segunda-feira, outubro 22, 2018

Demagogos vs. Pedagogos

Iniciou-se o novo ano parlamentar e logo se fez notar a falta de eficácia nos trabalhos da Assembleia Nacional. Estavam agendadas perguntas a ministros, em particular ao ministro da economia por solicitação do Paicv que queria respostas do governo sobre o que classificou de crise nos transportes aéreos e o tipo de contracto assinado com a transportadora aérea Binter.
 Considerando a actualidade da questão que veio na sequência das tensões entre a a Binter e Agência de Aviação Civil foi surpresa geral que os sujeitos parlamentares não conseguiram gerir adequadamente o tempo disponível para que esclarecimentos sobre a matéria fosse prestada pelo governo. Persistiram na forma costumeira como utilizam o tempo parlamentar com desperdício notório em interpelações à mesa que fogem claramente do figurino previsto para esse instituto no regimento. É de se perguntar se alguém de facto na AN estava interessado em que o assunto fosse a debate.
Claro que logo a seguir todos se acusaram mutuamente de não quererem o questionamento do membro do governo. Uma coisa é certa: a Nação é que ficou por ser esclarecida em sede do contraditório como devia. O mais estranho é que o governo e a sua maioria não se tenham esforçado mais para aproveitar a oportunidade e clarificar as questões sobre o transporte aéreo doméstico eliminando as incertezas que terão sido criadas com a reacção da Binter sobre os novos preços máximos fixados pela AAC. Os interesses do governo e da oposição não são simétricos. A responsabilidade do país cabe a quem governa assim como também lhe cabe garantir às pessoas, à sociedade e aos operadores económicos um ambiente de tranquilidade, de previsibilidade e de certeza onde todos os eventuais conflitos são dirimidos sem sobressaltos desnecessários. Se o ministro tivesse tido oportunidade de expor as posições do governo perante os representantes da nação na quarta-feira passada hoje ter-se-iam dados mais concretos sobre a situação dos transportes aéreos e provavelmente não se estaria perante mais um desencontro de posições sobre o futuro dos transportes marítimos, designadamente sobre a questão do serviço público e da exclusividade trazida no comunicado da associação dos armadores.
As democracias, enquanto sistemas de governo com base no voto popular periódico, legitimam-se no dia-a-dia pela sua disponibilidade em prestar contas e serem fiscalizadas através de checks and balance dos órgãos de soberania e pela sua abertura em serem permanentemente escrutinadas pelos órgãos de comunicação social e pela sociedade no seu todo. É evidente que se as decisões políticas forem vistas como tomadas fora do processo democrático, ou se não são debatidas e contestadas no parlamento ou ainda se procura evitar que os médias façam luz sobre como o poder é exercido, inevitavelmente um muro de desconfiança acabará por separar os cidadãos dos poderes públicos. Parte do que hoje se chama crise da democracia resulta dessa erosão das instituições, da falta da acountability geral e da subordinação da classe política aos ditames de um eleitoralismo que se centra no impacto político partidário de curto prazo e confronta problemas complexos da sociedade procurando varrê-los para debaixo do tapete ou chutando-os para frente, esperando que se resolvam por si.
Curiosamente nota-se em muitos casos que quem devia primar pela defesa das instituições é o primeiro a juntar a sua voz à dos eternos descontentes da democracia e a pôr em causa os direitos fundamentais e a democracia representativa. Minam as instituições democráticas e, acto contínuo, à procura de ganhos políticos, assumem a dianteira na crítica às insuficiências daí resultantes. Nem se dão conta que abrem portas a demagogos e candidatos a autocratas.
Há pouco tempo numa entrevista a um jornalista do New York Times o novo presidente da Colômbia Iván Duque dizia que um populista é sempre um demagogo e do que hoje as sociedades não precisam são de demagogos. Precisam, acrescenta ele, de pedagogos que podem dizer a um país “ onde queremos ir, como fazer para que o queremos aconteça e o que é todos têm que dar para realizar esses objectivos”. Infelizmente essa não parece ser a opinião de muita gente. A atracção por demagogos está a se mostrar forte tanto nas democracias mais consolidadas designadamente nos Estados Unidos e na Europa como nas democracias mais recentes como bem testemunha a ascensão meteórica de Bolsonaro, no Brasil. Para muitos desses políticos emergentes fica mais fácil juntar-se a forças dirigidas contra as instituições democráticas e pretender oferecer soluções fáceis para problemas complexos do país e da sociedade. Paradoxalmente usam a condenação geral da corrupção para fazer as pessoas deixarem de confiar nas instituições e se entregarem cegamente sob protecção de um chefe, ditador ou autocrata que se lhes apresenta como moralmente superior, ou como autêntico ou ainda com um outsider, um político diferente de todos os outros.
Em resposta a esta tendência que é actualmente um perigo imediato para as democracias há que, como diz o ex-primeiro ministro espanhol Felipe Gonzalez num entrevista ao jornal El País, negar respostas simples a situações complexas e ser politicamente responsável fazendo a sociedade encarar-se a si própria com os problemas que a afligem. A urgência em agir de forma a conter a erosão de confiança dos cidadãos nas instituições é cada vez maior. Incertezas em relação ao futuro têm aumentado com o enfraquecimento da aliança entre as democracias e com os ataques ao comércio livre e recentemente às organizações multilaterais designadamente as Nações Unidas e as instituições de Bretton Woods. O FMI, no World Economic Outlook de Outubro, previu em baixa o crescimento mundial no próximo ano por conta desses desenvolvimentos.
Mais uma razão para a classe política nacional deixar de se fixar em ganhos imediatos com prejuízo para as instituições e perda na confiança dos cidadãos na democracia. É o momento para se apresentarem como actores que sabem que a dinâmica da democracia depende do pluralismo na sociedade e do contraditório exercido no parlamento. Devem dar provas que actuam com conhecimento profundo que “o que nos une é maior e mais fundamental do que aquilo que nos separa”. E é com essa consciência que se pode, de facto, pretender servir o país no governo ou na oposição e trabalhar na defesa e consolidação da democracia, o único regime que a história já mostrou que pode garantir a liberdade e levar à prosperidade.

Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 881 de 17 de Outubro de 2018.

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