A suspensão de mandato do presidente da república a partir do momento do anúncio público da sua recandidatura para o cargo continua a criar desconforto por variadas razões. Aconteceu recentemente nas exéquias de Estado do Dr. António Mascarenhas Monteiro, o primeiro presidente da II República, em que o Dr. Jorge Carlos Fonseca, o actual presidente da república, só pôde intervir na qualidade de amigo e por expressa vontade do ilustre falecido. Assim foi porque está suspenso das suas funções por razões eleitorais. Em consequência na cerimónia estavam presentes o presidente da república interino e o actual presidente, o presidente da assembleia nacional e o interino. A questão que se coloca é se os ganhos antecipados com a suspensão de mandado do PR justificam a ausência dos reais titulares dos cargos públicos deste e de outros actos de elevado simbolismo e de importância para a governação e para as relações externas do país.
A suspensão de mandato do presidente da república e de outros titulares de órgãos de soberania e também do procurador-geral da república e do chefe e vice-chefe das forças armadas é determinada pela lei eleitoral em vigor no artigo 383º nº 3. A norma constava do texto original da Constituição de 1992 plasmada no artigo 118º nº 2. Deixou de ali constar a partir da revisão constitucional de 1999 mas manteve-se na lei eleitoral até hoje. Supõe-se que as razões para a sua introdução tenham a ver com o eventual uso dos cargos nos órgãos de soberania ou então nos cargos de PGR e de chefia das tropas para manipular situações e aumentar as probabilidades de ser eleito para o órgão singular, suprapartidário, representativo da toda a nação e moderador do sistema político que é o presidente da república. Provavelmente no desenho do que veria a ser o ordenamento jurídico-político da II República quis-se prevenir que situações de influenciação indesejada das eleições se verificassem. A proximidade das eleições presidenciais e legislativas, normalmente separadas entre um e dois meses, justificava ainda mais essa salvaguarda.
O comando para suspensão de mandato tem sido cumprido nos vários ciclos eleitorais sem grandes sobressaltos com excepção do caso do anúncio de candidatura do Dr. Carlos Veiga no ano 2000. O Presidente Mascarenhas Monteiro cumpriu-o em Dezembro de 1995 quando anunciou a sua recandidatura assim como o fez dez anos depois o Presidente Pedro Pires em Dezembro de 2005. Também nos casos em que os candidatos eram deputados como aconteceu em 2000 com Pedro Pires e com Aristides Lima em 2011; não houve sobressaltos.
A controvérsia só se estalou quando o então Primeiro-ministro Carlos Veiga se declarou publicamente candidato ao cargo de presidente da república. Os que anteriormente o criticavam por exercer o cargo de PM apesar de informalmente se saber das suas intenções de se candidatar a presidente passaram a ser os maiores críticos da sua posição em respeitar o comando da lei eleitoral que impunha a sua suspensão. Em ambas situações viam manipulação político-eleitoral ficando o visado na posição clássica de ser “preso por ter cão e preso por não o ter”. Conclusão: onde mais se esperaria que fosse eficaz – caso do PM que se candidata a PR - a lei não conseguiu evitar que surgissem suspeições de influenciação indevida. Por isso, falhou.
A revisão constitucional de 2010 veio ditar depois um período de separação de seis meses entre a realização das eleições legislativas e as presidenciais. Por essa via, na prática, acabou com a necessidade de alguém que é primeiro-ministro ou detentor de qualquer outro cargo ser obrigado a suspender o mandato para se candidatar a presidente da república. Seis meses são suficientes para qualquer cidadão que se sinta qualificado para se colocar na posição de potencial candidato a PR se livrar de eventuais amarras partidárias, institucionais ou outras que poderiam obstar a sua candidatura. Esvaziada do seu propósito, a norma da suspensão já não faz sentido. Se até agora não foi extirpada da Lei Eleitoral deverá sê-lo na próxima revisão da lei.
Como dizem os constitucionalistas, a substituição interina do PR deve ser vista como “uma situação de excepção e como situação de breve duração”. Uma das consequências da norma da suspensão de mandato referida é que sempre que um presidente da república se recandidata o país tem que conviver com um PR interino que pode ir até quase três meses enquanto se finaliza todo o processo eleitoral. Considerando que o PR interino está limitado nos seus poderes, é todo o sistema político que pode ressentir-se do facto de não beneficiar do exercício pleno das competências presidenciais e da influência derivada da “qualidade” presidencial que evidentemente só a tem quem é o titular do cargo.
Por todas essas razões é de se revogar o artigo 383º nº. 3 para que em Cabo Verde – como aliás noutras paragens, seja em sistemas políticos presidencialistas como nos Estados Unidos ou semi-presidencialistas como em Portugal ou França – ninguém tenha que suspender seu mandato a partir do anúncio da sua candidatura ou recandidatura para o cargo de presidente da república.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 773 de 21 de Setembro de 2016.
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