da dívida de 105% ainda se manter alto.

Também chamou a atenção para os riscos de alguma travagem no crescimento económico que podia pôr em causa esses ganhos, se faltarem investimentos em infraestruturas de suporte a grandes projectos, e para o risco que o sector empresarial do Estado poderá representar para as contas públicas, se houver mau desempenho. Considera ainda que o país tem uma boa gestão ao nível macroeconómico, mas acha que a nível microeconómico poderia ser melhor para atrair investimentos, diversificar a economia e obter ganhos de competitividade e produtividade.

A perspectiva que observadores internacionais e parceiros das organizações multilaterais têm do país é de maior importância em particular para investidores, empresários e turistas. Pode não coincidir por completo com o que internamente sustentam os vários grupos socio-políticos e económicos, o que se compreende. Mesmo com o país a avançar, nem toda a gente está completamente satisfeita com os resultados. De qualquer forma olhares de fora não têm que ser seguidos ou unanimemente aceites, mas podem ser úteis. Além de servirem para projectar uma boa imagem no exterior, também ajudam a calibrar os pontos de vista internos que tendem a ser expressos em muitos casos de acordo com interesses político-partidários estritos.

De facto, é normal que nem todos se revejam no rumo tomado pelo governo ou na velocidade como se está a dar respostas aos problemas. O expectável é que não haja concordância plena com as opções de políticas ou com o ritmo que as reformas estão a desenvolver-se ou com o nível de eficiência e eficácia na alocação e gestão de recursos. Para diferentes segmentos da sociedade as prioridades poderão ser diferentes e as abordagens divergirem com uns a pôr maior enfase na distribuição de recursos e outros a focar essencialmente na necessidade de crescer. As diferentes abordagens não devem, porém, conduzir ao negacionismo, impedindo que se constatem e se avaliem os aspectos bons e menos bons das mudanças realizadas numa governação e os objectivos conseguidos.

Para conciliar todos esses diferentes interesses e ir além das opiniões expressas para decisões que definem uma orientação para o país e o lançam para frente, é fundamental que se faça política, mas num ambiente de democracia, de pluralismo, tolerância e de comprometimento com o bem comum. Nos tempos actuais manter esse ambiente passou a ser cada vez mais difícil considerando que o seu esvaziamento ou distorção tornou-se no grande alvo das forças extremistas nas democracias.

Quer-se com a polarização extrema da sociedade e com discursos antielites interromper o diálogo democrático fazendo a sociedade dividir-se em dois blocos antagónicos, cada um com a sua versão da realidade. Assim, factos deixam de contar, não há busca da verdade e passa-se a ideia de que não há causa ou propósito comum porque o jogo é de soma zero. O que é adicionado a uma parte da sociedade, foi subtraído da outra.

Cabo Verde em período pré-eleitoral para as eleições legislativas de 2026 está perante esse tipo de pressão. Muitas das tácticas usadas por personalidades e forças políticas na comunicação pública e nas relações com as instituições acabam por contribuir para isso. As redes sociais, sem qualquer controlo de conteúdo e pelo contrário sujeitas aos algoritmos das plataformas que tendem a criar bolhas de opiniões similares, têm um efeito amplificador de posições extremas e prestam-se a serem instrumento de bloqueio para o diálogo construtivo e democrático. No momento em que o cidadão comum, a sociedade e o país mais precisam que se debruce sobre os problemas e se incentive debates sobre questões urgentes com profundidade e de forma equilibradas ficam em grande medida privados de o fazer.

Os países como as pessoas e outras entidades complexas, quando crescem e se desenvolvem, deparam-se com novos desafios, vêem problemas antigos não resolvidos a complicarem-se e a se tornarem quase intratáveis e ficam sujeitos a situações que podem configurar armadilhas, potencialmente impeditivas de progresso para um estádio superior de desenvolvimento. Claramente que Cabo Verde encontra-se nesse tipo de encruzilhada que tem de saber ultrapassar para poder progredir. Chegou a este ponto em boa medida porque cresceu, massificou o ensino a todos os níveis de escolaridade, aumentou extraordinariamente a esperança de vida e soube fazer do turismo um motor da economia.

Somam-se os problemas porque ainda o país não acerta em como tornar a agricultura e pecuária e também a pesca mais produtivas, em como encontrar nichos para a indústria e fazer da prestação de serviços a todos os níveis a grande aposta do país. O mercado ainda não está verdadeiramente unificado e as sucessivas soluções para os transportes aéreos e marítimos têm-se mostrado inadequadas e, com o acumular de passivos, mais custosas a implementar. Na saúde não se preparou estrategicamente e em tempo para responder às mudanças demográficas e epidemiológicas da população e às exigências do turismo. Não respondeu no momento certo às migrações internas com políticas de habitação quando a procura de mão-de-obra diminuiu a população em algumas ilhas e aumentou noutras, nem quando, com o aumento da escolaridade, os jovens desertificaram o mundo rural em direcção às cidades, à procura de emprego no sector de serviços.

Não explorou com rapidez necessária e sentido estratégico sectores do futuro como energias renováveis e utilização do digital para unir o país arquipélago de nove ilhas, ultrapassar a cultura centralizadora do Estado e dar aos utentes em todos os pontos do território acesso aos serviços prestados pela administração pública e municipal. É de se imaginar o muito que o país podia ter beneficiado disso para diversificar a economia e diminuir as vulnerabilidades perante choques externos. No mesmo sentido, o espaço que se criaria para uma classe empresarial autóctone com maior conectividade, com aumento de escala do mercado nacional e com ilhas actualmente a perder população, beneficiando de novos influxos.

Estas e outras questões precisam de resposta para que Cabo Verde possa crescer acima do potencial previsto nos próximos anos de 4 a 5%. O debate sobre o estado da Nação amanhã poderia ser um bom começo. No período até às eleições legislativas podia-se dar continuidade a isso com os partidos a apresentar propostas alternativas. Com a tentação para se bloquear o diálogo democrático vai depender da sociedade e de cada cidadão pôr um efectivo travão a essas manobras, não deixando que a cultura dos extremos se imponha. É a prosperidade futura do país na liberdade e democracia que está em causa. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1235 de 30 de Julho de 2025.

 

quinta-feira, julho 31, 2025

Responsabilidade de salvaguarda das instituições no respeito pela ordem constitucional

 

Ao longo das últimas semanas à volta das comemorações do dia nacional de Cabo Verde, o 5 de Julho, repetiu-se sempre uma pergunta em entrevistas, reportagens e pronunciamentos públicos: se valeu a pena a independência. A questão aparentemente não faz muito sentido considerando que ninguém disputa a independência e celebra-se o dia nacional com alegria de ser ter um país que vive na liberdade e com o orgulho de quem sabe que o povo soberano escolhe os seus governantes, há pluralismo, separação de poderes e o primado da Lei, e a justiça é assegurada por tribunais independentes. Quando repetida todos os anos a pergunta só faz sentido se é, de facto, um convite para, por um lado, se validar o processo de há 50 anos que desembocou na independência e, por outro, para justificar a ditadura de partido único que foi formalmente implantada no dia 5 de Julho.

Devia ser evidente que os objectivos no dia nacional de celebração da unidade da comunidade nacional à volta dos princípios e valores compartilhados são prejudicados quando o foco é posto no processo que atropelou direitos políticos de muitos, levou à prisão e deportação de outros e impediu que a generalidade da população pudesse livremente decidir sobre o seu futuro e o destino do país. Também não se pode ignorar que reabrem-se as feridas e cavam-se mais as fracturas na sociedade e nas instituições quando com essa questão “se a independência valeu a pena” se força as pessoas a aceitar a justificação que a ditadura era necessária em 1975 para depois houvesse uma abertura em 1990. Neste quesito nem se refreia de usar argumentos similares aos da época colonial de que era preciso dar tempo para que os povos se tornassem maduros para a independência. Não se tem pejo em afirmar que depois da independência são precisos anos de ditadura antes de se "abrir" a porta da liberdade e democracia ao povo.

Com o pretexto da necessidade de preservação da memória histórica, repete-se mais um acto que só teria sentido nos tempos da ditadura. Despeja-se integralmente a historiografia oficial do PAIGC como se tratasse de uma operação de agitprop (agitação e propaganda). Nas homenagens faz-se a idolatria dos combatentes da liberdade da pátria que, como se pode ver em várias cerimónias públicas, são os mesmos que vieram da Guiné em 1975 e protagonizaram a ditadura do partido, ficando alguns outros combatentes a fazer de pano de fundo. Não se sabe onde fica o resto da história do país, do seu povo e das suas personalidades como se tudo tivesse iniciado nas matas da Guiné. Na prática, ignora-se, distorce-se e cooptam-se pedaços da história para servirem de precursores da “luta de libertação”. Claro que aqui não há nada de novo quando a perspectiva imposta é a de um partido de vanguarda que forja nações mesmo a mil quilómetros de distância do território pátrio.

O problema é como isso pode acontecer numa democracia com pluralismo de pontos de vista, espírito livre e crítico e comprometimento com a verdade, sem que também as suas instituições sejam abaladas. No dia 17 de Julho, as Forças Armadas de Cabo Verde resolveram aderir ao esforço de preservação da memória histórica com uma conferência destacando os rostos da ditadura, notando-se a ausência do Presidente da República e do Governo. A data escolhida foi a do juramento de bandeira dos primeiros soldados incorporados nas Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) que, como disse o então primeiro-ministro Pedro Pires, no seu discurso nesse dia, era um exército de revolucionários, de militantes do partido e que pertencia à mesma organização das FARP na República da Guiné-Bissau. A grande questão que se coloca é que particularidade da memória histórica é que as Forças Armadas de Cabo Verde apartidárias, defensoras da ordem constitucional e da independência do país, pretendem preservar com esse acto e eventualmente que mensagem querem passar.

Um dos princípios fundamentais das democracias é a subordinação das forças armadas ao poder civil democraticamente legitimado. Com isso, assegura-se o monopólio da violência do Estado e garante-se que o seu comando está sob quem tem legitimidade para o exercer no quadro estrito da legalidade democrática. Não se trata, portanto, de uma “milícia” ou de um braço armado do partido, para garantir, como dito no acima citado discurso, que tem que haver nesta terra disciplina e respeito pela Direcção do partido. Como baluarte da ordem constitucional e protector dos direitos fundamentais dos cidadãos, as FA não podem tomar como exemplo um exército cujos quartéis serviram em várias ocasiões (1977, 80, 81) de prisão e lugares de tortura e se viu envolvido na morte violenta de civis (1981). Proibidas de actividades políticas, as FA não deviam rever-se em dirigentes/comandantes instituídos por decreto do regime anterior que, reclamando-se da “luta de libertação”, legitimava a ditadura em Cabo Verde.

A última coisa que uma democracia precisa é de forças armadas a se verem anterior à república ou acima do Estado com base em alguma narrativa, seja da revolução do 25 de Abril em Portugal, de manter secular a república turca, de combater a corrupção em África ou de alguma luta armada. Para evitar esse tipo de situações é que, por exemplo, na Bélgica, o dia nacional, que anteriormente se comemorava a 27 de Setembro, dia da expulsão dos holandeses, passou para 21 de Julho que foi da entronização do rei após o juramento da lealdade à Constituição. Liberdade e responsabilidade caminham juntas em democracia e claramente que era de exigir a todos, que de uma forma ou de outra, são parte da história do país, o respeito pela ordem constitucional validada várias vezes nos últimos trinta e cinco anos pelo voto livre e plural de todos os cabo-verdianos.

O país pode estar num período pré-eleitoral e as lutas políticas mais aguerridas. Tem que haver, porém, consenso quanto aos fundamentos da república. A orientação futura da governação pode estar em discussão e é pela política que se vai traçar um caminho para a encontrar. Não é pela desestabilização das instituições, pelo instigar de lutas corporativas e pelo recurso a figuras míticas, personalidades e partidos providenciais, que se vai poder ponderar a complexa situação nesta fase de desenvolvimento, evitar as armadilhas e mobilizar as vontades para as reformas necessárias.

O discurso algo histriónico que se vem tornando norma, ampliado pelas redes sociais, mas cada vez mais assumido pelas forças políticas, tende a penetrar em todo o lado. Fustiga-se a justiça, agita-se nas escolas, desespera-se nos transportes e até às forças armadas quer-se incentivar o envolvimento em decisões estritamente políticas. O crescimento dos extremismos em todo o mundo devia servir de uma nota de cautela, mas afinal não é, como se pode comprovar em resultados sucessivos das eleições em diferentes países.

Provavelmente nem os seis meses das mudanças de Donald Trump, consideradas inacreditáveis até há pouco tempo, constituem choque suficiente para outros países se esquivarem de certas derivas complicadas. Cabo Verde também parece susceptível ao fenómeno. Aqui também há quem não mostre muita preocupação se, provocando reacções emocionais extremas perante todo e qualquer problema, não se acabe por tirar qualquer possibilidade de diálogo e de uma ponderação serena dos problemas do país. Infelizmente, os dias nacionais, que deviam cimentar o consenso para o dissenso poder prosseguir sereno e construtivo, são sequestrados nas tentativas de acerto de contas com a decisão do povo de viver livre e trabalhar para sua própria prosperidade e felicidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.

sábado, julho 26, 2025

Acabar com o confronto entre o crioulo e o português

 Controvérsias à volta do ensino da língua cabo-verdiana continuam. A introdução de um manual de língua e cultura cabo-verdiana no 10º tem levantado objecções várias de personalidades e particularmente de alguns membros da equipa de estudiosos que vem trabalhando no projecto de introdução do crioulo no sistema de ensino. O manual terá avançado uma proposta de escrita pandialectal, ou seja, com elementos das nove variantes do crioulo, que não lhes agradou. Daí o confronto entre as partes na comunicação social e outros fóruns que se arrasta há meses, nem sempre de forma mais cordial. A intenção recentemente manifestada de recorrer ao poder judicial para suspender o uso desse manual via uma providência cautelar provocou uma resposta do ministério da Educação através de uma nota de esclarecimento.

É curioso que precisamente quando os que muitas vezes se intitulam de activistas do crioulo perecem estar à beira da vitória, no seu propósito de introdução do crioulo no sistema de ensino, acontece essa fractura tão ostensiva. Aparentemente há quem preferira que com o suporte do alfabeto oficial se ensinasse nas ilhas a respectiva variedade e que não fosse para já adoptada uma escrita “padronizada”, mesmo com contribuições de todas as variedades. Os outros provavelmente mais apressados e considerando o objectivo maior da oficialização e correspondente uso na administração pública e nas escolas, teriam antecipado ao que a dinâmica do uso das variedades do crioulo poderia produzir no futuro.

Na nota do ministério de 14 de Julho, assumida pela Equipa Produtora do Manual, recusa-se, porém, a ideia de se estar a padronizar a língua cabo-verdiana. Afirma-se que as variedades são todas elas “dotadas de igual valor identitário e linguístico”, dignas de ensino e de escrita e partes integrantes do património linguístico. Ainda contrapõe-se que “não reconhecer este princípio equivaleria a hierarquizar as variedades segundo o número de falantes, conferindo supremacia à variedade de Santiago e relegando as demais para um plano secundário”.

A fractura exposta neste confronto poderá estar a indiciar outras intencionalidades que não as de simples promoção do crioulo. De facto, há quem pense que há motivações ideológicas e outras por detrás da pressa para se enveredar por uma oficialização imediata, sem que tenham sido criadas as condições para tal, entre as quais a escrita padronizada, e mobilizados os recursos necessários para toda a máquina do Estado prestar os seus serviços na nova língua oficial. Uma pressa que pelo tipo de activismo não parece dar a devida atenção aos alertas que vêm de diferentes quadrantes quanto às consequências negativas na aprendizagem e na aquisição de competências linguísticas por causa da tensão negativa artificialmente criada com a língua portuguesa, que é a oficial e língua do ensino.

É evidente para qualquer observador que os cabo-verdianos não têm qualquer problema com a sua língua materna. É falada por todos, ouve-se no parlamento, o presidente da república faz pronunciamentos em crioulo, os cidadãos podem depor nos tribunais e são atendidos na administração pública também na língua cabo-verdiana. Não pode, pois, ser tomada como inferior até porque é veículo permanente de expressão de sentimentos, de troca de informações e conhecimento e de expressão cultural em particular na música. Carece ainda de ser escrita e padronizada, mas é uma questão de tempo para qual se devia serenamente engajar-se, sem prejudicar o sentido da unidade na diversidade que tem sido apanágio do povo cabo-verdiano.

O confronto de posições que hoje dividem activistas e estudiosos em relação à proposta pandialectal da língua cabo-verdiana foi precedida de fracturas criadas quando se avançou como o alfabeto fonético do ALUPEC, sem a devida consideração pelas posições contrárias e pela existência de um manancial cultural-literário em crioulo, poesia e prosa, produzida por figuras de vulto, ao longo de décadas, usando um alfabético etimológico. A razão primeira para a escolha do ALUPEC era distanciar-se do português pela escrita quando a origem lexical das palavras em crioulo é em mais de 90% está na língua portuguesa. Claro que motivações ideológicas do género que se enquadram na política de reafricanização dos espíritos teriam que gerar fortes resistências. Posteriormente, reforçaram-se com as políticas identitárias que vieram à tona e passaram a municiar bairrismos e pretensões hegemónicas no país com potencial risco para o que Cabo Verde tem de mais valioso - a unidade do seu povo.

É claro que perante a latente resistência ao ALUPEC, isso só foi possível porque o Estado e na vigência dos sucessivos governos, por acção, inércia ou omissão, acabou por impor esse alfabeto. Em 1998 foi dado como experimental e em 2009 foi oficializado pelo decreto-lei do governo nº 22/09. Curiosamente, agora quer-se impedir o uso do alfabeto pandialectal alegando que contraria o decreto-lei de 2009. A questão que se coloca é se o regime ortográfico de uma língua deve ser imposto unilateralmente pelo governo pela via de um decreto-lei. Ou seja, se não deve ser objecto de uma lei da Assembleia Nacional que é representativa de todos os cabo-verdianos.

A alteração do regime ortográfico da língua portuguesa via acordo ortográfico de 1990 foi feita com a discussão e aprovação na Assembleia Nacional seguida da ratificação pelo presidente da república. A adopção de um regime ortográfico para o crioulo com vista à sua oficialização plena, devia, por analogia e tratando-se de matéria de soberania, ser feita através de uma lei da Assembleia Nacional, depois de submetida a profunda discussão pública, considerando que é matéria que em todos os quadrantes normalmente encontra resistência por parte de intelectuais, professores, escritores, jornalistas e outros segmentos da população. Infelizmente não foi e, tomado como uma imposição do Estado, acaba por gerar anticorpos.

Efectivamente, além de não ser abraçado por todos, torna-se um factor de divisão porque, tendo em conta as motivações iniciais de um afastamento deliberado do alfabeto português, retroalimenta as tensões criadas na sociedade cabo-verdiana com a política de reafricanização dos espíritos trazida pelo PAIGC no processo de independência. Com o crioulo visto numa luta identitária contra o português, particularmente pelos mais novos, não se pode esperar maior proficiência dos alunos na língua de ensino. E sem acabar com a hostilidade à língua portuguesa como se pode melhorar a qualidade de ensino nas ciências e na matemática e estimular a população a adquirir as competências linguísticas que um país do turismo e de prestação de serviços requer.

Cabo Verde completou cinquenta anos e devia ser o momento para o olhar criticamente, mas com firmeza, os desafios que tem de enfrentar, as reformas que deve fazer e a atitude que deve assumir para não só manter o país a crescer como fundamentalmente para dar o salto para um novo estádio de desenvolvimento. Nesse sentido, é da maior importância a aposta no capital humano, o recurso que realmente o país dispõe, e está inteiramente nas suas mãos potenciar. Mas para isso, resolver o problema da língua é central. Tanto a música em crioulo como a literatura em português contribuíram para a emergência da consciência da nação. Se nem em Angola, no Brasil ou nas outras antigas colónias não há conflito identitário com a língua portuguesa porque haveria de existir em Cabo Verde, onde a nação é vista consensualmente como anterior à independência.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1233 de 16 de Julho de 2025.

sábado, julho 19, 2025

Democracia e a não promoção da verdade

 Segundo a autora do livro “Democracia e Verdade: Uma Breve História”, Sophia Rosenfeld, a democracia insiste na ideia de que a verdade é simultaneamente importante e ninguém pode dizer definitivamente o que ela é”. Para a historiadora isso significa que há uma tensão intrínseca à democracia que não é passível de solução porque ninguém detém a verdade e é sempre possível debater na busca por uma representação mais próxima da realidade.

Da dinâmica gerada vem tudo o que permite a evolução de ideias e mudanças culturais, garantindo estabilidade e capacidade de adaptação aos novos tempos.

Complica-se tudo quando surgem forças que procuram resolver a tensão própria das democracias impondo a sua verdade, criando instabilidade e incapacidade de resposta adequada da sociedade no seu todo aos desafios circundantes por falta de espírito crítico e de cultura de debate. Assistiu-se a esse tipo de complicação nas celebrações do 50º aniversário da independência de Cabo Verde. Viu-se o presidente da república, conjuntamente com várias outras instituições do Estado, a homenagear os protagonistas e as suas opções no momento da independência, há 50 anos atrás. Ora, nos feriados nacionais celebram-se os interesses e valores partilhados da comunidade política que neste ano de 2025, como nos 35 anos anteriores, são completamente opostos aos dos primórdios da independência.

A França, por exemplo, celebra o seu dia nacional no dia da Tomada de Bastilha que foi a 14 de Julho de 1789. Ninguém espera que se celebre o regicídio, o período de terror ou o bonapartismo que se seguiram à movimentação popular. Da revolução francesa celebram-se hoje, nos 67 anos da V República, os princípios e valores da liberté, egalité, fraternité e da Declaração Universal do Homem e do Cidadão que são perenes e em que toda a república neles se revê. Nos Estados Unidos são homenageados os pais fundadores, hoje quase 250 anos depois da independência, porque foram eles que dotaram o país de uma Constituição democrática e liberal que fez do país uma superpotência e uma fonte de inspiração global para os povos desejosos de liberdade e democracia.

Nesse sentido, é um contra-senso, hoje na II República, homenagear como fundadores da república quem impôs ao país uma ditadura do partido único de tempo ilimitado que só soçobrou com a queda dos regimes de similar inspiração leninista no Leste da Europa e na União Soviética. Vai-se à frente com isso porque tem à sua disposição os recursos, os meios e as competências legais para agir, mas à custa de maior conflitualidade na sociedade, de maior pressão no sentido do conformismo e de menos espírito crítico. Não se pode é pretender que se esteja a promover a unidade nacional, a criar ambiente para consensos em relação ao futuro e a cimentar a confiança que permite reformas de fundo, essenciais para realmente se dar o salto em frente no país.

Parece que para certos sectores da sociedade os ganhos de curto prazo sobrepoem-se a tudo o resto. E neste momento a tendência é procurar ganhar com o tipo de polarização exacerbada da sociedade em que uma parte não ouve a outra e num jogo de soma zero só se ganha com a perda do outro. É a linha dos populistas modernos que se posicionam contra as elites, lançam a desconfiança contra o crescimento económico e refugiam-se em posicionamentos identitários para criar fracturas graves na sociedade, eliminando efectivamente o diálogo e a possibilidade de qualquer negociação ou compromisso.

Aqui em Cabo Verde percebe-se que a via encontrada para alargar as clivagens sociais e políticas foi de reviver a luta que nunca deixou de existir no país desde que às ilhas chegou o PAIGC, vindo da Guiné com o projecto de apoderar-se do poder em Cabo Verde. Conseguiu-se isso eliminando todos os adversários. Acabou por se instalar até ser desalojado do poder quinze anos mais tarde. Como sempre fazem os partidos com essa cultura política de quem se vê como instrumento da história, soube, de seguida, adaptar-se ao ambiente democrático, adoptar a linguagem adequada e a postura certa. Mesmo de regresso ao poder anos depois, por vias democráticas, não abandonou o essencial do legado dos tempos do partido único. Continua a defendê-lo cada vez mais explicitamente.

Ainda se vê no papel de demiurgo que tudo trouxe para o povo destas ilhas e reclama que o país lhe deve a libertação, o fim das fomes, a abertura política, a democracia e o progresso. Reivindicando a condição de partido africano da independência, continua a rever-se no papel de quem procura reafricanizar os espíritos. O instrumento mais recentemente criado tem sido o crioulo que se tornou o foco de uma luta de libertação tardia contra a língua portuguesa, não obstante os custos enormes dessa hostilidade para as novas gerações em termos de competência linguística, de sucesso escolar e da própria qualidade do sistema de ensino.

A isso deve-se acrescentar o sucesso conseguido em trazer a problemática da escravatura e a condição de escravo para o quotidiano do cabo-verdiano em que os modismos nos meios académicos das teorias crítica de raça ou do chamado wokismo ajudaram bastante. Também aqui não parece importar os custos dessas incursões no sentimento do cabo-verdiano que deixa de sentir uno na diversidade da sua vivência nas ilhas. Os custos acarretados são potencialmente de quebra na autoestima do cabo-verdiano e na relutância em se associar com outros e em, cada vez mais, se vitimizar.

E como o sucesso alimenta o sucesso, os ganhos recentes na guerra ideológica acelerada pelas questões de identidade confirmam a importância de se dominar na comunicação social, na cultura e fazer ressonância com modos de pensar e forma de estar em sectores-chave de influência académica e cultural. Daí que as comemorações, que juntavam o centenário de Cabral e os cinquenta da independência fossem demasiado apetitosas para serem passadas ao lado e demasiado difíceis de negar, para sectores ideologicamente hegemónicos na sociedade. O excesso do culto de personalidade, que já não se cinge unicamente pela idolatria de Cabral, mas que se espalha para quem se vê como a geração mais moral, não fica sem custos.

Entretanto, a sociedade entra por uma divisão e uma crispação reproduzindo fracturas antigas num tempo de conflito cultural e identitário que as favorecem em detrimento da unidade de propósito e de compromisso que precisa para enfrentar ameaças e aproveitar oportunidades. A satisfação pessoal que uns têm da visibilidade e aparente reconhecimento social, resultante do peso institucional e meios de quem os patrocina e oferece homenagens, tem contrapartida no descrédito dos mesmos e da função que exercem e no aumento do cinismo face a tanta hipocrisia.

E no finalmente esse reconhecimento não vai deixar de ser efémero porque suportado em alicerces frágeis e falaciosos que não resistem um debate aberto numa sociedade com espírito crítico e aderência aos factos. Também há que reconhecer que há certas ideias e práticas que há muito pertencem ao caixote de lixo da história. Sabem disso e por isso que se esforçam tanto por se camuflar com roupagem democrática para travar essa sua inexorável caminhada. Até lá os custos amontoam e são pagos por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1232 de 9 de Julho de 2025.

sexta-feira, julho 11, 2025

Celebrar o 5 de Julho com um olhar de esperança no futuro

 

Nas vésperas do feriado nacional de 5 de Julho que no corrente ano corresponde ao 50º aniversário da Independência percebe-se que as celebrações continuam subordinadas a uma narrativa única da história de Cabo Verde. É essencialmente a mesma narrativa que o PAIGC usou para exigir que só podia haver independência sob a sua direcção e que no pós 5 de Julho serviu para legitimar a instauração da ditadura do partido único que iria manter-se nos quinze seguintes. A repeti-la, como mais ou menos nuances, e, na generalidade dos casos, a validá-la, tem sido o resultado do desfilar de memórias ao longo das últimas semanas em eventos, reportagens e entrevistas, com particular destaque para as recordações “heróicas” dos antigos dirigentes do regime.

Em qualquer outro sítio seria algo bizarro encontrar, em plena democracia, antigos dirigentes de regimes autocráticos a dominar o discurso político nas celebrações dos dias nacionais. O choque de valores seria gritante. Em Cabo Verde, porém, não é assim e, como que imposta por uma vontade férrea, a narrativa do regime de partido único sobreviveu as cinco décadas e continua a permear as instituições do Estado, o sistema de ensino e a comunicação social. É algo que até parece a realização do sonho de Gramsci da hegemonia ideológica que permite “liderar antes de conquistar o poder, de liderar a exercer o poder e de continuar a liderar depois de perder o poder". E quando perde, é só uma questão de tempo para regressar ao poder.

Nestes dias de comemorações do 50º aniversário, exemplos de bizarria abundam. Nesta segunda/feira, dia 30 de Junho, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) organizou uma “singela homenagem aos protagonistas do processo eleitoral de 1975 que culminou na eleição dos deputados da Assembleia Nacional Constituinte”. Não é de fácil compreensão quais as razões por que uma CNE com funções de administração do processo eleitoral numa democracia e competência para assegurar eleições livres, plurais e justas se disponibiliza para homenagear um processo eleitoral organizado seis meses depois dos acontecimentos de Dezembro de 1974: a tomada das rádios privadas, a proibição de outros partidos políticos e a prisão de setenta cabo-verdianos, considerados inimigos do PAIGC. Umas eleições acordadas depois desses acontecimentos no chamado Acordo de Lisboa de 19 de Dezembro de1974 que, segundo o então ministro português Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público, seriam umas consultas populares em que “você, ( o PAIGC) ganham por 90 por cento e nós salvamos a face".

Ou seja, não se vê por que vir referenciar umas eleições com resultados previamente conhecidos – na realidade o PAIGC teve 92% - porque não havia adversários e a população estava a ser intimidada, Segundo a investigadora portuguesa Sandra Pires, uma nova missão que foi dada às forças armadas portuguesas (MFA) nesse período era ajudar o PAIGC a “bater definitivamente as forças conservadoras que ainda influenciam bastante certas camadas da população”. Também como homenagear uma Assembleia Nacional Constituinte eleita nesses termos que falhou até em cumprir com as funções que a lei eleitoral de Abril de 1975, artigo 2º, lhe estabeleceu de, em noventa dias, dotar Cabo Verde de uma Constituição. Depois de proclamar a independência, transformou-se numa outra entidade, uma Assembleia Nacional Popular que, através de uma Lei de Organização Política do Estado (LOPE), imediatamente transferiu todo o poder ao PAIGC que foi consagrado força dirigente da sociedade e do Estado.

Aliás, mesmo a plenitude das prerrogativas de soberania e independência ficou posta em causa com a transferência de poder para o PAIGC que era um partido supranacional que já governava um outro país, a Guiné-Bissau, em relação à qual ficou na LOPE  estabelecido que deveria elaborar um projecto de associação dos dois Estados. O simbolismo da entrega de soberania ao PAIGC ficou claro quando a nova bandeira foi entregue para ser içada no momento da independência pelas mãos do secretário-geral do PAIGC e quando se proclamou que as forças armadas eram o braço armado do partido. Não há, pois, qualquer razão para homenagens a um processo e os seus principais protagonistas que serviram para instaurar um regime de ditadura depois dos quarenta de Salazar/ Caetano.

O 5 de Julho é o dia da independência, mas é também o dia da implantação da ditadura do partido único. A promessa de liberdade não foi cumprida, nem tão-pouco a promessa da soberania. Não é por acaso que muita gente em Cabo Verde agradece ao Nino Vieira pelo golpe de Estado de 14 de Novembro na Guiné-Bissau. Permitiu que a soberania voltasse completamente para Cabo Verde, ainda para que fosse só para o PAICV. Para o povo só voltaria, de facto, com o 13 de Janeiro de 1991 e a Constituição de 1992.

Na narrativa da ditadura do partido único, o povo deve ser eternamente grato ao PAIGC/CV. Fala-se da fome, da educação e da saúde para a sua auto gratificação. Esquecem da extraordinária ajuda internacional recebida e do uso questionável que lhe foi dado por falta de visão, por opções ideológicas que fizeram o país perder oportunidades e também porque, entre manter o poder ou desenvolver o país, invariavelmente optou pelo controlo das populações. Não é á toa que Cabo Verde chega ao fim dos quinze anos de partido único com a economia estagnada e um rendimento per capita de 900 dólares.

A desesperança das pessoas no fim desses anos contrastava com a euforia e a generosidade que se sentia nos primeiros anos, mesmo com as restrições de liberdade do regime. Tais sentimentos acabaram por se esfumar perante o cinismo prevalecente. Passou a ser corriqueiro as pessoas se negarem a participar justificando que “acabou a militância” e a se desresponsabilizarem em relação à comunidade, dizendo que “não são os culpados pela morte de Cabral". O crescimento só viria depois, a partir dos anos noventa, com a liberdade, a democracia e a abertura para o mundo. Actualmente,  o rendimento per capita ultrapassa os 5 mil dólares e poderia ter sido mais se falta de visão estratégica e de mais competência não tivesse toldado o caminho nos primeiros quinze anos. Cabo Verde não estaria hoje à frente apenas de São Tomé e Príncipe, entre os países insulares (SIDS).

Neste 5 Julho que se pode celebrar todas as promessas da independência, como sejam a autodeterminação para escolher livremente os governantes e fazer as leis do país, o exercício pleno dos direitos, a começar pela liberdade de expressão, e a busca da felicidade, é tempo de se libertar da narrativa que tem tolhido o passo dos cabo-verdianos. Não é, porém, tarefa fácil no mundo de hoje em que questões identitárias estão a ser exacerbadas. A narrativa ganha mais oxigénio porque os princípios e valores que ainda promove entre os quais culto de personalidade e vanguardismo fomentam sentimentos anti-sistema nos países democráticos que facilmente podem ser aproveitados pelo populismo moderno.

Cabo Verde não está livre dessa tentação e não deve correr esse risco. Celebrar o 5 de Julho todos os anos deve, sim, significar continuar a libertar o país das amarras e mitos do passado que comprovadamente ameaçaram deixar o país para trás. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1231 de 2 de Julho de 2025.

segunda-feira, julho 07, 2025

O Partido Único em Cabo Verde - Um Assalto à Esperança

         O Partido Único em Cabo Verde            

                                Um Assalto à Esperança         

                                                                                                                             

A memória do passado é fundamental para se compreender o presente e visionar o futuro. O livro O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança procura contribuir para a preservação dessa memória. O livro foi escrito em 1992 e publicado na sua primeira edição, edição do autor, em Março 1993. 

 

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Penso que o meu livro ainda continua actual apesar de todos estes anos por duas razões principais: a primeira por que através de documentos designadamente livros, jornais, revistas, BOs e outras publicações devidamente datadas e contextualizadas procurou reproduzir o que então partido-estado e os seus dirigentes queriam fazer de Cabo Verde, as dificuldades que encontraram e as consequências da sua visão. Só foram citados documentos que podem ser acessíveis a qualquer pessoa para verificação.

 

A narrativa dos quinze anos procura ser o mais compreensivo e abrangente na sua abordagem revelando o impacto das políticas e medidas do regime em todos os aspectos da vida do cabo-verdiano seja político, económico, social e cultural. É a minha convicção que o essencial do está aí foi posteriormente validado. 

 

Notam-se ainda as marcas do regime nas instituições, na cultura política prevalecente, no baixo nível de capital social e de civismo. Justificam a crispação política existente, as dificuldades em adoptar a atitude certa para enfrentar e desenvolver no mundo de hoje, a crise de identidade e o conformismo do qual só se liberta pontualmente com chamamentos demagógicos e populistas para logo de seguida cair-se na frustração. 

 

Explicam por que foram efectivos as operações de resgate do passado, o branqueamento dos dirigentes do regime e o divisionismo no país criado por políticas identitárias comandadas pelo estado a partir do seu aparelho ideológico em todo o sistema de ensino, na comunicação social e na propaganda que através dos seus agentes produz e distribui. 


Uma segunda razão por que penso que o livro tem utilidade é que apesar dos vinte e cinco anos passados após a queda do regime do PAIGC/PAICV não se vêem muitos estudos sobre o que foram os anos de partido único. Os que existem preferem centrar-se sobre o momento da independência e a aura heróica que normalmente a acompanha e também o momento da abertura política de 1990 e a suposta generosidade e/ou sabedoria que os dirigentes repentinamente demonstraram. 

 

Para além disso tendem a suportar-se em boa parte nas interpretações que hoje os antigos dirigentes fazem dos seus actos passados e não o que disseram e fizeram quando exerciam o poder. Omisso fica realmente tudo o que se passou entre estes dois momentos e as reais motivações por detrás das políticas do regime. É essa omissão que também é um mutismo e uma amnésia cultivada que o meu livro procura suprir.

 

A questão da memória colectiva e memória história é de suma importância para qualquer sociedade. Como já celebremente tinha dito George SANTYANA quem não conhece a s sua história fica condenado a cometer os mesmos erros. São sempre graves as consequências de manipulação da memória colectiva de um povo mas é o que se faz em cabo verde desde que uma força política, o PAIGC,  surgiu nestas ilhas a reivindicar que nações são forjadas na luta pela independência e que o seu dirigente máximo é fundador da nacionalidade. 

 

Para se impor tinha que fazer esquecer que a experiência humana nestas ilhas de Cabo Verde tem mais cinco séculos de existência e que a a identidade cabo-verdiano que emergiu ao longo dos séculos dentro do império português já era conhecida muito antes da independência nacional. Em substituição dessas memórias outras, por exemplo de luta libertação, que as pessoas não têm experiência directa deviam ser implantadas e outras identidades impostas. Desestruturar a memória torna-se num objectivo claro de política. 

 

Forçam-se as pessoas a acreditar que verdade ou facto é o que é conveniente dizer ou aceitar. Na luta interminável que assim começa não há naturalmente liberdade intelectual que permita preencher os vazios, incoerências e fantasias na memória colectiva. Compreende-se assim o deserto da literatura sobre o regime de partido único. Contribuir para restauração completa e total da memória do povo caboverdiano é que me motivou a escrever este livro.

 

Uma 2ª edição foi publicada pela Editora Pedro Cardoso em Fevereiro de 2017.                                               

sexta-feira, julho 04, 2025

Com outra atitude os 50 anos podiam ter sido outros

 

O Banco Mundial no seu último relatório de actualização económica de Cabo Verde datado de 23 de Junho voltou a chamar a atenção para os riscos para o crescimento do país nos próximos anos. Referiu conflitos globais e regionais, possibilidade de alguma travagem na dinâmica da economia mundial, aumento de preços dos combustíveis e também mudanças climáticas que, além de secas, ainda incluem a elevação do nível médio do mar e prejuízos nas regiões costeiras, afectando directamente o turismo.

Esta edição da Actualização Económica de Cabo Verde 2025 inclui entre os riscos internos as pressões políticas em antecipação das próximas eleições em 2026 que podem o reduzir o ritmo das principais reformas no país. Para o BM, falha em avançar com reformas no Sistema Empresarial do Estado constitui um risco orçamental significativo.

De facto, já é perceptível o ambiente político que já se está a instalar no país a menos de um ano das eleições legislativas. E claramente que não será propício à manutenção da boa vontade e da disponibilidade para se avançar com reformas em nome do crescimento económico. Pelo contrário, na actual conjuntura a polarização de posições, que normalmente antecede períodos eleitorais, na ânsia de cada um dos partidos se esforçarem para apresentar as suas propostas alternativas, tende a extremar-se. Da parte da situação entra-se por uma via em que o marketing político parece sobrepor-se ao que devia ser uma atitude mais ponderada nos actos de governação. Da oposição fica-se com a forte impressão de que também não há ponderação nas críticas dirigidos até ao ponto de desejar que tudo corra mal.

Se nos ciclos eleitorais anteriores fenómenos similares aconteciam, actualmente, com o uso quase compulsivo das redes socias pela generalidade da população e a exploração das mesmas com conteúdos especialmente dirigidos pelas forças políticas, ganham uma dimensão nunca vista. Nesse sentido vê-se o marketing político caminhar para bem perto dos limites da decência e as críticas a raiar a maledicência. O narcisismo de uns provoca manifestações virais de cega aceitação ou indignação de seguidores numa dinâmica em que as pessoas vão se confinando em bolhas entre as quais o diálogo é impossível. Num ambiente desses não há preocupação com a verdade, opiniões sobrepõem-se aos factos e às supostas amnésias de uns procura-se compensar com paramnésia, ou seja, com memórias distorcidas ou falsas.

A controvérsia que se gerou à volta da inauguração do terminal de cruzeiros em S. Vicente é típica do que vem acontecendo no actual ambiente pré-eleitoral. Em contraposição à pompa do actos oficiais, fica-se à espreita de “incidentes” que os desqualificam. Não se cuida de fazer um real e crítico pronunciamento sobre a importância e o impacto futuro do investimento ou da obra feita. Em S. Vicente o “incidente” foi o facto do barco de cruzeiro já no porto não ter avançado para atracagem por decisão do comandante do navio, alegando condições climatéricas. Em outras circunstâncias são às vezes acontecimentos fortuitos, mas que no ambiente de conspiração que as redes sociais vêm alimentando tornam-se em indícios de corrupção ou de incompetência. Passam de indício para “facto”, ou “quase”, quando possibilitem especulação nos jornais, quando transformados em arma de arremesso político no parlamento ou sugeridos como matéria para inquérito parlamentar.

A pressão política, que o Banco Mundial identifica como um dos factores de risco, por afectar negativamente as reformas necessárias para o crescimento, é produto dessa falta de diálogo, da ausência de um espírito de compromisso e de uma disponibilidade para negociar. Aliviar esse tipo de pressão é fundamental. De facto, problemas como transportes internos, continuam por resolver; ainda não são explorados o potencial das pescas; a agricultura precisa efectivamente ir além da subsistência; deve-se encontrar um papel para a indústria; os serviços têm que sair da informalidade para contribuírem mais para a produtividade e a competitividade do país; há que contornar a fragmentação do mercado do país para conseguir ganhos de escala, aumentar a diversificação da economia e assegurar melhor distribuição de riqueza. Só pela via do diálogo e com um engajamento colectivo e com cada no seu papel de governo ou oposição, mas unidos na prossecução do interesse geral, é que será possível estar em posição de equacionar devidamente e, com tempo e ao longo de legislaturas, resolver os problemas actuais.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de perder mais tempo e não confrontar os problemas que continuam a deixar o país vulnerável aos choques externos e internos e com uma economia pouco diversificada e fortemente dependente do turismo. A extraordinária recessão de 2020 devia ter sido um aviso claro a toda a sociedade cabo-verdiana. Infelizmente, passadas as dificuldades da pandemia, a tentação foi continuar a fazer o mesmo e a manter a mesma atitude. Não se optou por fazer da grave crise de 2020 uma oportunidade para um novo recomeço.

É um facto assente que, sem uma mudança de atitude, a tentação vai ser de, como até agora, quase rejubilar quando alguma coisa corre mal e pode-se culpar o governo, com o intuito de o desgastar e conquistar o eleitorado. Está-se a pagar caro por essa atitude, isso porque, na verdade, à medida que o tempo passa, as dificuldades vão se acumulando, os problemas vão se tornando cada vez mais intratáveis e vão-se perdendo oportunidades que exigem comprometimento estratégico durante vários anos para se estar em posição de as aproveitar. São exemplos disso os problemas hoje sentidos com o sistema de ensino, com a saúde, com os transportes, com a segurança e com a falta de estruturação de uma economia que privilegia a informalidade e pode pôr em risco a expansão do turismo por falta de higiene, como informou ontem a IGAE.

Nem após 50 anos de independência e com um conjunto de indicadores do Banco Mundial a demonstrar que Cabo Verde ficou para trás quando comparado com realidades insulares similares, o país mostra vontade de fazer diferente. Ao invés de enfrentar a realidade está-se agora a oferecer-lhe a consolação de se projectar para o ano 2075. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1230 de 25 de Junho de 2025.