terça-feira, março 27, 2018

Dois anos depois: Balanço preocupante

Há dois anos atrás, no dia 20 de Março, anunciava-se uma nova alternância na governação de Cabo Verde. Com a vitória do MpD terminavam os quinze anos ininterruptos de governo do PAICV. A sensação no país era de alívio, à mistura com alguma euforia. Para muitos, o terceiro mandato do PAICV tinha sido um exagero e vendo-o findar e ceder lugar ao que se esperava ser uma lufada de ar fresco era, de facto, razão para entusiasmo, renovação de esperança e confiança no futuro. Os últimos cinco anos tinham sido de estagnação económica em que ano após ano se ficou à espera da prosperidade e do emprego que resultariam da dinâmica dos clusters, hubs, interpostos comerciais e praças financeiras prometidos repetidamente.
Teria sido bom que a euforia da mudança não ofuscasse as tremendas dificuldades que o país iria encontrar no novo ciclo de governação. Não devia escapar a ninguém que Cabo Verde já fora do grupo dos países menos desenvolvidos certamente iria encontrar maiores dificuldades em mobilizar ajuda externa e em conseguir empréstimos concessionais. Piorava a situação o facto de iniciar uma nova fase como país de rendimento médio atolado numa dívida pública superior a 120% do PIB e dívidas contingenciais do sector empresarial do Estado em particular da TACV que, por elevar ainda mais esse valor, tornava a dívida quase insustentável. A acrescentar a isso, e ao crescimento raso de muitos anos, ficaram reformas por fazer, em particular, na administração pública que poderiam ter tornado o país mais competitivo e alterado para melhor o seu ambiente de negócios.
Por outro lado, é verdade que o turismo, devido em parte a uma conjuntura favorável provocada pela retracção dos mercados tradicionais do Norte de África, ganhou forte dinâmica nas ilhas do Sal e da Boa Vista e serviu para impedir que o crescimento fosse ainda mais diminuto e também para criar milhares de postos de trabalho. O efeito, porém, era insuficiente como constatavam as pessoas nas outras ilhas e, em particular, nas zonas rurais que viam a sua vulnerabilidade perante as chuvas e outras contingências manter-se ou sem alteração perceptível. O mesmo acontecia com os muitos jovens dos centros urbanos espalhados pelo país com formação secundária e até superior que se apercebiam que a economia não tinha emprego para eles e os apetecidos lugares no Estado eram cada vez mais escassos. A consciência de que mesmo na falta de sinais claros de conturbação social a situação era crítica viu-se na forma determinada como foram decididas as três eleições: legislativas, autárquicas e presidenciais, nesse ano de 2016 a favor de uma mudança na visão, no estilo e nas pessoas que deviam orientar o país.
É facto que nesses dois anos a economia tem crescido três ou mais vezes do que nos anos anteriores e que as projecções para o ano de 2018 e seguintes apontam para valores superiores a 4% do PIB. Os dados do INE levam a crer que a retoma teria iniciado no último trimestre de 2015 em conjugação com a nova dinâmica da economia mundial e em particular da economia da União Europeia que finalmente parece deixar para trás os efeitos da crise financeira e do euro. Um outro impulso para o crescimento resultou da entrada de um novo governo disposto a promover o sector privado e que, por esse facto, de imediato se constituiu num factor de maior confiança na economia. Está-se porém ainda longe dos 7% do PIB prometidos e o número de postos de trabalhos criados mantém-se aquém do desejável especialmente para os que cada vez em maior número terminam os seus estudos universitários.
Esperavam-se reformas mais rápidas e mais profundas designadamente na administração pública, nas empresas públicas, no ambiente regulatório, no sistema de segurança, na comunicação social pública e na educação. A situação herdada era crítica e o mandato recebido de forma bem clara e vigorosa foi para pôr em prática as soluções propostas ao eleitorado. É percepção geral que até agora ainda não se conseguiu um nível de coordenação da acção estatal que, por um lado, diminua as ineficiências e aumente a eficácia e a produtividade dos serviços prestados e, por outro lado, promova a paz social e faça convergir as vontades no esforço nacional para potenciar recursos, fazer reformas e assumir novas atitudes necessários ao desenvolvimento. Pelo contrário, nota-se com apreensão alguma agitação social, greves inusitadas e sinais de contestação da autoridade do Estado. E não se pode simplesmente dizer que resultam de cabalas ou conspirações orquestradas pela oposição. Não lhes é alheio o funcionamento notoriamente deficiente do parlamento e de sectores da justiça e o relacionamento entre os órgãos de soberania marcado por posturas às vezes pouco curiais dos seus titulares que pela sua novidade no que respeita à prática constitucional deixam um rasto de perplexidade.
Estes dois anos do novo ciclo de governo têm coincidido com fenómenos preocupantes a nível global, não só porque convergem na sua vertente antidemocrática, como também ameaçam a globalização e as oportunidades que proporciona especialmente aos países mais pequenos e insulares. Tomam a forma do populismo, do iliberalismo, da ditadura da maioria e revelam-se em tendências autocráticas. Tem-se manifestado de várias formas em todas as democracias recentes ou maduras e Cabo Verde não é excepção. Assim como outros países, o país não está imune aos efeitos de críticas destrutivas às instituições democráticas, ao aumento da desigualdade social, aos efeitos das migrações e à forte tentação dos actores políticos para se engajarem em políticas identitárias. Os sinais vêem-se na dinâmica no interior dos partidos designadamente na submissão ao líder e na forte e agravada crispação que tem sido a relação entre os partidos políticos.
Consegue-se dar a maior machadada na democracia e favorecer todos esses populismos fazendo as pessoas acreditar que os partidos são todos iguais e que alternância não significa uma lufada de ar fresco mas sim mais do mesmo. Pior ainda, se no processo de diabolização mútua se se conseguir que a democracia fique sem partidos políticos credíveis e sem alternativa. Como se pode ver da experiência de outros países é esse o momento que se abre o caminho para a ascensão do “homem forte” e da ditadura. Não é o destino que se quer e por isso é que no aniversário da alternância é de maior importância defender os princípios e valores que a tornam sempre possível e pressionar para que os partidos políticos, essenciais como são para a criação da vontade popular, funcionem dentro dos princípios da ética e no respeito pelo primado da lei por forma a se se manterem sempre credíveis junto do eleitorado.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 851 de 21 de Março de 2018.

segunda-feira, março 19, 2018

Excessos contraproducentes

Desde primórdios da democracia que a crispação política sempre caracterizou a cena política cabo-verdiana. É uma crispação às vezes mais feroz e outras vezes com mais ou menos picardias pelo meio aumentando e diminuindo de intensidade um pouco ao sabor dos ciclos eleitorais. De tempos em tempo sobe anormalmente de tom devido a algum facto político mais fracturante para, logo de seguida, descer para os níveis de guerrilha habitual entre as forças políticas.
O estado de crispação que se vive de há quase dois meses para cá destoa em vários aspectos do já conhecido. Além de durar mais e de ser de intensidade anormal aponta directamente para alvos a abater. Perante o insólito da situação fica-se com a impressão de que o tom mais agressivo no embate político poderá dever-se à quebra de algum acordo tácito entre os partidos quanto aos limites a não ultrapassar na luta política.
O ponto de partida nesta última reedição da crispação política terá sido a autorização para um deputado do PAICV ser ouvido como testemunha e a promessa da maioria parlamentar em rever os termos de levantamento de imunidade a deputados para responderem a processos judiciais. Independentemente das razões, o facto é que a partir da sessão do parlamento de Janeiro último tudo passou a ser pretexto para demonstrar que a outra parte na luta política está imersa profundamente na corrupção. Foram trazidos à baila as inspecções feitas a câmaras municipais e a outras instituições, consensos à volta da alteração de taxas aduaneiras foram rompidos e a TACV, em sede da comissão de inquérito parlamentar, foi alvo de escrutínio mais apertado à procura dos milhões supostamente omissos provenientes da vendas de aeronaves. Ao mesmo tempo procurou-se focalizar a atenção sobre a relação de Olavo Correia com a Tecnicil e possíveis conflitos de interesse que poderão surgir da relação entre o actual titular do cargo de ministro das Finanças e a empresa que no passado administrou e é accionista quando se sabe que uma das vertentes da política económica do governo é promover o sector privado nacional e que não é fácil a todo momento estabelecer uma fronteira acima de qualquer suspeita entre favoritismo e promoção empresarial legítima.
Para um país a braços com as condições difíceis que tem que enfrentar - a começar pela dívida pública acima dos 125% do PIB e com problemas sérios em vários sectores – não ter diálogo construtivo entre, por um lado, o Estado, os parceiros sociais e a sociedade e, por outro, entre as duas principais forças políticas, pode significar deixar-se adiar para um ponto de difícil retorno. A balbúrdia política que se tem ouvido nestas semanas não serve a ninguém. Pelo contrário, cria um ambiente em que todos vão se sentir tentados a tirar o máximo que for possível de onde puderem ou estiverem. E está a acontecer. Não há uma predisposição das pessoas para com o seu esforço “somar” e “multiplicar”, mas existe para subtrair e dividir.
Nunca se falou tanto em greves e manifestações. As forças políticas tratam-se como inimigos. Os sindicatos nas suas reivindicações fazem por ignorar a situação real das empresas. Os operadores económicos continuam expectantes quanto aos resultados das políticas do governo para facilitar o financiamento, diminuir os custos de contexto, baixar os preços de energia e água e resolver os problemas de transportes inter-ilhas. Por outro lado, nota-se que a actuação na esfera pública é cada vez mais marcada por um excesso de protagonismo que não deixa margem para grandes entendimentos, nem para se insistir no cumprimento das regras e dos procedimentos e nem para compreender que raramente há soluções simples para situações complexas. No parlamento esse excesso de protagonismo é mais visível mas também se nota com preocupação nos outros órgãos de soberania e nas câmaras municipais. Perde-se com isso globalmente em autoridade do Estado e espírito de disciplina na sociedade ao mesmo tempo que aumenta a submissão a caprichos arbitrários de quem no momento detém o poder.
A controvérsia à volta da alteração das taxas aduaneiras é paradigmático do desnorte e do impasse político e social que o ambiente de crispação exacerbada provoca. Ao invés de um debate sobre os efeitos dessas medidas de política na economia e o seu impacto nos consumidores dedica-se praticamente o tempo todo a discutir quem é responsável pela lei, se é do governo, da oposição, da câmara de comércio ou do parlamento. Ficando por aí ninguém é, de facto, responsabilizado, ilações não são tiradas das políticas adoptadas, não são conhecidas as alternativas de política possíveis e não se desenvolve um processo firmado no contraditório para se fazer eventuais correcções.
A democracia, porém, não funciona assim. Nas democracias sabe-se sempre a quem assacar as responsabilidades e no regime com forte feição parlamentar que se tem em Cabo Verde é evidente que quem responde pela condução da política interna e externa do país é o governo, suportado pela sua maioria parlamentar. Para o bem do país, da democracia, e do pluralismo, essa responsabilidade deve ser assumida frontalmente e não ser diluída ou partilhada com os outros poderes ou com a sociedade. Desempenhando cada um o seu papel em pleno menos razões haverá para crispação e mais profícua dinâmica política irá ajudar o país a encontrar os melhores caminhos do desenvolvimento.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 850 de 14 de Março de 2018.

segunda-feira, março 12, 2018

“Virar-se para dentro” não é solução

As alterações nas taxas aduaneiras de produtos como água engarrafada, sumos, leite e lacticínios aprovadas na lei do Orçamento do Estado para o ano 2018 têm sido desde de 1º de Janeiro matéria de intensa discussão no parlamento, na comunicação social e na sociedade. Por um lado, discute-se a sua pertinência e eficácia no quadro das políticas de apoio às indústrias nacionais.
 Por outro, questiona-se se o timing escolhido para a sua apresentação e aprovação foi intencional para privilegiar interesses perfeitamente iden-tificáveis e se é legítimo fazer isso mesmo na ausência de potenciais conflitos de interesses. O assunto é particularmente delicado porque, à partida, sabe-se que os consumidores vão perder com os preços elevados dos produtos habituais e não há certezas que serão compensados pelos novos produtos tanto no custo como na qualidade.
Apoio tarifário de governos à indústria nacional sempre foi rodeado de controvérsia em todos os países. Tende a privilegiar uns e a prejudicar outros e a afectar negativamente o comércio internacional. Com as quebras no volume de trocas todos os países acabam por arcar com as consequências, seja na diminuição da capacidade de criação de riqueza, no número de empregos e nos preços pagos pelos consumidores. Um exemplo recente é o anúncio feito pelo presidente Trump de aumentar as tarifas para o aço e o alumínio importados e que foi logo seguido de uma avalanche de reacções. A medida, pelas suas eventuais consequências, designadamente no valor do dólar, na taxa de juro e no custo de produtos estrangeiros incorporados impacto nas exportações, não reúne consenso e é altamente contestada em certos círculos. Não espanta que iniciativas do género sejam vistas com desconfiança e se procure activamente investigar se resultam de lobbies, se são actos de favorecimento de grupos económicos ou de indivíduos ou se são produto de políticas bem-intencionadas dos governos. A percepção que se tem é que os efeitos são globalmente negativos, mesmo quando a curto prazo apresentem sinais positivos em matéria de emprego, de diminuição do défice da balança comercial e de aumento das receitas alfandegárias.
Décadas atrás a protecção das indústrias nacionais pela via de barreiras tarifárias em países como o Brasil, Argentina e vários outros da América Latina foi uma peça fundamental do chamado modelo de desenvolvimento com base na substituição de importações. Em retrospectiva constata-se que perderam anos de desenvolvimento a procurar industrializarem-se seguindo esse modelo. Já os países do Sudeste asiático, os chamados Tigres da Ásia, as Maurícias e posteriormente a China, com uma opção oposta, rapidamente atingiram patamares de desenvolvimento elevados ao mesmo tempo que desenvolviam um sector privado nacional forte, orientando a sua economia para exportação. Assim, enquanto uns se fechavam no mercado interno, sacrificando a criação de emprego, o poder de compra dos consumidores e a produtividade do país, outros esforçaram-se por atrair investimento externo, por incentivar as empresas a se tornarem competitivas e por dar boa qualificação à mão-de-obra nacional com o objectivo de conquistar mercados externos e de assegurar níveis elevados de emprego e aumento sustentado de rendimento das pessoas. Até recentemente pensava-se que as medidas proteccionistas preconizadas por esse modelo estariam completamente desacreditadas mas algo mudou após a crise financeira de 2008. Com a globalização a ser posta novamente em causa e com a progressiva ansiedade nos países desenvolvidos quanto à capacidade futura de criar empregos, assiste-se hoje a tentativas de recuperação de políticas proteccionistas que conjuntamente com as dirigidas contra a imigração supostamente estancariam a hemorragia de empregos em direcção aos países emergentes.
Em Cabo Verde foi seguida durante vários anos a via de desenvolvimento com base na substituição de importações. Era parte do pacote económico do regime de partido único. Teve consequências desastrosas. Muito do comércio informal que ainda existe nas confecções e calçado deve-se à protecção em forma de tarifas que se criaram na época para proteger as fábricas Morabeza e Socal. Também é evidente que da experiência não resultou qualquer sector privado com capacidade e motivação para se lançar na conquista de mercados externos nem dinâmica económica para ultrapassar a estagnação económica dos últimos anos do regime. Em meados de 1988 já era evidente para o governo do PAICV que o modelo tinha falhado completamente e que se impunha fazer uma “extroversão da economia cabo-verdiana”e ligar o desenvolvimento industrial à possibilidade de exportar. Em 1990, quando o MpD emergiu como força política foi peremptório em afirmar a sua ruptura completa com a tradicional política de industrialização pela via de substituição de importações.
Face à experiência vivida, estranha que mais de 25 anos depois reapareça uma espécie de unanimismo das forças políticas em matéria de protecção da indústria nacional pela via de tarifas e que se volte a pôr na ordem do dia as velhas políticas de substituição de importações. A votação quase unânime do artigo 27º da lei do Orçamento de Estado para 2018 que alterou a pauta aduaneira nos sumos, lacticínios e água engarrafada, não obstante as objecções essencialmente éticas que surgiram posteriormente, poderá estar a indiciar a presença de um sentimento de “virar-se para dentro” que estaria a manifestar-se tanto no seio da classe política como na sociedade cabo-verdiana. Um sentimento marcado por elemento identitário que, a exemplo do que se passa em outras paragens estaria a afectar a actuação política e outras interacções na esfera pública, e nem sempre de forma positiva. A política crispada, o foco na capacidade redistributiva do Estado e certa forma de ver a regionalização a par com sentimentos de hostilidade em relação ao turismo e à aproximação económica com a Europa seriam algumas das suas manifestações.
A verdade, porém, é que Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de se virar mais uma vez para dentro. Como bem se sabe da experiência anterior, tal opção não beneficia a indústria nacional, não põe de pé um sector privado dinâmico e não assegura o desenvolvimento que todos almejam.
                                                                                                                              

Face à experiência vivida, estranha que mais de 25 anos depois reapareça uma espécie de unanimismo das forças políticas em matéria de protecção da indústria nacional pela via de tarifas e que se volte a pôr na ordem do dia as velhas políticas de substituição de importações. A votação quase unânime do artigo 27º da lei do Orçamento de Estado para 2018 que alterou a pauta aduaneira nos sumos, lacticínios e água engarrafada, não obstante as objecções essencialmente éticas que surgiram posteriormente, poderá estar a indiciar a presença de um sentimento de “virar-se para dentro” que estaria a manifestar-se tanto no seio da classe política como na sociedade cabo-verdiana. Um sentimento marcado por elemento identitário que, a exemplo do que se passa em outras paragens estaria a afectar a actuação política e outras interacções na esfera pública, e nem sempre de forma positiva. A política crispada, o foco na capacidade redistributiva do Estado e certa forma de ver a regionalização a par com sentimentos de hostilidade em relação ao turismo e à aproximação económica com a Europa seriam algumas das suas manifestações.
A verdade, porém, é que Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de se virar mais uma vez para dentro. Como bem se sabe da experiência anterior, tal opção não beneficia a indústria nacional, não põe de pé um sector privado dinâmico e não assegura o desenvolvimento que todos almejam.
                                                                                                                                 Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 849 de 07 de Março de 2018.

segunda-feira, março 05, 2018

Regionalização: um non starter?

O governo, na semana passada, apresentou com pompa e circunstância a proposta de lei da regionalização. No encontro presidido pelo primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva e que reuniu ministros, deputados, presidentes das câmaras municipais e personalidades vindas expressamente de todas as ilhas foram expostas as razões que justificam a regionalização do país. Também discutiu-se o modelo proposto de ilha/região a aplicar a todo o país com excepção da ilha de Santiago, que tem duas regiões, e foram levantadas questões sobre competências a serem distribuídas pelo poder local, pelo poder regional e sobre a forma de como deverão interagir com o poder central e com as estruturas desconcentradas do Estado na ilha.
Para o PM, avançar com a regionalização significa “aumentar a eficiência administrativa e política relativamente aos resultados” e, por essa via, combater as  assimetrias e “reduzir as falhas de desenvolvimento”. Já a percepção de presentes que participaram no debate é que ainda há várias questões a clarificar no modelo apresentado e obstáculos legais e constitucionais a ultrapassar. Por outro lado, advinham-se dificuldades na criação de vontade política necessária para passar o pacote legislativo. A lei exige dois terços dos deputados e não é uma maioria fácil de conseguir no actual ambiente político crispado entre os dois principais partidos.
No fim da reunião ficou a promessa feita pelo PM de levar a proposta de lei ao parlamento no próximo mês de Março. Mostrou-se aberto a contribuições e alterações para melhor afinar o modelo mas é provável que a lei da regionalização venha a revelar-se um “non starter” ou seja, uma proposta que não consegue arrancar e andar com os seus pés, pelo menos a curto prazo. Alterações na Constituição terão que ser primeiramente feitas e o processo não é fácil nem expedito.       
Para alguns a criação de autarquias de grau superior nas ilhas com um só município parece um contra-senso, porque, ou é um simples município com poderes acrescidos, ou é uma região no mesmo território de um município e praticamente com os mesmos recursos. Em qualquer dos casos não cumpre com o que normalmente se quer das autarquias supramunicipais que é o de agregar vários municípios numa região administrativa para se conseguir dimensão territorial e reunir capacidade económica e financeira e também técnica para fazer diferente do que só um município faria.  
Algo significativamente diferente seria adoptar o modelo das Canárias em que os cabildos não são somente órgãos de governo e de representação das ilhas, mas também instituições da própria Comunidade Autonómica aptas a assumir em cada ilha a representação do governo e da administração autonómica. Aí faria sentido que os órgãos regionais superintendessem sobre estruturas desconcentradas do Estado nas ilhas como está-se a prever na lei da regionalização. De qualquer modo, mudanças importantes teriam provavelmente que ser introduzidas na Constituição para que o figurino ficasse mais em linha com o que se passa nas Canárias. E não é líquido que isso fosse possível.
Uma outra alteração prevista na lei da regionalização que também deverá exigir revisão constitucional, ou pelo menos clarificação constitucional, diz respeito ao modo de constituição dos órgãos regionais. Substitui-se o sistema actual previsto para os municípios de eleição directa dos membros da câmara e da assembleia pela eleição de um único órgão deliberativo ficando como presidente da comissão executiva da região o primeiro da Lista mais votada, mas sujeito à destituição por força de moção de censura apresentada pelos eleitos locais ou por não aprovação de moção de confiança. A instabilidade do governo local que poderá advir deste modelo convida a que se reflicta sobre a solução proposta.
Aliás, o governo na legislatura anterior chegou a levar ao parlamento alterações no mesmo sentido nos estatutos dos municípios, mas a proposta não passou. O espectro da instabilidade nas autarquias com a possibilidade de quedas sucessivas das câmaras municipais dissuadiu muitos de apoiar mudança tão radical no sistema actual de eleição autárquica que se manteve sem crise nos últimos 25 anos, à excepção da que aconteceu em S. Vicente em 1994/95 onde se realizou a única eleição intercalar já verificada nos municípios do país.
Um outro empecilho a um eventual compromisso para viabilizar a lei da regionalização são as normas que retomaram as incompatibilidades entre certos cargos políticos na comissão executiva regional e cargos partidários. Incompatibilidades similares já tinham sido apresentadas ao parlamento em 2017 por iniciativa do governo e não tinham merecido dos deputados apoio suficiente para aprovação. Não parece ser muito curial voltar à carga com os mesmos propósitos e depois esperar que haja boa vontade na formação de maiorias qualificadas para passar leis importantes.
Nesta corrida para descentralizar o poder de decisão e fazer uma repartição mais justa e equitativa dos recurso poder-se-á estar a seguir por um caminho prenhe em trazer problemas novos, complexos e imprevisíveis. Os múltiplos problemas do desenvolvimento de Cabo Verde têm, em parte, origem no modelo que durantes décadas reciclou a ajuda externa e por essa via alimentou o centralismo, cultivou a dependência e alimentou o espírito burocrático e as resistências à iniciativa individual e ao investimento nacional e estrangeiro. Resquícios desse condicionamento ainda se manifestam na aversão mais ou menos disfarçada pelo turismo, no olhar muito voltado para dentro, quase paroquial que faz apologia de políticas de substituição de importações e abre espaço para a rivalidade entre as ilhas e que também não prepara o país adequadamente para enfrentaros desafios do nosso tempo. A verdade é que sem incorrer nos riscos e imprevistos de uma regionalização apressada muitos dos agravos vivenciados pelas ilhas que se sentem marginalizadas poderiam já ter sido acolhidos e eventualmente resolvidos via instituições previstas na Constituição desde 1992.
Por alguma razão finge-se que não existe, por exemplo, o Conselho Regional, um órgão onde as ilhas estão igualmente representadas por dois membros eleitos e que tem competências várias precisamente para evitar assimetrias regionais, promover um desenvolvimento mais harmonioso e assegurar uma melhor alocação de fundos por forma a que o crescimento do país beneficie a todos. Para alguns convém que seja assim porque rivalidades entre as ilhas constituem um bom ingrediente para uma certa forma de fazer política. O problema é que “no fim do dia” ninguém ganha com isso: nem o país no seu todo, nem as ilhas vitimizadas, nem eles próprios porque como políticos não conseguem erguer-se acima do mundo mesquinho que constroem à sua volta.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 848 de 28 de Fevereiro de 2018.