sexta-feira, janeiro 23, 2015

Quando a culpa morre solteira

É espantoso o zelo que o governo demonstra na procura de culpados e de bodes expiatórios para tudo o que corre mal no país. Dessa forma evita assumir a sua responsabilidade. Exemplo recente viu-se no discurso do Sr. Primeiro-ministro na apresentação de cumprimentos de Ano Novo ao Presidente da República. Considerou 2014 um ano muito difícil e com “constrangimentos restritivos de crescimento”. Logo de seguida pôs culpa na crise internacional, no ébola, na seca e na erupção do vulcão do Fogo, mas há muito que se tornara evidente que 2014 seria mais um ano de crescimento raso. O FMI no início de Outubro, antes de se fazerem sentir os efeitos do ébola, da seca e do vulcão, tinha revisto em baixa, de 3,2% para 1% do PIB, o crescimento da economia de Cabo Verde para 2014. Na época só a ministra das Finanças teimosamente contestou os dados do FMI. 
Ainda no afã de justificar tudo, o PM, sem mencionar o naufrágio do navio Vicente, foi dizendo no seu discurso que “mudanças climáticas têm provocado substanciais alterações nos nossos mares, com os consequentes perigos para a navegação marítima”. A dúvida que fica é se o barco se afundou com passageiros a bordo, porque os mares estão especialmente perigosos devido hipoteticamente a mudanças climáticas ou porque – como se pode tirar das declarações públicas de pessoas envolvidas, de profissionais da área e de entidades do sector – houve falha efectiva da regulação marítima, do controlo portuário e do sistema de busca e salvamento no país. A dúvida introduzida é suficiente, porém, para, logo à partida, se relativizar a culpa das autoridades envolvidas. 
A não assunção plena das responsabilidades por quem de direito cria problemas graves de governação. Assim é porque na democracia dá-se à maioria saída das eleições o poder de governar por um tempo limitado e no quadro de um programa com objectivos e metas claros e espera-se que cumpra o prometido e que assuma eventuais falhas. Por isso, a relação governo/cidadão não pode ser um jogo de atirar culpa para o passado porque quem ganha o direito de governar fá-lo com a promessa de corrigir os erros do passado e de potenciar o legado recebido. Também quem governa não pode desculpar-se com a suposta inércia ou resistência de outros porque ganhou fazendo acreditar que sabia construir vontade política alargada para realizar os objectivos fundamentais de paz, de prosperidade e de qualidade vida para todos. E a relação governo/sociedade não pode ser a de procurar esvaziar críticas com declarações de que não é possível fazer tudo de uma vez. Obviamente que ninguém espera dos governos que resolvam tudo e de uma vez só. Exige-se porém que cumpram o que prometeram e o que programaram realizar.
Quando os sinais de desresponsabilização se mostram presentes em todas as circunstâncias é de se preocupar muito a sério. De facto, o jogo do gato e do rato quanto à assunção das responsabilidades já não se passa só no Parlamento. Nota-se também quanto à insegurança nas ruas, em acidentes graves como o naufrágio do Vicente e emergências naturais como a erupção do Fogo, para só referir casos recentes. Pergunta-se em que outras circunstâncias menos publicitadas fica-se por este jogo de passar a culpa para o outro e se varrem os problemas para debaixo do tapete só para os ver reaparecer quando menos se espera. 
A cultura da fuga às responsabilidades que não deixa identificar devidamente os problemas e que não permite discuti-los até se encontrar forma de os resolver já há muito que vem causando problemas ao país. É só relembrar o que foram os anos dos problemas graves no sector de energia e água. A culpa foi para todos os lados. Quem devia assumi-la nunca o fez. A realidade é que hoje todos pagam em tarifas exorbitantes os anos de desresponsabilização. O mesmo agora se passa com a segurança. Ao longo dos anos permitiu-se que proliferassem armas nas mãos das pessoas, pouco se fez para conter a cultura de violência e optou-se por uma gestão populista do sector da segurança. Em consequência, o país ficou descalço perante as ameaças crescentes que vieram de fora ou emergiram nas cinturas urbanas país.
Em outras vertentes centrais para o futuro como a economia, a educação e a cultura de desresponsabilização gerou o que todos vêm no desemprego aflitivo e na inadequação da educação às necessidades do mercado. Mesmo quando um sector como o turismo se mostra promissor, porque procurado por investidores estrangeiros e alimentado por uma procura externa abastada, não consegue focalizar completamente a atenção do governo. O BCV numa das suas últimas publicações constata que já se verifica uma perda da dinâmica da procura turística em Cabo Verde por duas razões: a primeira porque o Norte de África está se a recuperar e Cabo Verde não soube utilizar a oportunidade para se tornar realmente competitivo; a segunda razão porque o Estado optou por assumir o papel de rentista que ameaça sufocar a galinha dos ovos de ouro.

O relatório do BCV dá conta que a tributação mais pesada com o aumento do IVA para 15 por cento e a criação da taxa turística contribuíram para tornar o destino Cabo Verde menos competitivo. Já se sabia que isso podia acontecer. Mas, como é habitual, não se confrontou este e outros problemas que afectam o turismo porque as críticas devem ser ignoradas. Também se o sector for afectado negativamente e os investimentos não forem realizados, empregos não forem criados e receitas diminuíram ninguém vai querer ser responsabilizado. Em Cabo Verde a culpa morre sempre solteira.  

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de janeiro de 2015 

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