sexta-feira, dezembro 16, 2016

Atitude ou método?

Volta e meia a questão linguística cria controvérsia em Cabo Verde. Às vezes é por causa do crioulo que se quer promover como língua oficial e/ou língua de ensino. Outras vezes é porque se ficou com a impressão que o português está a ser diminuído ou a perder importância. As reacções acaloradas aos posicionamentos nestas matérias não deixam de provocar alguma perplexidade. De facto, devia ser pacífico que tudo se fizesse para promover a língua portuguesa. Afinal ela é a língua oficial do país e logicamente o exercício pleno da cidadania por todos os caboverdianos exige o conhecimento suficiente da língua tanto escrito como falado. Quanto ao crioulo ele é indisputavelmente a língua materna dos caboverdianos. Supostas ameaças à sua existência apenas vislumbradas por aqueles que ainda se revêem em lutas identitárias e em actos de “resistência cultural” não deviam ser objecto de ansiedade.
A realidade nua e crua do sistema de ensino como diz a Ministra de Educação é que 44% dos alunos que iniciam o ensino básico não terminam o liceu. E uma das razões apontadas pela ministra são as insuficiências a português. Em resposta a isso propõe-se mudar a metodologia do ensino no sentido que mais se ajuste ao processo de aprendizagem de uma língua segunda ou de uma língua estrangeira. A última controvérsia surgiu aparentemente do facto de se ter aventado a hipótese de ensinar o português como língua estrangeira. Tomou-se isso como uma forma de diminuição do português e concomitantemente como mais um expediente para a promoção do crioulo no ensino. Mais uma vez a questão da eficácia no ensino da língua e de melhores resultados em todas as outras disciplinas ficou em segundo plano ofuscada por essas questiúnculas recorrentes. 
A escola pública obrigatória é uma criação das repúblicas. Desde os primórdios da revolução americana, os pais fundadores, em particular, Thomas Jefferson viu na escola pública o veículo fundamental para a criação de igualdade de oportunidades e para o aparecimento de cidadãos consciente dos seus direitos, capazes, com autonomia suficiente, de fazer bom uso da leitura, escrita e aritmética básica para tratar os seus assuntos pessoais e para evoluírem como indivíduos  e cidadãos e ainda de seguirem com devida atenção a acção do governo e evitar que a tirania e a irresponsabilidade se instalassem na esfera pública. A escola pública falha em Cabo Verde quando não é eficaz em dotar um número tão elevado de crianças da adequada competência linguística na língua oficial da República necessária para o exercício de uma cidadania plena.
Recentemente o ex-ministro António Correia e Silva reconheceu num texto publicado no jornal “A Nação” de 23 de Junho que “só sendo bem-sucedida no ensino da língua portuguesa a escola pública será inclusiva, deixando de ser reprodutora de desigualdades”. Num outro ponto do texto foi peremptório em afirmar que “um português acessível a todos é a via de emancipação”. É pena que não tenha convencido o governo a que pertenceu da importância central do domínio da língua portuguesa no sucesso na escola, na mobilidade social e na afirmação da cidadania. Durante estes últimos dez anos sentiu-se mais pressão em fazer avançar o crioulo como língua oficial e de ensino do que em encontrar uma resposta adequada à absurda situação de países, Portugal e Brasil, também com o português como língua oficial, a exigir aos estudantes caboverdianos provas de proficiência na língua portuguesa para admissão nas suas universidades. Lutas identitárias de há muito fracturantes da sociedade cabo-verdiana impediam a focalização no problema real que o sistema de ensino tem - défice de conhecimento do português – e a procura da estratégia certa para o resolver.
O mais natural é que na busca de maior eficácia no ensino do português se esforce por encontrar a melhor metodologia e a mais consentânea como a nossa realidade. Não se pode perder de vista que o espaço que muitas vezes o aluno tem para praticar a língua restringe-se à escola e que o seu principal, se não único interlocutor, é o professor. Por isso para o sucesso desse desiderato conta muito a atitude dos alunos, dos pais e da própria sociedade. Se todos tomam o estudo da língua como central na vida académica do aluno, as probabilidades de sucesso aumentam extraordinariamente. Mas se pelo contrário a relação com a língua é conflituosa, é vista como impositiva ou até como uma espécie de violência, dificilmente vai-se ter sucesso em ensinar a língua mesmo que se use o melhor método do mundo. Sabe-se, por exemplo, que em matemática se um aluno embirra com a matéria por causa de um professor ou de algum revés traumatizante sujeita-se a anos de insucesso se não se libertar da atitude preconceituosa em relação à disciplina. 
O problema com o português em Cabo Verde é também um problema de atitude com origem nas disputas fracturantes à volta da identidade cabo-verdiana que infelizmente o Estado, a comunicação social pública e as escolas têm alimentado ao longo dos anos. O esforço oficialmente desenvolvido de “reafricanização dos espíritos” retirou aos caboverdianos a tranquilidade quanto à sua posição no mundo que a geração da Claridade já tinha estabelecida. Oitenta anos depois é evidente que estavam certos. Recuperada a tranquilidade sobre quem somos e alargado o ensino português para o pré-escolar seguramente que uma outra atitude dos alunos e da sociedade fará do domínio do português o instrumental vital para o sucesso e a afirmação de todos como indivíduos e como cidadãos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 785 de 14 de Dezembro de 2016.

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