sexta-feira, julho 29, 2016

Estado da Nação: Priorizar a economia privada

Aparentemente há consenso geral entre as forças políticas e na sociedade que o sector privado nacional deve ter um papel central no desenvolvimento do país. Alguns terão chegado a essa conclusão recentemente com o esgotamento do modelo de gestão das ajudas externas. Outros quererão dar continuidade ao esforço de reestruturação da economia que acompanhou o processo de democratização do país nos anos noventa. Outros ainda fazem o discurso politicamente correcto para os parceiros internacionais enquanto na prática prefeririam continuar com a situação actual de preponderância estatal na economia que garante rendimento seguro, estatuto social e influência política à chamada “classe média” do Estado. Em qualquer dos casos, a questão que se coloca actualmente é como proceder para realmente atingir esse objectivo e fazer do sector privado o motor do crescimento e de criação de empregos.
Vislumbrar um caminho para alcançar esse desiderato poderia ser um dos grandes resultados do debate sobre o Estado da Nação que vai ter lugar na Assembleia Nacional no dia 29 de Julho. Claramente que não é uma tarefa fácil mas é de uma urgência sem paralelo. É urgente porque o país, depois de anos a viver numa estagnação económica e com uma dívida pública pesada que diminui a capacidade de mobilização do investimento público, exige que se encontre a breve trecho uma alternativa de financiamento da economia que necessariamente inclua a mobilização do investimento directo estrangeiro. E não será fácil porque esse esforço de atracção de capital deverá articular-se virtuosamente com a promoção do sector privado nacional para se conseguir realizar o potencial do país. Logo à partida sente-se que fazer isso numa pequena economia arquipelágica e afastada dos grandes centros económicos mundiais é de uma complexidade extraordinária. O facto de nos últimos 15 anos Cabo Verde ter tido sete ministros de Economia ilustra bem os desafios enormes que se colocam no caminho da construção de uma estrutura produtiva no país capaz de fazer crescer a economia, criar empregos e exportar.
Quando os problemas são postos em cima da mesa evidenciam-se logo a questão do financiamento bancário, do custo de factores como energia e água e os de contexto designadamente os resultantes da interacção com a administração pública e as consequências da sua insensibilidade, burocracia e até favoritismo. Traz-se também à colação as dificuldades com os transportes aéreos e marítimos em realizar o velho sonho de unificação de um mercado fragmentado por nove ilhas. A todos estes empecilhos vieram juntar-se nos últimos anos as consequências de políticas governamentais no que respeita designadamente às obras públicas e habitação, ao fisco e à organização da actividade económica.
Assim, depois de centenas de milhões de contos investidos em obras públicas e habitação social por todo o país, o sector nacional de construção civil praticamente faliu ou ficou em sérias dificuldades financeiras. O aperto do fisco acompanhado das falhas na restituição do IVA pôs muitas empresas em sérias dificuldades financeiras e constituiu um factor de aumento da informalidade no país. A gestão do processo de integração na Organização Mundial do Comércio (OMC) deixou os operadores económicos completamente expostos à concorrência nem sempre leal de empresários estrangeiros à procura de fatias do já minguado mercado nacional, em particular do mercado do retalho sem que se vislumbre os benefícios da entrada na OMC. Mesmo no fornecimento de bens e serviços ao mercado criado pelo impulso do turismo não se desenvolveu qualquer estratégia discernível que acautelasse o interesse de operadores nacionais.
A história económica de países que foram bem-sucedidos no seu desenvolvimento evidencia muito bem o papel do Estado na promoção e expansão do sector privado nacional. O exemplo mais recente dos países do Sudeste asiático e também da Costa Rica, das Maurícias e das Seychelles mostram como, sem cair no proteccionismo estrito ou em políticas de substituição de importações, souberam equilibrar a opção pela exportação com a salvaguarda de condições para um sector privado nacional crescer, afirmar-se e estar posteriormente em posição de concorrer no mercado global. Liberalização económica do género que se optou na interpretação das normas da OMC nem nas grandes economias se faz. É só ver as barreiras tarifárias e outras não tarifárias que são erigidas,  nos Estados Unidos, mas também na Europa para proteger indústrias, por exemplo, de painéis solares ou outras nascentes em relação a produtos concorrentes de outros países. E são perfeitamente enquadráveis no âmbito da OMC.
Cabo Verde tem um especial desafio em desenvolver o seu sector privado. Vai ter que o fazer já bastante tarde e quando as condições lá fora não são as mais favoráveis e quando dentro país preconceitos, cultura institucional e práticas já existentes são particularmente prejudiciais à actividade empresarial e à inovação. Mas terá que o fazer porque o país não poderá viver eternamente da ajuda internacional, terá que saber produzir riqueza e saber exportar. E isso consegue-se com actividade privada dinâmica, criativa e ambiciosa. O Estado tem um papel fundamental em acarinhar todo esse processo com políticas “industriais”, com promoção do país e atração de capitais e com um envolvimento profundo no aumento de eficiência em todos os sectores de suporte da actividade económica no país. Já está atrasado em fazer isso. Que no novo ciclo político se procure recuperar o terreno perdido.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 765 de 27 de Julho de 2016.

sexta-feira, julho 22, 2016

Quer-se o PAÍS real ou fictício?

O debate sobre orçamento do estado de 2016 não foi ainda o momento para as forças políticas no Parlamento chegarem a acordo sobre o país que realmente temos. Para outros observadores institucionais, designadamente o Grupo de Apoio Orçamental (GAO), a situação vivida em Cabo Verde não deixa margens para dúvidas. Em comunicado emitido a 18 de Julho, O GAO foi directo em apontar que a “actividade económica permanece muito fraca”; que “os baixos níveis de confiança das empresas e dos consumidores não permite grande optimismo acerca das possibilidades de o país realizar completamente o seu potencial”; e que é preciso acelerar o “crescimento no médio prazo de forma a recuperar o tempo perdido durante o recente período de estagnação”. Para a maioria da população, as eleições legislativas de 20 de Março foram a oportunidade de demonstrar o descontentamento perante políticas que em anos sucessivos falharam em produzir os resultados prometidos em termos de crescimento, emprego e rendimento.
Não é uma atitude positiva continuar a insistir na ilusão que práticas e cultura institucionais chamadas “good governance” significam “boa política do governo” quando quem é governado mostra inequivocamente que quer mudar de políticas e de dirigentes. A confusão de conceitos foi deliberada e constituiu durante anos uma parte importante do exercício de ilusionismo que tinha como objectivo fazer acreditar ao povo de Cabo Verde que o governo de José Maria Neves recebia as melhores notas de países e de instituições estrangeiras. Como se fosse prática de governantes estrangeiros, particularmente de países democráticos, ajuizar quem melhor deve governar outro Estado de Direito democrático. Só a persistência em manter o equívoco pode justificar que ainda perante os últimos resultados eleitorais se venha argumentar com avaliações do Banco Mundial que dariam Cabo Verde como o segundo país africano melhor governado. E isso para rebater que o país depara-se actualmente com uma dívida pública pesadíssima, com um sector empresarial público num estado calamitoso e sem muita folga para investir e acelerar o crescimento económico.
Esconder a realidade do que se passa em vários sectores da vida do país tornou-se ao longo dos anos numa necessidade imperiosa para uma forma de governar que implicava empurrar os problemas com a barriga, simular soluções em múltiplos take-offs e largadas e, em geral, manter o manto da ilusão sobre as pessoas. Foram necessárias situações dramáticas como o naufrágio do navio Vicente, a má gestão dos evacuados de Chã das Caldeiras, o massacre de Monte Tchota para nos fazer cair na realidade das coisas. Os homicídios frequentes, a insegurança geral, assim como o desemprego persistente e a vida que não melhora deixam entender que muitas outras coisas não vão bem e que nem todas as instituições estão devidamente acauteladas. Mas como são de baixa intensidade diluem-se no quotidiano dos dias que passam e alimentam a apatia geral. Provavelmente foi a coincidência da gestão manifestamente desastrosa da TACV com o período eleitoral conjuntamente com a forte presença de uma alternativa estruturada que poderá ter contribuído para se soltar do “feitiço” da ilusão. Parece porém que se quer manter o jogo político que perpetua a ilusão e não deixa ver os problemas do país e nem discutir as vias para os resolver e identificar as oportunidades que poderiam permitir passar para um outro patamar de desenvolvimento.
 O GAO no seu comunicado fala do país real de “baixo crescimento económico, elevado défice fiscal e crescente dívida pública” para concluir que “só uma forte consolidação fiscal, reformas estruturais e uma cuidada sucessão de medidas” de política poderá reduzir o impacto de um ambiente externo e interno em vários aspectos adverso. De facto, incertezas na frente externa como o Brexit, os efeitos do terrorismo na Europa e o impacto da chamada estagnação secular somam-se a constrangimentos no plano interno, a começar pelo que o GAO considera ser a grave situação financeira de empresas públicas designadamente a TACV e a IFH. Neste particular, constata que pelo impacto na dívida pública que já têm há limitadas possibilidades de o governo as viabilizar e aconselha medidas decisivas sob pena de o governo ver a sua capacidade de implementar o seu programa “afectada negativamente”. Para conseguir a aceleração do crescimento no médio prazo sugere que se melhore o ambiente de negócios para atrair investimento directo estrangeiro (IDE) o qual deverá estimular o dinamismo do sector privado nacional já em tempo livre de dificuldades como o crédito, custos elevados de factores e de outros custos de contexto.
Devia ser evidente para todos que Cabo Verde não tem muito tempo a perder e que o mundo não está parado à sua espera. O tempo das ilusões, da possibilidade de sobrevivência na base da ajuda externa e da boa vontade dos outros vai inexoravelmente acabar. Quem faz parte do arco da governação seja no governo ou na oposição tem o dever através das suas iniciativas, debates e actos de fiscalização de levar o país pelo caminho onde possa ver claramente o ponto onde se encontra, os obstáculos a ultrapassar e os perigos a confrontar. Por outro lado, para dar resultados que afectam positivamente a todos, toda essa interacção e dinâmica tem que passar no país real e não no país fictício criado por ilusões que outrora sustentaram uma lógica de poder e que ainda hoje insistem em fazer de Cabo Verde um “país sempre adiado”.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 764 de 20 de Julho de 2016.

sexta-feira, julho 15, 2016

Para uma nova administração pública

Mudanças e nomeações nos organismos do Estado têm monopolizado a atenção e o discurso político nas últimas semanas. Não é caso para espanto, considerando que um outro partido esteve 15 anos interruptos a dirigir a Pública (AP) e o novo governo esforça-se por se posicionar para melhor passar as suas orientações e atingir os objectivos preconizados junto ao eleitorado. Tensões são inevitáveis enquanto uns cedem lugares a outros, certas entidades desaparecem algumas novas são criadas e outras ainda são reestruturadas.
Isso passa-se mesmo em países como o Reino Unido que goza da famosa neutralidade do seu Civil Service. Na sequência de longos períodos de governo conservador ou trabalhista não se deixa de notar as “marcas” deixadas. Em Portugal nem a criação em 2012 da Autoridade de Contratação Pública com os seus concursos públicos para dirigentes da Pública evitou acusações de contracto de “boys and girls” pelo anterior governo ou impediu nomeações tidas do governo de António Costa vistas geralmente como partidárias. Noutros países assume-se mais ou menos frontalmente que há um número de altos funcionários ou dirigentes que são removidos ou emprateleirados conforme as alternâncias na governação. Nos Estados Unidos com o seu “spoil system” há mil e poucos lugares nomeados ao prazer do presidente e que deixam o cargo no fim da sua . Na Alemanha reservam-se por alguns anos “prateleiras douradas” para altos funcionários que foram cooptados para posições politicamente sensíveis por governos anteriores.
Cada país tem seu modelo de relação entre poder político e pública o qual na generalidade dos casos tem a ver com o seu específico percurso histórico e de desenvolvimento institucional. Há quem diga, por exemplo, que a quase ausência de restrições para a actividade política do funcionário português prescrita na Constituição é uma reacção à neutralidade política da AP que vinha dos anos do salazarismo. Em Cabo Verde fez-se um desvio: entre o salazarismo e a democracia houve o partido-Estado em que a pública deu uma viragem para o extremo oposto e foi completa e ostensivamente partidarizada. Dificilmente as soluções ideais para um serão também para o outro, não querendo isso dizer que não se possa aprender e mesmo apropriar-se das experiências dos outros.
A tendência geral nos estados modernos é a de convergir no mesmo objectivo: ter uma pública eficiente e eficaz, profissional, “amiga” da iniciativa individual e empresarial e fornecedora de serviço de qualidade aos utentes. Para isso, primeiro tem que encontrar formas de ser efectiva em seguir a orientação e implementar as políticas do governo legitimamente constituído e, ao mesmo tempo, ser profissional, isenta, imparcial e não discriminatória na prestação de serviço aos cidadãos. Não é tarefa fácil muito menos quando como em Cabo Verde ainda é bem presente uma cultura de partidarismo. O direito de acesso à Função Pública garantido pelo Constituição a todos os cidadãos não deve significar possibilidade de fazer carreira com base no cartão partidário nem direito de se excluir às directrizes legalmente transmitas pelo governo o e nem de se subtrair às exigências também constitucionais de isenção e imparcialidade. Para se conseguir esse nível de profissionalismo há que se fazer um esforço muito dirigido. Vários países optaram por formação dos seus funcionários ao mais alto nível em escolas especiais da do tipo Ecole Nationele d’Administration francesa ou College of Civil Service inglês.
A apreciação negativa da pública que se ouve de todos os lados designadamente de todos os partidos políticos, das organizações empresariais e de cidadãos comuns deve ser motivo suficiente para convergir esforços para se ultrapassar os constrangimentos actuais. Os ganhos de se conseguir uma confluência de vontades nessa matéria podem ser enormes porque pôr a AP no caminho certo irá afectar positivamente o ambiente de negócios e a competitividade do país. Torná-la mais eficiente e eficaz significará maior poupança nos recursos do Estado e mais qualidade nas despesas. Fazê-la mais profissional conduzirá a melhores políticas públicas e a mais accountability. Conseguir esses resultados porém implicarão reformas, legislação adequada e formação especializada. Não serão atingidos certamente com medidas unilaterais de entrega de cartões partidários e de outras medidas possivelmente limitadoras dos direitos políticos.
A verdade é com a economia mais dinâmica poder-se-ia entrar num círculo virtuoso que deixará para trás a cultura burocrática, centralizadora e não facilitadora de iniciativas que vem dominando o país desde dos seus primórdios. Ficará o caminho aberto para a cultura de serviço e de resultados que o país tão precisa e também para se adoptar uma atitude de mais cooperação entre as pessoas com impacto directo em mais civismo, mais confiança e menos conflitualidade.
          Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de  13 de Julho de 2016

sexta-feira, julho 08, 2016

Patriotismo inclusivo

Em mais um aniversário da Independência Nacional, o quadragésimo primeiro, as comemorações foram marcadas por ritos, cerimónias e discursos de exaltação patriótica que apelam ao renovar do patriotismo em particular junto das novas gerações. O espírito patriótico resulta da consciência de pertença a uma comunidade política nacional irmanada por princípios e valores da liberdade, da democracia, de justiça e de solidariedade. Renová-lo nas datas nacionais e mantê-lo vivo ao longo de todo o tempo é essencial para o ambiente político, económico, social e cultural, que se quer de afirmação do indivíduo, da promoção da diversidade, de livre manifestação de interesses, do pluralismo político e de incentivo à criatividade e que já mostrou ser indispensável para gerar dinâmica sustentada e atingir o grau de desenvolvimento almejado por todos.
O discurso do patriotismo tem experimentado nos últimos tempos em vários países um inesperado ardor e contundência que preocupa, porque em vez de reafirmar a unidade da nação e a importância da contribuição de todos para o bem comum, tende a dividir, a vitimizar uns e a culpar outros. Ouvir Marine Le Pen e outros políticos da extrema-direita europeia a apelar aos “patriotas” em contraposição aos que seriam os “globalistas” relembra processos de divisão nas sociedades e nas democracias que no passado desemborcaram em regimes totalitários, fascistas e comunistas, e em guerra mundial. Discurso similar ouviu-se durante todo o processo que levou ao referendo no Reino Unido. À volta da questão de imigrantes procurou-se dividir as pessoas exacerbando as diferenças entre as gerações e entre uma elite cosmopolita e europeia e outras classes mais nativistas e patrióticas. Viu-se o resultado no Brexit e no espanto e consternação pela saída do Reino Unido da União Europeia. O mesmo também está acontecer nos Estados Unidos da América com o fenómeno Donald Trump que já se posicionou com candidato do partido republicano para o cargo de presidente nas eleições de Novembro. As consequências de uma eventual vitória de Trump seriam simplesmente desastrosas a nível global afectando as relações entre os países, e a paz e a segurança mundial.
Robert Reich, ex-Secretário de Trabalho no governo Clinton e Chanceler na Universidade da Califórnia chamou recentemente a atenção para a ascensão de um certo discurso político que ele classificou de “patriotismo exclusivo”. Um discurso de certos sectores que se consideram os mais puros e defensores dos valores nacionais em contraposição com os que supostamente se vendem ao estrangeiro porque são cosmopolitas, ou são multiculturalistas ou tolerantes das diferenças raciais, sexuais e religiosas. Para eles as regras e as instituições democráticas e os princípios da liberdade e da igualdade de oportunidades não têm de ser respeitados a todo o momento em particular quando o que consideram altos valores se alevantam. Justificam o seu patriotismo exclusivo com o novo ambiente mundial criado pela globalização que destrói milhares de postos de trabalho nos países desenvolvidos, pelas migrações massivas que sobrecarregam os sistemas de segurança social e introduzem forte concorrência no mercado de trabalho e pelo terrorismo que cria insegurança e deixa os cidadãos desamparados sem a protecção do Estado. A fragilização e quase colapso dos partidos colocados ao centro, seja ao centro-esquerda seja ao centro-direita, têm sido acompanhados da ascendência dessas forças políticas situadas nos extremos da vida política com discursos que cada vez mais se reclamam deste patriotismo exclusivo.
Cabo Verde conhece bem as consequências de se persistir na reivindicação da condição de patriotas só para alguns quando há muito se deixou para trás a polarização política inicial dos tempos da independência. Em condições ideais instala-se um regime antidemocrático em que os autoproclamados “melhores filhos” acham-se no direito de governar sem necessidade de consentimento dos outros como aconteceu nos primeiros quinze anos da independência. No regime democrático que se seguiu ao 13 de Janeiro, a persistência de resquícios desse patriotismo exclusivo dificultou a consolidação do regime democrático, desincentivou o diálogo, impediu compromissos e não deixou muito espaço para negociações entre as forças políticas. Quantas vezes no embate parlamentar não se consegue avançar no debate e chegar a acordo porque uma das partes considera a sua posição patriótica e portanto superior, subentendendo-se que tem razão e que a outra parte estaria ao serviço de causas contrárias ao bem público.
É um facto histórico incontornável que as sociedades, que conseguem mobilizar as pessoas individualmente ou organizadas em empresas ou outras entidades ligadas à produção de riqueza para perseguir os seus interesses e realizar as suas ambições, ficam em melhor posição de colher os frutos do esforço de todos e de, colectivamente, fazer a comunidade avançar a um passo sem precedentes. Também sabe-se que contribui extraordinariamente para o sucesso nessa via, se no plano político de determinação da orientação a dar à sociedade, vigorarem os princípios da concorrência, da igualdade de oportunidades, do pluralismo, do primado da lei e da resolução pacífica de conflitos. O pressuposto básico para isso é que todos se sintam cidadãos em pleno, unidos pelos princípios e valores plasmados na Constituição da República.
É esse sentimento que constitui o patriotismo inclusivo que há que promover para que o desenvolvimento do país prossiga sem querelas inúteis. Porque ninguém é mais patriota que o outro e patriotismo não é argumento quando todos, seguindo as regras do contraditório, estiverem engajados na consecução do bem comum e do interesse público.
          Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 6 de Julho de 2016
        

sexta-feira, julho 01, 2016

Elites que falham II

O Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, apanhou toda a gente de surpresa. O referendo marcado para 26 de Junho vinha causando alguma ansiedade, mas poucos pensavam que a decisão pela saída se concretizaria. Esperava-se que, apesar das paixões exacerbadas e da demagogia manifestadas ao longo do debate, o conhecimento antecipado das consequências negativas do corte com a Europa seria o factor determinante no posicionamento das pessoas. Infelizmente, não aconteceu.
Os argumentos da elite europeia não conseguiram demover os vários sectores da população que cada vez mais vêm-se manifestando insatisfeitos com a situação económica social de estagnação, com o desemprego elevado e com a evidência crescente das dificuldade das instituições da União Europeia em gerir crise sucessivas na região, designadamente a crise do euro, o terrorismo e o problema dos refugiados. O crescimento de forças políticas de extrema direita e de esquerda na Europa tem estado intimamente ligado ao nacionalismo, à xenofobia e aos ressentimentos provocados pelo rápido processo de globalização, pela percepção do poder crescente da Comissão Europeia e pelo presença de imigrantes vindos tanto de países recentemente integrados na União como de fora da União. As fracturas entre as elites e as populações ficaram completamente expostas ao longo de todo o processo que culminou com o referendo. Nem as ameaças externas que vêm despontado no horizonte, sob a forma do activismo russo na Ucrânia, o terrorismo jihadista e a eventual desintegração da Síria conseguiram unir as pessoas e evitar a deriva de posições que vem cavando o distanciamento entre as nações da Europa, entre as elites e o povo e entre os autóctones  e os emigrantes.
Historicamente o sonho de uma Europa unida nasceu de uma preocupação fundamental de conter ameaças externas, manter o equilíbrio interno e criar um ambiente de paz, justiça e liberdade propício ao desenvolvimento. Após a segunda guerra mundial o estabelecimento de um eixo franco-alemão envolvendo os Países Baixos e depois a Itália foi central para se ir além das rivalidades continentais que em mais de uma ocasião tinham provocado guerras totais no espaço europeu com destruição massiva de bens e pessoas. Fundamental nesse processo foi a presença americana, via NATO, a garantir a segurança necessária no quadro da guerra fria para que durante décadas a experiencia europeia evoluísse de um Mercado Comum para uma Comunidade Económica Europeia, integrando o Reino Unido em 1975.
 A partir de um certo momento o sucesso da experiência conjunta desses países, evidente na prosperidade conseguida e nos serviços prestados pelo Estado Social, entretanto construído, passou a ser uma referência no resto da europa e no mundo. Na primeira metade dos anos oitenta, países como Portugal, Espanha e Grécia, que durante décadas viveram sob ditaduras e que recentemente se tinham democratizado, foram integrados na Comunidade Económica Europeia (CEE), beneficiando de largos fundos estruturais para se colocarem no mesmo patamar dos outros. O mesmo processo iria depois verificar-se, na sequência da queda do Muro de Berlim em 1989, com os países da Europa do Leste que tinham estado durante décadas sob o manto do comunismo.
Chegado a este ponto, a Europa além de se confirmar como uma força para a democracia e um promotor da expansão de mercados e da sua regulação, mostrava-se como inovadora na criação de uma entidade supranacional onde países mantinham a identidade de estados ao mesmo tempo que se afirmavam mais europeus e cediam parte da soberania para instituições europeias. Tensões, inevitavelmente, desenvolveram-se à medida que se alargava o escopo da integração com a adopção do euro, a livre circulação e as transferências de poderes para a Comissão Europeia. Foram aceites enquanto reinou a prosperidade, mas ganharam uma outra dimensão quando veio a crise financeira em 2008, quando se perderam postos de trabalho com a globalização e apareceram imigrantes em massa. A falta de confiança instalou-se quando as lideranças mostraram-se incapazes de resolver os problemas. Piorou quando ficou patente que os sacrifícios exigidos eram distribuídos desigualmente, ficando os menos abastados com a maior carga. Em consequência alargaram-se as fracturas sociais e as divisões entre países. O Brexit é a primeira vítima disso. Outras estarão a caminho.
As incertezas geradas pela saída do Reino Unido vão ser consideráveis e afectam a todos. Cabo Verde não será excepção. 25% dos turistas que vêm a Cabo Verde têm origem no Reino Unido. A considerável baixa já verificada da libra em relação ao euro, a manter-se, certamente irá encarecer o destino Cabo Verde. A perspectiva futura de aumento das taxas de juro e de rendimentos menores dos britânicos poderá afectar o fluxo de turistas nos próximos anos. Indirectamente o país ainda poderá ser afectado porque provavelmente com o Brexit haverá menos crescimento económico e mais instabilidade na União Europeia e sabe-se que daí é que vem o grosso dos investimentos, das remessas e da cooperação internacional. Juntemo-nos a todos os que esperam que esta crise seja uma oportunidade para a liderança da União Europeia se colocar à altura dos problemas que confronta. É fundamental que a UE continue a ser uma referência mundial de democracia, de tolerância e de civilização.
               Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de  29 de Junho de 2016