Em todo o mundo o velho debate sobre o papel do Estado na
economia ressurgiu com força. A crise financeira, que rapidamente se
desenvolveu numa crise económica, com a diminuição do consumo, quebra de
produção e ameaças de deflação, e numa crise social, com o desemprego crescente,
obrigou, em muitos países, a uma intervenção estatal massiva e abrangente, sob
forma de estímulo fiscal. O actual reaparecimento do Estado como entidade de último recurso para estabilizar a
economia, via a criação de procura, sanar o ambiente de negócios, com novas
medidas de regulação e restabelecer a confiança no sistema financeiro, com
acções musculadas no sistema bancário e afins, veio renovar discussões antigas,
ressuscitar velhos preconceitos e animar esperanças em certos quadrantes
políticos mais à esquerda.
Os resultados das eleições europeias de há duas semanas,
dando vitória aos partidos do centro direita na generalidade dos países da
União Europeia, diminuíram consideravelmente o entusiasmo dos sectores da
esquerda. Aparentemente, a descrença das populações no mercado não se verificou,
nem as pessoas mostram-se dispostas a conceder, de forma permanente, meios
excessivos de intervenção ao Estado, sob que pretexto for. Sondagens feitas nos
Estados Unidos, citadas pelo colunista do New York Times David Brooks, em Maio
último, confirmam o mesmo sentimento. Os americanos não se deixam embalar pelo Estado,
mesmo face aos benefícios do pacote de mais de 700 biliões de dólares aprovado
por Obama. Nem se deixam levar pelo populismo na crítica ás práticas da classe
empresarial que estiveram na origem da crise. E, muito menos, perdem o sentido
da responsabilidade individual em contribuir para a prosperidade pessoal e
familiar.
Em Cabo
Verde o debate Estado
versus mercado, finanças públicas versus economia, interesse público versus
interesse privado ganhou um outro ímpeto, na sequência de posicionamentos públicos
de empresários nacionais mais afectados pela crise internacional e das
respostas que obtiveram do Governo. Os empresários confirmaram a quebra no
crescimento económico particularmente nos pontos do País mais ligados à
economia mundial e os seus efeitos tanto para as empresas como para as pessoas
que, em cada vez maior número, se vêem sem emprego e sem fontes alternativas de
rendimento. O Governo respondeu declarando que no momento, fundamental é a garantia de tranquilidade por parte do
Estado. Segundo o Sr. Primeiro Ministro, em entrevista a Orlando Rodrigues
(13/6/09), para que todos os funcionários
possam receber no fim do mês, para que possamos fazer todas as transferências,
para que o Estado possa assumir todos os seus compromissos.
Duas perspectivas do País sobressaem dessa troca de
conversa. Numa fala-se de empresas enquanto entidades essenciais á criação de
riqueza e que no processo transformam poupança em capital, garantem rendimento
aos seus empregados e criam mais valia, que podem reinvestir, ampliando o
emprego e aumentando a produção nacional e as exportações. O Estado nessa
perspectiva depende dos impostos sobre os rendimentos das pessoas e das
empresas e das receitas do IVA, o imposto sobre a actividade económica. Noutra
perspectiva o Estado coloca-se acima da actividade económica, alimenta-se dela
quando pode mas não tem um interesse fundamental na sua dinâmica. O foco do
interesse do Estado são os fluxos de financiamento externos como doações,
empréstimos concessionais, ajuda orçamental e linhas de crédito especiais Com
tais fluxos o Governo consegue alimentar o sistema no qual as populações mantêm-se
subordinadas ao Estado, a classe média e empresarial fica dependente de favores
e acessos privilegiados e faz-se política com a gratidão compelida nas pessoas pelas
realizações feitas.
Face à situação concreta que se vive na Ilha do Sal de
quebra de crescimento económico, do aumento do desemprego e do recrudescer dos
problemas sociais e de segurança, a reacção do PM na entrevista citada é de,
afirmar que os compromissos com a ilha “estão a ser rigorosamente atendidos”. E
cita a questão dos terrenos e dos registos. Para logo depois remeter as outras questões
para uma Sociedade de Desenvolvimento Turístico Integrado a criar, adiantando, entrementes,
que não há “património para viabilizar
esta sociedade”.
Na prática está-se de facto a confessar que não há resposta concertada
para a crise económica em Cabo Verde. E
isso sente-se nas ilhas mais expostas à economia mundial e onde a presença do
Estado e das suas ramificações é menos concentrada. Mais, a ausência de
resposta não resulta simplesmente de falta de meios. Muita vezes é uma questão
de prioridades. Prioridades que não económicas mas sim politicamente
determinadas. Por exemplo, em termos de construção de estradas há algo mais
prioritário do que o acesso aos hotéis na ilha do Sal?
Ou então é “o faz de conta” ? Proclama-se o Turismo como
motor da economia. Afirma-se mesmo que Cabo Verde está na moda. E fica-se por
aí?!
Não se dá uma resposta efectiva ao problema de Segurança nas
ilhas de vocação turística. Não se desenvolve uma política de imigração nem se
cria um quadro de suporte a migrações internas. Ignora-se o problema
habitacional criando problemas sociais graves e aumentando o custo de vida com
implicações directas na competividade geral do destino turístico. Não se
perspectiva uma política de saúde para o futuro que contemple e concilie as
necessidades da população das ilhas com as dos residentes e visitantes que se
pretende atrair. Os objectivos da educação e da formação profissional, no
essencial, mantêm-se divorciados da actividade económica considerada
estratégica.
Pelo contrário, paralisam-se projectos em S.Vicente e
noutras ilhas em disputas de propriedade de terrenos com câmaras municipais e
privados. Constrange-se fortemente a construção civil, em plena crise, com
medidas de limitação de registo de terrenos só ultrapassadas há três semanas
atrás, e em parte, por um decreto lei do Governo. Dá-se prioridade à construção de certas infraestruturas
em detrimento de outras com impacto económico imediato. Por exemplo, em
S.Vicente, avança-se com a estrada Baía Calhau abrindo uma zona virgem da ilha
e adia-se não se sabe para quando o sistema rodoviário que do aeroporto e
contornando a cidade do Mindelo deve servir os projectos, por implementar, de Salamansa,
Baia das Gatas, Flamengo, Calheta, Palha
Carga e Calhau. Mesmo o aeroporto, que
deveria ser sido factor de aceleração dos projectos, só vai funcionar já em
plena crise e sem um número significativo de quartos construídos na ilha.
“O faz de conta”
do governo em relação à economia nacional não é de hoje. Dá nomes sonantes aos
ministérios e deixa morrer, por razões essencialmente ideológicas, o esforço já
realizado na atracção de indústrias para a exportação, com custos em milhares de
postos de trabalho. Confrontado com dois programas americanos, o AGOA e o MCA,
ignora basicamente o AGOA que pressupõe a atracção de investimentos, constituição
de empresas, criação de postos de trabalho e exportações para o mercado
americano, mas abraça entusiasticamente o MCA, um programa de ajuda pública.
Não intervém de forma compreensiva na contenção e diminuição
dos custos de transacção derivados das relações com a administração pública e
empresas públicas. Deixa ao mercado livre sectores cruciais como os transportes
marítimos inter ilhas não obstante as permanentes falhas de mercado e a não
consecução do objectivo de unificação do mercado nacional. Escuda-se atrás da
prestação do serviço mínimo para algumas ilhas como se tal serviço, de cariz
essencialmente social, substituísse medidas de política económica.
Mostra-se incapaz de utilizar os investimentos públicos e a
compra de bens e serviços dos organismos do Estado para dar suporte a uma
política de densificação do tecido empresarial do país. A relação mínima entre
os investimentos nas infraestruturas e as empresas nacional exemplifica essa
falta de sensibilidade. No mesmo sentido vai o fraco aproveitamento que o
sector privado caboverdiano nos ICT fez dos muitos milhares de contos de
investimento público na governação electrónica. Mesmo quando há investimento
directo estrangeiro não há um esforço de criação de um ambiente próprio para o
surgimento de clusters ou empresas
conexas via um quadro de incentivos adequados e a regulação de actividades
económicas.
Das empresas porém espera, muitas vezes, um comportamento de
conformação às suas necessidades políticas de momento. Ilustra isso o braço de
ferro que o Governo fez com a ELECTRA e com outras empresas, designadamente as
de transporte, para as obrigar a absorver os custos dos aumentos sucessivos dos
combustíveis e não os passar aos consumidores, evitando ónus político ao
Governo. Sabe-se hoje as consequências desse tipo de pressão na Electra: os
investimentos não realizados, os enormes custos suportados pelos consumidores,
o fim da parceria estratégica e ainda a falta de um plano coerente e previsível
de investimento em energia e água.
Tácticas diversas são usadas para pôr pressão sobre as
empresas e conseguir delas a aquiescência aos interesses do momento do Governo.
Interesses esses que, diferentemente do que o PM diz na entrevista citada, nem
sempre coincidem com o interesse público, designadamente quando se trata de
ganho político imediato. O efeito geral dessas tácticas é perda da eficiência e
da competitividade das empresas.
Uma dessas tácticas é o recurso ao discurso populista e à
retórica anti capitalista. Os tempos de crise mostram-se propícios a isso.
Assim acusam-se os empresários de defenderem interesses particulares como se
por definição não o fossem. Cabe ao Estado,
orientado pelo Governo, criar o
ambiente adequado para que a prossecução do interesse particular resulte no
interesse público. Mas quando o governo procura ganho político imediato o que
parece a defender é o interesse particular do partido que o sustenta E isso, de
facto, é que não cabe na ética republicana, a que todos os sujeitos públicos
estão obrigados.
Mas acusa-se os empresários para se poder desresponsabilizar
perante o que pode vir a acontecer às empresas. Mas as empresas não
simplesmente os empresários. São também gente empregada, são expectativa de
rendimentos para as famílias e esperança para os à procura de trabalho.
Defender o interesse público não pode ser simplesmente garantir os vencimentos
dos funcionários. È também assegurar-se do ambiente próprio para o
desenvolvimento empresarial do país. Da actividade das empresas é que deve vir
a o essencial da riqueza que proporcionará os meios para que o Estado pague os
seus agentes e desempenhe o papel que todos dele esperam designadamente na segurança, na administração
da justiça, na redistribuição de rendimentos, na saúde e na educação.
O que menos Cabo Verde precisa neste momento é de um simulacro de luta classes que intimide
os empresários e convide ao conformismo. Depois das oportunidades perdidas ou
mal aproveitadas, o mínimo que se exige é que o país ganhe consciência dos
reais desafios que enfrenta. E aí o Governo tem uma especial responsabilidade.
Espera-se que deixe “o faz de conta” na
construção da economia nacional e não se deixe levar só pelas facilidades que
conjunturalmente uns e outros vão oferecendo ao País.
Publicado pelo jornal A Semana de 23 de Junho de 2009
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