Nº 577 • 19 de Dezembro de 2012
Editorial: Por um Cabo Verde sem
armas
O massacre das crianças na cidade de Newtown nos
Estados Unidos reacendeu mais uma vez o debate sobre a posse individual de
armas tanto nesse país como a nível mundial. Vários países, alguns deles, caso
do Reino Unido e da Austrália, depois de situações igualmente traumáticas,
fizeram a opção de praticamente banir armas de fogo ou de as restringir
severamente. A isso seguiu-se uma quebra brusca em certos crimes. Estudos
diversos revelaram uma correspondência directa entre a abertura legal para ter
armas e a probabilidade de acontecerem acidentes e crimes de assaltos e
homicídios onde estão implicadas.
O parlamento caboverdiano, em
Novembro último, aprovou na generalidade uma proposta de lei de armas trazida
pelo governo que ficou pelo meio-termo. Não proíbe, mas deixa abertura para
indivíduos maiores de 21 anos, em querendo, poderem obter uma licença de uso e
porte de armas. Comparando o regime de restrições na lei apresentada com a de
outros países, nota-se que não é muito rígido. Pode até dar a impressão que
cabe a qualquer indivíduo o direito de obter uma arma de fogo e de fazer uso
dela. No preâmbulo da lei justifica-se a não preferência pela proibição com
exemplos do Reino Unido e no Brasil que, segundo o texto, teriam falhado no
controle de armas.
O debate sobre o uso e porte
de armas de fogo traz sempre a questão se há ou não um direito individual em as
possuir. Nos Estados Unidos da América muitos citam a Segunda Emenda Constitucional
como garante desse direito e como suporte para negar ou limitar restrições
legais ao acesso a armas. Noutros países a tradição de caça e do desporto do
tiro não deixa que se vá além de um certo limite nas medidas restritivas. Mas
nos estados de direito democráticos em que a autoridade do estado se afirma
pelos meios legais, muito poucos são aqueles que sentem a necessidade de se
armarem para se defenderem de crimes dirigidos contra a sua pessoa e à sua
propriedade. Evidências múltiplas demonstram que nem mesmo a polícia consegue
evitar estragos colaterais quando faz uso de armas de fogo. Nas mãos de
indivíduos, por regra sem treino suficiente, só podia ser pior. O resultado é
que perdem-se mais vidas em acidentes e crimes passionais do que enfrentando
assaltantes armados em legitima defesa.
A realidade caboverdiana de
pequeno país arquipelágico e pouca população diverge consideravelmente da
realidade de países continentais e com milhões de habitantes. Não há tradição
de caça que justifique um lobby a favor de facilitação de licenças. Nunca houve
guerra e não há razões outras para a população se armar. Custa a compreender
que Cabo Verde, com 9500 armas (dados do Small Arms Survey, 2007) fique em 96º
lugar num total de 178 países. Só uma política de impunidade podia ter
permitido que armas distribuídas às antigas milícias continuassem em
circulação, como ressalta o estudo da Afrosondagem de 2008, que fronteiras
fossem deixadas permeáveis à entrada de armas e que o comércio de compra e
venda de armas florescesse. Mais incompreensível ainda que no espaço constrito
das ilhas não se tenha erradicado a produção artesanal das chamadas “boca
bedju”.
Acidentes com armas de fogo
como os de terça-feira passada em Santa Cruz acontecem com mais frequência, assim
como crimes em que conflitos menores são extremados por razões espúrias e
desembocam em mortes desnecessárias. Legalizar o uso e porte de armas ajuda as
autoridades no controlo de quem as possui mas não muda necessariamente as
circunstâncias em que serão utilizadas por razões outras que não as
apresentadas na obtenção da licença. Com mais armas em circulação aumenta as
probabilidades do seu uso impróprio pelo dono ou por alguém que lhe é próximo.
Para um país como Cabo Verde, sem tradição relevante de uso de
armas de fogo e sem razões evidentes para os seus cidadãos andarem armados, a
opção do governo devia ser tendencialmente proibitiva. As pessoas não têm que
se armar em defesa própria. Cabe ao Estado garantir a segurança, a ordem e a
tranquilidade pública. Na discussão na especialidade da lei de armas os
deputados e o governo poderão encontrar soluções que ajudem a pôr fim à imagem
violenta que recentemente Cabo Verde vem projectando e resgate a imagem de “terra
de paz e morabeza” cantada pelos nossos trovadores.
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