Os acontecimentos de 2016 já o qualificam como candidato a ano charneira. Para muitos observadores, 2016 poderá vir a ser considerado pela história da mesma forma que é hoje visto o ano de 1945 do fim da II Guerra Mundial, o ano 1989 da Queda do Muro de Berlim, o ano de 2001 de Ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque e do ano de 2008 da implosão do banco Lehman Brothers. Foram todos grandes momentos que redefiniram o mundo nos domínios político, geoestratégicos e económico com grande impacto a nível social, cultural e até civilizacional. Também 2016 promete ser o ano que vai dar início a uma nova era em que muito do que já se dava como garantido cede para novas formas de relacionamento entre os estados, novas prioridades no comércio entre as nações e um novo entendimento da democracia e de como se distingue do autoritarismo.
A democracia representativa é sem dúvida uma das maiores vítimas dos acontecimentos do Ano 2016. É só ver a deriva iliberal por que passam democracias recentes como a Hungria e a Polónia e o crescimento do movimento extremistas de direita e de esquerda com forte pendor populista em países como a Holanda, França e a Suécia. Ou então constatar como o populismo influenciou decisivamente os referendos no Reino Unido (Brexit) e na Itália ou contribuiu para a Espanha ficar mais de um ano sem governo. A cereja em cima do bolo da nova onda populista foi, sem dúvida, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos da América.
Paixões diversas, ressentimentos e desconfiança em relação às “elites” e também em relação às instituições, a começar pelos partidos políticos, passaram a ser o que realmente move as pessoas e pesa no voto de muitos. Em vez de ponderar as razões nas políticas alternativas apresentadas pelos diferentes candidatos e partidos escolhe-se outro caminho onde a emoção, o medo e a falta de confiança no futuro galvanizam as pessoas à volta do chefe e das suas soluções. Hoje ninguém esconde que graças ao uso massivo das redes sociais para informação e comunicação a nível planetário vive-se num mundo da pós-verdade ou do pós- facto no qual a instrumentalização de notícias pode ser orquestrada até como política de Estado, como se suspeita foi o caso nas últimas eleições americanas.
Em Cabo Verde também 2016 foi um ano especial. Realizaram-se três eleições entre Março e Outubro e com as vitórias do MpD nas legislativas e nas autárquicas terminaram os 15 anos de governo do PAICV e alargou-se a maioria autárquica do MpD para um nível nunca antes atingido. Apesar do protagonismo político nas eleições ter sido sempre apresentado com vestes partidárias não passaram despercebidos os sinais do populismo a mover-se energeticamente dentro dos partidos. Não é de estranhar. Também em Cabo Verde, por razões diversas, há queixas quanto à representação política e ao parlamento e há fortes críticas dirigidas aos políticos e aos partidos que são similares às feitas noutras democracias. Se se juntar a isso o desapontamento das pessoas pelos anos de estagnação económica depois de se lhes ter prometido uma agenda de transformação tem-se os ingredientes para o populismo se revelar nos discursos anti-política e anti-partido, no culto de personalidade dos líderes e nas soluções simples para problemas e situações complexas.
Os efeitos do populismo continuam a fazer-se sentir mais de nove meses após as eleições. A desinstitucionalização que provocou no seio dos partidos com o acicatar das lutas entre as “bases” e as “elites ou barões” e com estímulo a ambições descontroladas não ficou por aí. Acabou por afectar as instituições democráticas do país. Veja-se o estado actual do parlamento, a eficácia perdida num governo limitado a doze membros e a divisão interna no PAICV que ameaça ainda por muito tempo limitar a actuação da oposição. Veja-se ainda o fervilhar na comunicação social de reivindicações, protestos e ameaças de greve. Não se viu semelhante durante os 15 anos do governo anterior. Talvez porque depois dos anos de ilusionismo caiu-se na tentação de pensar que as soluções seriam fáceis e rápidas quando justamente o que o país precisa é de um esforço colectivo e paciente para ultrapassar os muitos e complexos obstáculos que se colocam ao seu desenvolvimento.
Nos dois primeiros meses de 2017 os dois maiores partidos, MpD e PAICV, vão reunir os respectivos órgãos máximos, convenção e congresso, e eleger os seus líderes. Da forma como organizarem o processo eleitoral, em termos de representatividade dos delegados e de consagração do pluralismo interno, irá depender se continuará por mais tempo a tentação populista e a sua acção nociva. Uma acção mais evidente nos partidos de oposição porque aí sem o “cimento” do poder nota-se claramente o mal-estar nas hostes. Mas mesmo quando não é tão visível nada lhe impede de ser nefasta e de extravasar o partido e enfraquecer a democracia. In extremis vê-se na Venezuela o que o populismo pode fazer às instituições democráticas.
A verdade é que a democracia não existe sem partidos, mas os partidos têm que ser democráticos com liberdade e pluralismo assim como exige a própria Constituição. 2016 provou quão perigoso é o populismo. Para o bem da democracia não há que dar-lhe qualquer trégua em 2017.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 787 de 28 de Dezembro de 2016.
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