Aparentemente o raciocínio
geral reflecte o equívoco de se considerar que Cabo Verde, no âmbito do
acordo, estaria a vender peixe aos europeus por cerca de 2 escudos o
quilo e não a cobrar uma simples licença pela pesca de uma espécie que,
ainda para mais, só se torna disponível porque nas suas migrações
atravessa a zona económica exclusiva do país. A indignação de muitos
ventilada nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais contra os
termos do acordo talvez fosse mais produtiva se virada para o
questionamento das razões por que o país até agora não conseguiu
explorar adequadamente os seus recursos marinhos. Infelizmente o momento
político parece mais propício a manifestações que tendem a cair para
posições quási xenófobas dirigidas contra europeus e fazem lembrar ritos
identitários que nos últimos tempos vêm-se tornando frequentes um pouco
por todo o mundo com consequências imprevisíveis e gravosas para as
democracias.
Recorrentemente em situações similares em que se procura aprofundar as relações económicas do país com a economia mundial levanta-se um sentimento de rejeição ao que vem de fora, em particular se o objectivo é potenciar a relação histórica de Cabo Verde com os países da União Europeia. É o que aconteceu quando nos anos noventa se fez a transição da economia estatizada para uma economia de mercado com a liberalização da economia, reformas do sistema financeiro, programas de privatizações, medidas de atracção do investimento estrangeiro e abertura para o turismo. Ouviram-se então vozes a acusar de “vendedores da terra, de anti-patriotas e de agentes do estrangeiro” aos que apoiavam as reformas que abriam o país para a modernidade. Vozes no mesmo timbre continuam a fazer-se ouvir sempre que se anunciam medidas que configuram maior aproximação com a Europa e a América. Ilustram esse facto os casos recentes da proposta do governo de isenção de vistos para cidadãos da União Europeia e do acordo SOFA com os Estados Unidos e agora toda a polémica sobre o acordo de pesca.
A questão em todos estes momentos não é de se ter opiniões diferentes sobre as reformas, sobre iniciativas tomadas ou compromissos assumidos. Isso é salutar e fundamental para a democracia porque ninguém tem a fórmula certa para desenvolver o país. Só com o debate democrático é que se pode almejar ficar mais próximo do caminho certo evitando a crispação política paralisante que resulta da polarização de opiniões e do extremar de posições sempre que actores políticos e sectores da sociedade vêem as opiniões e as acções dos outros como ilegítimos, como anti-patrióticos e como nocivos para o país. Aí tudo emperra, a confiança nas instituições cai e abre-se o caminho para a demagogia e o populismo. O exemplo do Brasil é bastante ilustrativo. Mostra o que acontece quando as convicções substituem os factos, as verdades são aquelas ditadas pela conveniência e o ressentimento alimenta lutas identitárias e tribais.
No caso de Cabo Verde – em que se está perante uma sociedade sem fracturas de natureza etnolinguística e religiosa e sem traumas geradoras de ressentimentos – é estranho que a política seja tão polarizada a ponto de impedir efectivamente que reformas profundas sejam implementadas em sectores-chaves como administração pública, segurança, justiça e educação e também na estruturação da economia nacional. O que alguns países africanos de sucesso como Botswana, as Maurícias e as Seicheles conseguiram na criação de consensos nacionais apesar da complexidade étnicas e linguista, Cabo Verde, com uma sociedade mais homogénea, não conseguiu. O facto de se ter forçado e se continuar a forçar Cabo Verde a ver a sua identidade nacional como produto de lutas e resistências contra o colonialismo e como mais uma “nação forjada na luta de libertação” tem consequências. Cria uma tensão e uma dinâmica de divisão no tecido social cujos efeitos na política já se notam no confronto que opõe os que se proclamam patriotas e “amantes da terra” e os que estes, do alto da sua pretensa superioridade, consideram-se “vendedores da terra ou antipatriotas ”. Pode ser uma questão de tempo até que divisões tendo como base o lugar de origem e eventualmente outros factores comecem a afectar decisões políticas, a mudar a relação com o legado cultural diverso do país e a condicionar até o que as pessoas poderão ambicionar ser e fazer. Paradoxalmente é numa sociedade que há séculos emergiu consciência nacional é que precisamente se veio criar uma crise identitária que, para além de fragilizar toda a nação, dificulta o progresso e a preservação da unidade renovada na liberdade e no pluralismo. Uma vítima já bem identificada deste estado de coisas é a língua portuguesa como bem reconhecem as autoridades brasileiras ao exigir aos estudantes cabo-verdianos a proficiência na língua escrita e falada como requisito de entrada nas suas universidades.
Ultrapassar os obstáculos para o debate democrático, de modo a que não se caia na tentação de retirar legitimidade a ninguém e também de colocar entraves à participação a todos os níveis, é fundamental. A forma não conflituosa com que a ideia da nação se desenvolveu em Cabo Verde devia ser o ponto de partida na construção de uma nação segura nas suas relações com o estrangeiro, porque ciente que não é afectada pelas mazelas da discriminação racial, ou por lealdades tribais e religiosas que não lhe deixam ver o todo e distinguir qual é o seu interesse. Pelo contrário, deve alimentar a certeza que pode triunfar não obstante todos os obstáculos e, como no caso da cooperação com a União Europeia no âmbito das pescas, focalizar-se nos instrumentos que lhe vão permitir para criar emprego, diversificar a economia, e desenvolver uma base produtiva voltada para a exportação. É disso que o país urgentemente precisa e não ficar a pasmar e dilacerar-se dividido nas suas dúvidas quando à questão de onde veio e para onde vai.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 882 de 24 de Outubro de 2018.
Recorrentemente em situações similares em que se procura aprofundar as relações económicas do país com a economia mundial levanta-se um sentimento de rejeição ao que vem de fora, em particular se o objectivo é potenciar a relação histórica de Cabo Verde com os países da União Europeia. É o que aconteceu quando nos anos noventa se fez a transição da economia estatizada para uma economia de mercado com a liberalização da economia, reformas do sistema financeiro, programas de privatizações, medidas de atracção do investimento estrangeiro e abertura para o turismo. Ouviram-se então vozes a acusar de “vendedores da terra, de anti-patriotas e de agentes do estrangeiro” aos que apoiavam as reformas que abriam o país para a modernidade. Vozes no mesmo timbre continuam a fazer-se ouvir sempre que se anunciam medidas que configuram maior aproximação com a Europa e a América. Ilustram esse facto os casos recentes da proposta do governo de isenção de vistos para cidadãos da União Europeia e do acordo SOFA com os Estados Unidos e agora toda a polémica sobre o acordo de pesca.
A questão em todos estes momentos não é de se ter opiniões diferentes sobre as reformas, sobre iniciativas tomadas ou compromissos assumidos. Isso é salutar e fundamental para a democracia porque ninguém tem a fórmula certa para desenvolver o país. Só com o debate democrático é que se pode almejar ficar mais próximo do caminho certo evitando a crispação política paralisante que resulta da polarização de opiniões e do extremar de posições sempre que actores políticos e sectores da sociedade vêem as opiniões e as acções dos outros como ilegítimos, como anti-patrióticos e como nocivos para o país. Aí tudo emperra, a confiança nas instituições cai e abre-se o caminho para a demagogia e o populismo. O exemplo do Brasil é bastante ilustrativo. Mostra o que acontece quando as convicções substituem os factos, as verdades são aquelas ditadas pela conveniência e o ressentimento alimenta lutas identitárias e tribais.
No caso de Cabo Verde – em que se está perante uma sociedade sem fracturas de natureza etnolinguística e religiosa e sem traumas geradoras de ressentimentos – é estranho que a política seja tão polarizada a ponto de impedir efectivamente que reformas profundas sejam implementadas em sectores-chaves como administração pública, segurança, justiça e educação e também na estruturação da economia nacional. O que alguns países africanos de sucesso como Botswana, as Maurícias e as Seicheles conseguiram na criação de consensos nacionais apesar da complexidade étnicas e linguista, Cabo Verde, com uma sociedade mais homogénea, não conseguiu. O facto de se ter forçado e se continuar a forçar Cabo Verde a ver a sua identidade nacional como produto de lutas e resistências contra o colonialismo e como mais uma “nação forjada na luta de libertação” tem consequências. Cria uma tensão e uma dinâmica de divisão no tecido social cujos efeitos na política já se notam no confronto que opõe os que se proclamam patriotas e “amantes da terra” e os que estes, do alto da sua pretensa superioridade, consideram-se “vendedores da terra ou antipatriotas ”. Pode ser uma questão de tempo até que divisões tendo como base o lugar de origem e eventualmente outros factores comecem a afectar decisões políticas, a mudar a relação com o legado cultural diverso do país e a condicionar até o que as pessoas poderão ambicionar ser e fazer. Paradoxalmente é numa sociedade que há séculos emergiu consciência nacional é que precisamente se veio criar uma crise identitária que, para além de fragilizar toda a nação, dificulta o progresso e a preservação da unidade renovada na liberdade e no pluralismo. Uma vítima já bem identificada deste estado de coisas é a língua portuguesa como bem reconhecem as autoridades brasileiras ao exigir aos estudantes cabo-verdianos a proficiência na língua escrita e falada como requisito de entrada nas suas universidades.
Ultrapassar os obstáculos para o debate democrático, de modo a que não se caia na tentação de retirar legitimidade a ninguém e também de colocar entraves à participação a todos os níveis, é fundamental. A forma não conflituosa com que a ideia da nação se desenvolveu em Cabo Verde devia ser o ponto de partida na construção de uma nação segura nas suas relações com o estrangeiro, porque ciente que não é afectada pelas mazelas da discriminação racial, ou por lealdades tribais e religiosas que não lhe deixam ver o todo e distinguir qual é o seu interesse. Pelo contrário, deve alimentar a certeza que pode triunfar não obstante todos os obstáculos e, como no caso da cooperação com a União Europeia no âmbito das pescas, focalizar-se nos instrumentos que lhe vão permitir para criar emprego, diversificar a economia, e desenvolver uma base produtiva voltada para a exportação. É disso que o país urgentemente precisa e não ficar a pasmar e dilacerar-se dividido nas suas dúvidas quando à questão de onde veio e para onde vai.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 882 de 24 de Outubro de 2018.
Sem comentários:
Enviar um comentário