Num país, levar grupos de cidadãos a criar identidades antagónicas e lançá-los uns contra os outros é das formas mais nefastas de fazer política. Para a democracia é letal. O sentido de justiça perde-se, deixa-se de reconhecer a igualdade de todos perante a lei, compromete-se a liberdade em nome de interesses de grupo e mina-se a confiança indispensável à criação da prosperidade colectiva. Em momentos socio-económicos difíceis é grande a tentação de recorrer a estratagemas divisivos. Para quem está no poder pode ser uma forma de se desresponsabilizar e culpar outros. Para quem procura projecção política rápida constitui um atalho. Evita-se a canseira da influenciação política em ambiente livre e plural.
Na semana passada, o presidente da Câmara de S.Vicente falou da República de Santiago para justificar as dificuldades por que passa S. Vicente, neste momento com a maior taxa de desemprego do país. Podia ter-se referido às políticas do governo do PAICV que em mais de uma década não resultaram em crescimento económico e criação de postos de trabalho em número suficiente para debelar o desemprego. Podia criticar a excessiva centralização das decisões na capital e as consequências de anos de hostilidade para com as câmaras municipais. Podia ainda relembrar todo o programa de infra-estruturação do país que não trouxe o crescimento anunciado, os empregos prometidos e o investimento privado desejado. E que o país já atingiu o limiar do endividamento e, com os donativos em baixa e sem competitividade externa, não tem como mobilizar fundos para evitar que o crescimento caía para o negativo.
A opção por projectar num grupo definido territorialmente (Santiago) uma vontade política tida como prejudicial a um outro grupo (S. Vicente) é uma via simplista que na prática desresponsabiliza quem de facto tem um mandato para governar e exerce poder. As consequências das políticas do governo tocam a todos, independentemente da ilha onde vivem. Mobilizar pessoas na base de identidades artificiais e adversárias interfere com o processo democrático dos cidadãos avaliarem as acções dos governantes e agirem no tempo e nas formas próprias para encontrar alternativas de governação. Tal postura política não ajuda na procura de soluções para a actual situação, pelo contrário, desvia energias para causas ilusórias que depois de correrem completamente o seu curso deixam para trás frustrações e profunda resignação. Ninguém ganha com isso, nem mesmo os políticos por aí tentados. O sucesso traduzido em popularidade ou mesmo em votos, em geral não dura muito e tem o efeito de os confinar à “paróquia”. Exemplos abundam por aí.
Cabo Verde emergiu como nação homogénea em termos culturais, linguísticos e religiosos de dentro do império português.Tornou-se independente num contexto histórico específico e os seus homens e mulheres não tiveram que recorrer a um conflito de natureza existencial com outrem para apossarem da sua caboverdianidade. Políticas divisivas surgiram para justificar o monopólio político do partido único e as múltiplas acções no âmbito da “reafricanização dos espíritos”. Daí a celebre diferenciação entre o povo, todo aquele que está com o partido africano, e o resto, a população onde supostamente estariam os anti-patriotas, os inimigos de classe e os europeizados.
Mesmo quando a democracia e o Estado de direito vêm devolver total direito de cidadania aos caboverdianos, não acabam as tentativas de fazer política divisiva no país. É o que acontece nas campanhas municipais em que se procura desqualificar candidatos a presidente de câmara por não serem originários do concelho, embora munícipes. Populações, designadamente do Sal e do Paul, reprovaram tais actos mas a tentação persiste. Ao nível nacional, o discurso político não poucas vezes dirige-se para rotular uns como amantes da terra, patriotas, bem intencionados e defensores do interesse público enquanto os outros são tidos como capazes de vender a terra, como catastrofistas e com representantes de interesse próprio ou de grupos privados.
A dinâmica divisiva do país, provocada pela forma apressada como o governo e entidades próximas têm trabalhado a questão da oficialização do crioulo, devia ser alerta suficiente para todos. Muitos caboverdianos ressentem-se da adopção de uma escrita com base num alfabeto fonológico que rouba a língua da sua origem e história etimológica. E vêem nisso motivações ideológicas que não devem ser impostas a ninguém.
Não é admissível que a acção política, cujo objectivo deve ser a procura de caminhos para a nação se consolidar e prosperar, se reduza a simples instrumento de uma estratégia de poder. A nação celebrada na literatura, na música e na vivência das gentes, nas ilhas e na diáspora, deve sempre poder contar com o vigor, a criatividade e a esperança de todos nas ilhas. É função e responsabilidade do governo fazer que assim seja.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 22 de Maio de 2013
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