De tempos em tempos ouvem-se vozes a insistir que o
país “caía na real”. Com tal apelo pretende-se que se vá para além da
cacofonia diária, em que tudo parece girar à volta de conferências,
workshops, auscultações da população e socializações entremeadas de
celebração de datas internacionais, e se procure ter uma abordagem
estratégica para os problemas do país.
Uma
recente chamada à realidade é o Diagnóstico Estratégico do País (SCD)
produzido pelo Banco Mundial e apresentado numa cerimónia pública
presidida pelo Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças. O ponto de
partida do documento é a constatação que a crise financeira de 2008 com
os seus efeitos súbitos, dramáticos, e sustentados no
crescimento económico deixou a nu o esgotamento do modelo de
desenvolvimento de Cabo Verde. Perante isso a questão que se coloca é em
que medida os governantes nos anos seguintes à crise se aperceberam que
o país teria que adoptar um outro modelo e reconheceram a urgência das
reformas a serem feitas para que o crescimento económico fosse retomado.
A
realidade do crescimento raso que se abateu sobre o país nos oito anos
pós-crise acompanhado do crescimento da dívida pública em mais de 70
pontos percentuais segundo o texto do diagnóstico SCD indicia que no
essencial não se arrepiou caminho do outro modelo. Simplesmente
continuou-se a injectar mais recursos agora provenientes do
endividamento externo na economia de forma mais ineficiente e com menos
retorno (20%). Em relação ao turismo, mesmo com o aumento do número de
turistas não houve uma reorientação estratégica do sector e o resultado é
o que diz o BM: “embora a chegada de turistas continuou a crescer, o
lucro por visitante diminuiu para quase metade entre 2007 e 2015”. Não
se conseguiu que o tecido económico e empresarial cabo-verdiano se
articulasse suficientemente com os investimentos estrangeiros de forma a
dinamizar globalmente a economia nacional. Contribuiu para isso, entre
outros factores, a preocupação dos operadores turísticos com a “falta de confiabilidade do abastecimento local e da segurança alimentar”.
Felizmente
nos últimos dois anos, em boa parte devido à dinâmica do espaço europeu
e da economia mundial e também devido à mudança para um governo mais
amigo da actividade empresarial, o país já está a crescer a taxas entre 4
e 5 por cento do PIB que, segundo os especialistas, correspondem ao
nível do potencial de crescimento. Mas como reconhecem todos, o país
precisa crescer muito mais e para isso tem que fazer as reformas para
elevar o potencial. O SCD aconselha que tem que mudar de paradigma e
adoptar um novo modelo económico. O outro esgotou-se há muito, em 2008,
como foi referido anteriormente. No documento do BM diz-se que, a curto
prazo, só há dois caminhos possíveis: 1- diversificar o turismo para
deixar de ser apenas sol, praia e mar e para também abranger as outras
ilhas com as ofertas que eventualmente terão em ecoturismo, trekking, aventura e história;
2- Explorar nichos de produtos e nichos de mercados como o comércio
orgânico, mercado étnico, produtos de nostalgia e em geral produtos de
baixo volume e alto valor agregado. Em relação aos sectores que, há
anos, tanto o actual como o anterior governo vêm assinalando como
grandes apostas do país, designadamente o centro financeiro, tecnologias
de informação e comunicação e hub logístico para aviação e transportes
marítimos o BM só os vê como viáveis a médio prazo.
O cepticismo
do BM tem a ver com os grandes constrangimentos que persistem em Cabo
Verde e retiram competitividade à economia, contribuem para baixa
produtividade, não lhe permitem potenciar as suas vantagens comparativas
e deixam o seu ambiente de negócios pouco atractivo. O documento
identifica onze empecilhos que agrupa em quatro categorias: falta de
capital humano, fraca conectividade, ineficiência e ineficácia do sector
público e falta de resiliência a choques externos, climáticos e outros.
Por isso considera que para se ter uma economia centrada em logística
não basta construir grandes infraestruturas. Há que criar uma plataforma
de negócios para os quais o ambiente actual não é o ideal. O mesmo se
passa com as TIC e com o centro financeiro que para além disso são
afectados pelo alto custo da energia, pela qualidade relativamente baixa
do ensino e pelas fragilidades no domínio dos transportes. Daí o BM não
ter grande esperança no arranque desses sectores pelo menos a curto
prazo particularmente quando na administração pública se constata, por
exemplo, que a concretização das reformas é fraca, privilegiam-se
processos em detrimento de resultados, falta coordenação entre os
organismos, há baixa capacidade técnica e a descentralização não foi
eficaz.
O que o Banco Mundial aponta no seu documento de
diagnóstico não difere muito do que foi dito e redito em Cabo Verde em
vários momentos. O problema aparentemente é como diz Thomas Friedman é
que não há energia de baixo para forçar as reformas nem vontade de cima
para as fazer valer e materializar. Resta a pressão que vem de fora e
traz as exigências em termos de competitividade, produtividade e
qualificação nos domínios do conhecimento indispensáveis para melhor
integração nas cadeias globais de valor. Essa pressão revela-se em
sociedades bloqueadas pela inércia como último recurso para encontrar
energia e vontade para mudar o modelo de desenvolvimento e imprimir
dinâmica sustentada à economia. Não desapareceram as tentações em
reproduzir o modelo que há dez anos se mostrou claramente esgotado.
O
GAO ainda ontem, dia 20, em comunicado, chamava a atenção que, em
matéria de negociações para a privatização da TACV, não obstante ser
“importante demonstrar resultados para garantir o apoio ao orçamento, as
autoridades devem procurar cumprir com os princípios de
competitividade, abertura e optimização da afectação dos recursos”. A
este reparo não deve ser alheio a informação no SCD do Banco Mundial que
o plano de negócios com a Icelandair “exige que o governo assuma o custo de aquisição (procuring na versão inglesa) de uma nova frota (aproximadamente cinco aviões)”. Como o Banco Mundial, também o GAO deverá estar preocupado como o facto de o custo do empreendimento ir “certamente aumentar ainda mais o stock da dívida”.
O governo através do VPM e Ministro das Finanças finalmente clarificou
que os aviões são adquiridos em regime de leasing e nesse quadro toda a
operação é da responsabilidade da TACV e do accionista Estado mas que
com a privatização deverá passar para os accionistas. Mas a verdade é
que se desconhecia que depois de terminado o contracto de gestão com a
Icelendair e antes da privatização devia verificar-se a expansão da
frota não com os 11 aviões prometidos da Icelendair mas com cinco
adquiridos na base de leasing com custos assumidos por Cabo Verde. Mais
transparência nos assuntos públicos é fundamental para que o país não
fique amarrado em modelos que já se esgotaram e submerso em
constrangimentos que não reconhece ao mesmo tempo que lhe é acenado com
possíveis futuros para os quais nem sabe que não está preparado para
construir.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.
Sem comentários:
Enviar um comentário