Em mais um aniversário da Independência Nacional, o quadragésimo primeiro, as comemorações foram marcadas por ritos, cerimónias e discursos de exaltação patriótica que apelam ao renovar do patriotismo em particular junto das novas gerações. O espírito patriótico resulta da consciência de pertença a uma comunidade política nacional irmanada por princípios e valores da liberdade, da democracia, de justiça e de solidariedade. Renová-lo nas datas nacionais e mantê-lo vivo ao longo de todo o tempo é essencial para o ambiente político, económico, social e cultural, que se quer de afirmação do indivíduo, da promoção da diversidade, de livre manifestação de interesses, do pluralismo político e de incentivo à criatividade e que já mostrou ser indispensável para gerar dinâmica sustentada e atingir o grau de desenvolvimento almejado por todos.
O discurso do patriotismo tem experimentado nos últimos tempos em vários países um inesperado ardor e contundência que preocupa, porque em vez de reafirmar a unidade da nação e a importância da contribuição de todos para o bem comum, tende a dividir, a vitimizar uns e a culpar outros. Ouvir Marine Le Pen e outros políticos da extrema-direita europeia a apelar aos “patriotas” em contraposição aos que seriam os “globalistas” relembra processos de divisão nas sociedades e nas democracias que no passado desemborcaram em regimes totalitários, fascistas e comunistas, e em guerra mundial. Discurso similar ouviu-se durante todo o processo que levou ao referendo no Reino Unido. À volta da questão de imigrantes procurou-se dividir as pessoas exacerbando as diferenças entre as gerações e entre uma elite cosmopolita e europeia e outras classes mais nativistas e patrióticas. Viu-se o resultado no Brexit e no espanto e consternação pela saída do Reino Unido da União Europeia. O mesmo também está acontecer nos Estados Unidos da América com o fenómeno Donald Trump que já se posicionou com candidato do partido republicano para o cargo de presidente nas eleições de Novembro. As consequências de uma eventual vitória de Trump seriam simplesmente desastrosas a nível global afectando as relações entre os países, e a paz e a segurança mundial.
Robert Reich, ex-Secretário de Trabalho no governo Clinton e Chanceler na Universidade da Califórnia chamou recentemente a atenção para a ascensão de um certo discurso político que ele classificou de “patriotismo exclusivo”. Um discurso de certos sectores que se consideram os mais puros e defensores dos valores nacionais em contraposição com os que supostamente se vendem ao estrangeiro porque são cosmopolitas, ou são multiculturalistas ou tolerantes das diferenças raciais, sexuais e religiosas. Para eles as regras e as instituições democráticas e os princípios da liberdade e da igualdade de oportunidades não têm de ser respeitados a todo o momento em particular quando o que consideram altos valores se alevantam. Justificam o seu patriotismo exclusivo com o novo ambiente mundial criado pela globalização que destrói milhares de postos de trabalho nos países desenvolvidos, pelas migrações massivas que sobrecarregam os sistemas de segurança social e introduzem forte concorrência no mercado de trabalho e pelo terrorismo que cria insegurança e deixa os cidadãos desamparados sem a protecção do Estado. A fragilização e quase colapso dos partidos colocados ao centro, seja ao centro-esquerda seja ao centro-direita, têm sido acompanhados da ascendência dessas forças políticas situadas nos extremos da vida política com discursos que cada vez mais se reclamam deste patriotismo exclusivo.
Cabo Verde conhece bem as consequências de se persistir na reivindicação da condição de patriotas só para alguns quando há muito se deixou para trás a polarização política inicial dos tempos da independência. Em condições ideais instala-se um regime antidemocrático em que os autoproclamados “melhores filhos” acham-se no direito de governar sem necessidade de consentimento dos outros como aconteceu nos primeiros quinze anos da independência. No regime democrático que se seguiu ao 13 de Janeiro, a persistência de resquícios desse patriotismo exclusivo dificultou a consolidação do regime democrático, desincentivou o diálogo, impediu compromissos e não deixou muito espaço para negociações entre as forças políticas. Quantas vezes no embate parlamentar não se consegue avançar no debate e chegar a acordo porque uma das partes considera a sua posição patriótica e portanto superior, subentendendo-se que tem razão e que a outra parte estaria ao serviço de causas contrárias ao bem público.
É um facto histórico incontornável que as sociedades, que conseguem mobilizar as pessoas individualmente ou organizadas em empresas ou outras entidades ligadas à produção de riqueza para perseguir os seus interesses e realizar as suas ambições, ficam em melhor posição de colher os frutos do esforço de todos e de, colectivamente, fazer a comunidade avançar a um passo sem precedentes. Também sabe-se que contribui extraordinariamente para o sucesso nessa via, se no plano político de determinação da orientação a dar à sociedade, vigorarem os princípios da concorrência, da igualdade de oportunidades, do pluralismo, do primado da lei e da resolução pacífica de conflitos. O pressuposto básico para isso é que todos se sintam cidadãos em pleno, unidos pelos princípios e valores plasmados na Constituição da República.
É esse sentimento que constitui o patriotismo inclusivo que há que promover para que o desenvolvimento do país prossiga sem querelas inúteis. Porque ninguém é mais patriota que o outro e patriotismo não é argumento quando todos, seguindo as regras do contraditório, estiverem engajados na consecução do bem comum e do interesse público.
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 6 de Julho de 2016
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