segunda-feira, novembro 26, 2018

Verdades sem rebuço

De tempos em tempos ouvem-se vozes a insistir que o país “caía na real”. Com tal apelo pretende-se que se vá para além da cacofonia diária, em que tudo parece girar à volta de conferências, workshops, auscultações da população e socializações entremeadas de celebração de datas internacionais, e se procure ter uma abordagem estratégica para os problemas do país.
Uma recente chamada à realidade é o Diagnóstico Estratégico do País (SCD) produzido pelo Banco Mundial e apresentado numa cerimónia pública presidida pelo Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças. O ponto de partida do documento é a constatação que a crise financeira de 2008 com os seus efeitos súbitos, dramáticos, e sustentados no crescimento económico deixou a nu o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde. Perante isso a questão que se coloca é em que medida os governantes nos anos seguintes à crise se aperceberam que o país teria que adoptar um outro modelo e reconheceram a urgência das reformas a serem feitas para que o crescimento económico fosse retomado.
A realidade do crescimento raso que se abateu sobre o país nos oito anos pós-crise acompanhado do crescimento da dívida pública em mais de 70 pontos percentuais segundo o texto do diagnóstico SCD indicia que no essencial não se arrepiou caminho do outro modelo. Simplesmente continuou-se a injectar mais recursos agora provenientes do endividamento externo na economia de forma mais ineficiente e com menos retorno (20%). Em relação ao turismo, mesmo com o aumento do número de turistas não houve uma reorientação estratégica do sector e o resultado é o que diz o BM: “embora a chegada de turistas continuou a crescer, o lucro por visitante diminuiu para quase metade entre 2007 e 2015”. Não se conseguiu que o tecido económico e empresarial cabo-verdiano se articulasse suficientemente com os investimentos estrangeiros de forma a dinamizar globalmente a economia nacional. Contribuiu para isso, entre outros factores, a preocupação dos operadores turísticos com a “falta de confiabilidade do abastecimento local e da segurança alimentar”.
Felizmente nos últimos dois anos, em boa parte devido à dinâmica do espaço europeu e da economia mundial e também devido à mudança para um governo mais amigo da actividade empresarial, o país já está a crescer a taxas entre 4 e 5 por cento do PIB que, segundo os especialistas, correspondem ao nível do potencial de crescimento. Mas como reconhecem todos, o país precisa crescer muito mais e para isso tem que fazer as reformas para elevar o potencial. O SCD aconselha que tem que mudar de paradigma e adoptar um novo modelo económico. O outro esgotou-se há muito, em 2008, como foi referido anteriormente. No documento do BM diz-se que, a curto prazo, só há dois caminhos possíveis: 1- diversificar o turismo para deixar de ser apenas sol, praia e mar e para também abranger as outras ilhas com as ofertas que eventualmente terão em ecoturismo, trekking, aventura e história; 2- Explorar nichos de produtos e nichos de mercados como o comércio orgânico, mercado étnico, produtos de nostalgia e em geral produtos de baixo volume e alto valor agregado. Em relação aos sectores que, há anos, tanto o actual como o anterior governo vêm assinalando como grandes apostas do país, designadamente o centro financeiro, tecnologias de informação e comunicação e hub logístico para aviação e transportes marítimos o BM só os vê como viáveis a médio prazo.
O cepticismo do BM tem a ver com os grandes constrangimentos que persistem em Cabo Verde e retiram competitividade à economia, contribuem para baixa produtividade, não lhe permitem potenciar as suas vantagens comparativas e deixam o seu ambiente de negócios pouco atractivo. O documento identifica onze empecilhos que agrupa em quatro categorias: falta de capital humano, fraca conectividade, ineficiência e ineficácia do sector público e falta de resiliência a choques externos, climáticos e outros. Por isso considera que para se ter uma economia centrada em logística não basta construir grandes infraestruturas. Há que criar uma plataforma de negócios para os quais o ambiente actual não é o ideal. O mesmo se passa com as TIC e com o centro financeiro que para além disso são afectados pelo alto custo da energia, pela qualidade relativamente baixa do ensino e pelas fragilidades no domínio dos transportes. Daí o BM não ter grande esperança no arranque desses sectores pelo menos a curto prazo particularmente quando na administração pública se constata, por exemplo, que a concretização das reformas é fraca, privilegiam-se processos em detrimento de resultados, falta coordenação entre os organismos, há baixa capacidade técnica e a descentralização não foi eficaz.
O que o Banco Mundial aponta no seu documento de diagnóstico não difere muito do que foi dito e redito em Cabo Verde em vários momentos. O problema aparentemente é como diz Thomas Friedman é que não há energia de baixo para forçar as reformas nem vontade de cima para as fazer valer e materializar. Resta a pressão que vem de fora e traz as exigências em termos de competitividade, produtividade e qualificação nos domínios do conhecimento indispensáveis para melhor integração nas cadeias globais de valor. Essa pressão revela-se em sociedades bloqueadas pela inércia como último recurso para encontrar energia e vontade para mudar o modelo de desenvolvimento e imprimir dinâmica sustentada à economia. Não desapareceram as tentações em reproduzir o modelo que há dez anos se mostrou claramente esgotado.
O GAO ainda ontem, dia 20, em comunicado, chamava a atenção que, em matéria de negociações para a privatização da TACV, não obstante ser “importante demonstrar resultados para garantir o apoio ao orçamento, as autoridades devem procurar cumprir com os princípios de competitividade, abertura e optimização da afectação dos recursos”. A este reparo não deve ser alheio a informação no SCD do Banco Mundial que o plano de negócios com a Icelandair “exige que o governo assuma o custo de aquisição (procuring na versão inglesa) de uma nova frota (aproximadamente cinco aviões)”. Como o Banco Mundial, também o GAO deverá estar preocupado como o facto de o custo do empreendimento ir “certamente aumentar ainda mais o stock da dívida”. O governo através do VPM e Ministro das Finanças finalmente clarificou que os aviões são adquiridos em regime de leasing e nesse quadro toda a operação é da responsabilidade da TACV e do accionista Estado mas que com a privatização deverá passar para os accionistas. Mas a verdade é que se desconhecia que depois de terminado o contracto de gestão com a Icelendair e antes da privatização devia verificar-se a expansão da frota não com os 11 aviões prometidos da Icelendair mas com cinco adquiridos na base de leasing com custos assumidos por Cabo Verde. Mais transparência nos assuntos públicos é fundamental para que o país não fique amarrado em modelos que já se esgotaram e submerso em constrangimentos que não reconhece ao mesmo tempo que lhe é acenado com possíveis futuros para os quais nem sabe que não está preparado para construir.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 19, 2018

Parlamento em baixa

A violência física envolvendo dois deputados constituiu um momento baixo do parlamento que há muito se previa que acabaria por acontecer. É um facto que a actuação dos políticos em sede parlamentar ao longo da legislatura iniciada em Abril de 2016 tem-se caracterizado por uma dinâmica negativa que vem contribuindo para aumentar a crispação política no país.
 Era de esperar que após 15 anos seguidos de governação por um mesmo partido não haveria muito espaço para acomodações, compromissos e consensos entre as forças políticas. Sempre se nota alguma tensão e muita recriminação enquanto um novo governo assume em pleno os problemas do país e procura colocar a máquina do Estado sob a sua orientação. Nas democracias maduras esse período não passa de seis meses. Em Cabo Verde a crispação tende a manter-se ao longo do mandato como se a todo momento se estivesse em período pré-eleitoral. Nesta legislatura, por razões a que não são alheias manifestações do populismo nos dois grandes partidos, está pior, como os acontecimentos da semana passada no parlamento demostraram.
A democracia cabo-verdiana sempre teve um nível relativamente elevado de crispação política. Diferentemente da generalidade de casos de transição para a democracia, depois das eleições livres de 13 de Janeiro de 1991 ficou na Oposição precisamente a força política que tinha encarnado o regime anterior ditatorial. Não houve o tipo de aliança, como a do PS-PSD em Portugal, ou do PSOE-PP em Espanha ou do PS francês com a UPM, fortemente engajada na consolidação das instituições democráticas e em pleno acordo com o novo figurino constitucional. Com o lastro constituído pelo legado do regime de partido único a pesar a todo o momento o comprometimento com a construção da democracia dificilmente podia ser total e os pontos de tensão com o novo governo certamente que seriam múltiplos. A expectativa de todos era que com o tempo a crispação inicial evoluísse para a tensão normal e salutar que deve existir entre forças políticas na situação e na oposição. Infelizmente não aconteceu na medida desejada e a nossa democracia perde com a falta de consenso necessário para que o dissenso aconteça e revele e demonstre na prática as virtualidades do pluralismo na realização do interesse público.
Os efeitos do não comprometimento completo com a democracia e a crispação excessiva que isso gera fazem-se sentir primordialmente na Assembleia Nacional. E assim é porque em democracia é no parlamento, órgão colegial, que a nação se vê representada “na diversidade dos seus interesses e na pluralidade das suas opiniões”. Nesta perspectiva, se há correntes elitistas que negam que todos os interesses devem estar representados, ou se há forças políticas que se consideram mais legítimos para governar do que os outros, o parlamento, enquanto instituição central da democracia, é o alvo a abater. No caso de Cabo Verde tanto a herança do salazarismo como a do regime de partido único após a independência conspiram para denegrir o parlamento democrático, para manter vivo o espírito anti-partido e anti-política. No processo os descontentes da democracia e do parlamentarismo levantam problemas de representatividade, questionam o papel dos partidos políticos e esforçam-se por demonstrar como o exercício do contraditório e todo o debate democrático é uma grande perda de tempo e de recursos. Daí é um passo para considerarem os deputados como sendo do piorio: preguiçosos, gananciosos e ciosos dos seus privilégios.
É verdade que não são poucas as vezes que se se depara com situações de ineficácia da actividade parlamentar se não mesmo de bloqueio com consequências para o funcionamento normal das instituições. Ou que os partidos deixam-se apanhar pelo caciquismo e alimentam clientelas, ameaçando rigidificar o sistema democrático. Ou ainda que a ânsia de se manter no poder a todo o custo para além de prejudicar a renovação democrática e mesmo a integridade de todo o sistema político seja o veículo da corrupção que descredibiliza a democracia como se viu recentemente no Brasil. Historicamente sabe-se que saídas para tais situações que não optaram por mais institucionalização democrática e concomitantemente pela real independência do poder judicial e pela garantia da liberdade de imprensa rapidamente degeneraram em regimes autoritários e consequente compressão dos direitos fundamentais dos indivíduos. Na primeira república portuguesa viu-se como a liberdade dos deputados de votar noutros partidos ou mudar de bancada levou a instabilidade governativa e posteriormente ao golpe de estado militar e aos 48 anos de salazarismo. Na república de Weimar a incapacidade dos pequenos partidos democráticos em criar soluções de governo levou à ascensão do partido nazi e à entrega do cargo de chanceler a Adolfo Hitler. Na França da IV república a instabilidade governativa provocada pela fragilidade do sistema partidário só foi ultrapassada com o regresso de De Gaulle e a fundação da V república.
Actualmente nas várias democracias em crise há dúvidas quanto aos modelos de representação no parlamento juntamente com muita contestação do papel dos partidos e críticas severas ao comportamento dos políticos. Duvida-se da capacidade da classe política não só em realmente entender os problemas do momento e os anseios da população como também em ser efectivo a confrontar os desafios do crescimento, do desemprego e da crescente desigualdade social face designadamente às forças da globalização, à pressão das migrações, ao impacto do tráfico de drogas na criminalidade e aos efeitos nocivos da corrupção na sociedade. O acesso massivo da generalidade das pessoas às redes socias transforma as dúvidas numa onda de indignação e contestação que já mudou o destino de vários países com destaque para a América de Trump e ultimamente para o Brasil de Bolsonaro.
Curioso é o papel que os próprios políticos têm tido em todo esse processo de desgaste da democracia representativa. Demagogicamente muitos seguem pelo caminho do discurso anti-político e anti-partido apresentando-se acima dos partidos e minimizando o debate democrático essencial para se fazer política. O resultado prático é todo o excesso de protagonismo que se nota no parlamento em que muitos procuram destacar-se com discursos que não contribuem para a clarificação das questões e eventuais entendimentos, mas alimentam a crispação já de si elevada. O outro efeito é o de enfraquecimento das direcções de grupo parlamentares com consequências graves na eficácia dos trabalhos.
É evidente que para evitar situações como a verificada na semana passada e travar o desgaste do parlamento aos olhos da sociedade não se pode ir pelo caminho da perseguição dos deputados, mas pela melhoria do trabalho político que dê melhor consistência e coerência à actuação dos grupos parlamentares e se traduza num ethos e numa ética individual que dignifique a instituição parlamentar. Pena que os critérios populistas seguidos na formação das listas tenham produzido verdeiros impedimentos a que se avance para um outro patamar da actividade política, como aliás é visível a todos.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 885 de 14 de Novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 12, 2018

Não há reformas sem sólida vontade política

Os dados do Doing Business 2019 que colocam Cabo Verde na posição 131 entre 190 países não são encorajadores. Há anos que primeiros-ministros e ministros dos sucessivos governos vêm declarando o seu comprometimento na melhoria da competitividade do país e do ambiente de negócios.
Os resultados não têm sido expressivos. A exemplo do que outros países fizeram cria­ram-se task forces e unidades de competitividade para melho­rar os rankings de Cabo Verde. Infelizmente os esforços desen­volvidos não resultaram como esperado, contrariamente ao que aconteceu em países como o Ruanda, a Estónia, a Finlândia e a Índia. Em alguns desses países conseguiu-se que melhorassem mais de 50 pontos nos rankin­gs. Os mesmos cinquenta pon­tos que o primeiro-ministro Dr. Ulisses Correia e Silva vem insis­tindo que é o objectivo a ser al­cançado nos próximos dez anos mas até agora não se viu movi­mento significativo dos rankings nessa direcção. Pelo contrário.
As dificuldades com que o ac­tual governo se depara no pro­cesso de melhoria do ambiente de negócios não são muito di­ferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificul­dades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quin­ze anos no topo da direcção da administração pública enquan­to primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funciona­mento do Estado com impacto nos custos de contexto, no am­biente de negócios e na competi­tividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais im­parcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é cla­ro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Busi­ness vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos gover­nos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quan­do se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municí­pios. A administração munici­pal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos buro­crática, centralizadora e insensí­vel para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administra­ção regional vai criar um novo paradigma de relação com cida­dãos, utentes e operadores eco­nómicos.
Na origem e posterior evolu­ção da postura da administração do Estado certamente que se po­derá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de de­mocracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter con­tribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto re­cipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a econo­mia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múlti­plas. Por essa via acaba por ser­vir certos interesses políticos e alimentar uma classe média liga­da ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são ofe­recidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisti­camente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de es­tranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Es­tado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o prota­gonismo na sociedade se deslo­caria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo con­seguiu tal desiderato. O paradig­ma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competiti­vidade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a admi­nistração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sen­sível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalida­de geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferên­cias externas para o país. Prova­velmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Mi­nistro das Finanças Olavo Cor­reia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a ali­mentar em nome do “desenvol­vimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas re­legando para o segundo plano o esforço nacional para se inte­grar na economia mundial com atracção de capital, acompanha­do de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na eco­nomia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemen­te serve a cultura administrati­va que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do go­verno se faça sentir com deter­minação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que final­mente o país se torne competiti­vo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07  de Novembro de 2018.

segunda-feira, novembro 05, 2018

Sensibilidade democrática + competência tecnocrática

Uma das grandes contradições dos tempos actuais é ver em várias democracias os diferentes actores políticos, mas também grupos sociais e indivíduos a agirem de uma forma que fragiliza as instituições, mina confiança na classe política e abre caminho para derivas arriscadas de natureza autoritária e populista. Já aconteceu, está acontecer e tudo indica que vai continuar a acontecer num país ou outro. As consequências saltam à vista nos resultados recentes das eleições brasileiras como se mostrara, por exemplo, no Brexit, nas eleições americanas, húngaras e italianas.
 Mesmo sabendo qual tem sido o desfecho dessas derivas, continua-se a fustigar as instituições da democracia representativa, ora alimentando utopias construídas na base da democracia directa ou à procura do Santo Graal da representatividade política em círculos uninominais e em deputados desligados dos partidos, ou ainda, mais frequentemente, apostando em figuras providenciais armados de soluções simplistas para todos os problemas das pessoas e da sociedade.
Cabo Verde não está isento destas manifestações. A crispação que caracteriza a relação entre as principais forças políticas, como ficou mais uma vez evidente nas sessões parlamentares de Outubro, contribui para desqualificar o parlamento e desencorajar os cidadãos face à polarização das posições dos intervenientes. Também como já foi bem notado, em geral, leva à “simplificação até o absurdo dos argumentos e ao esvaziamento do sentido das palavras à procura de excitação das emoções que não são só prejudicam a qualidade do debate público como têm sentido tóxico sobre a cidadania”. Viu-se, por exemplo, no debate sobre a situação da justiça como não se conseguiu dar o salto para a avaliação das razões por que a justiça ainda não tem a eficácia desejada, não obstante os significativos meios que lhe são destinados. Preferiu-se ficar pelo confronto à procura de ganhos partidários efémeros quando se podia procurar trabalhar no âmbito de um pacto entre várias forças que poderia compreender: 1- a reavaliação do modelo de justiça que resultou da revisão constitucional de 2010 com poderes de gestão e meios financeiros, inéditos em figurinos constitucionais próximos, atribuídos aos conselhos de magistratura. 2- a operacionalização urgente da inspecção judicial para garantir aos conselhos instrumentos indispensáveis para a gestão eficaz dos juízes e procuradores e das secretarias judiciais; alterações no próprio formato do debate sobre a situação da justiça de modo a que o papel dos conselhos não fique só pela apresentação de relatórios sem a possibilidade de se explicarem e de se defenderem. As pessoas querem mais justiça, querem ter a quem claramente exigir responsabilidades e dispensam espectáculos de acusações mútuas politicamente motivadas cujo único efeito é de efectivamente deixar o sistema de justiça e os seus agentes à salvo de críticas. Não estranha que os avanços na eficácia da justiça não acompanhem no ritmo desejado os muitos milhões que têm sido investidos no sistema.
Algo similar verificou-se na discussão e aprovação da lei sobre a regionalização. Do debate ficou-se com a impressão que a preocupação maior foi mais no sentido de tentar provar que o “outro” não queria a regionalização do que em expor para a nação as razões por que seria vantajoso para o país criar uma região em cada das oito ilhas, com excepção de Santiago onde se pretende que haja duas regiões. Normalmente tais tácticas em iniciativas que exigem dois terços dos deputados para serem aprovadas resultam em chumbo da proposta de lei seguido de recriminações mútuas. A surpresa foram os votos inesperado de dois deputados do Paicv e a ausência de vários outros que viabilizaram a iniciativa, mas que não diminuíram a crispação. Pelo contrário, face à fragilidade da actual liderança da oposição que já tinha sido evidenciada na eleição à justa do líder parlamentar e que com o novo incidente ficou mais clara, a reacção das bancadas foi mais crispação e mais um contributo para diminuir a imagem dos políticos. Assim, de um lado, a reacção foi de regozijo pelo facto de alguns deputados da nação supostamente se terem libertado das amarras do partido e alinharem com o sentimento do eleitorado do seu círculo. Do outro lado, sucederam-se vozes a acusar de deslealdade e indisciplina partidária e até a aventar possível expulsão do grupo parlamentar. Em qualquer das reacções, faz-se por não compreender a natureza do mandato do deputado e aprofunda-se nas pessoas o mau entendimento de como realmente funciona o parlamento. Mais uma vez questões de fundo como são no caso a regionalização cedem lugar a questões mais imediatas de luta partidária ficando por esclarecer o que realmente se quer com a criação de regiões, como por exemplo: se é pela via da regionalização que se pretende chegar a uma administração pública mais isenta e imparcial, mais efectiva e sensível às necessidades dos utentes; também se é por essa via que se pretende diminuir os custos de contexto e ser mais eficaz na atracção de investimentos, em particular, de investimento externo; ainda se é pela potenciação de factores locais que se estará em melhor posição de formar capital humano e ganhar competitividade no quadro global do país.
Recentemente numa entrevista ao jornal Público o filósofo espanhol Daniel Innerarity lembrou que não podemos prescindir dos sistemas inteligentes, ou seja, de sistemas com cultura, normas, regras inteligentes porque quando se tem isso a sociedade até pode funcionar com gente relativamente medíocre. Já o contrário, ou seja, se há vazios normativos, com culturas políticas torpes e sem regras razoáveis mesmo de gente inteligente só se consegue que actuem de maneira muita estúpida. Actualmente o mundo encontra-se numa encruzilhada e é grande a tentação para se pôr em causa as instituições democráticas existentes, vilipendiar a política que privilegia a verdade, os factos e a honestidade na busca do interesse público e quebrar regras indispensáveis à manutenção de um ambiente de civilidade, de respeito pela opinião contrária e de cooperação necessário para que todos possam contribuir e beneficiar da “inteligência colectiva” de que fala Innerarity. Há que resistir a essa tentação e isso exige duas importantes qualidades cada vez mais escassas neste ambiente renitente às regras e manifestamente anti-político e anti-partidos que são a sensibilidade democrática para se manter intacto o sistema de liberdade e pluralismo essencial à democracia e a competência tecnocrática necessária para responder aos extraordinários desafios que o país enfrenta e que exigem que potencie os seus parcos recursos e estrategicamente se posicione para construir um futuro de prosperidade para todos.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.