segunda-feira, novembro 26, 2018

Verdades sem rebuço

De tempos em tempos ouvem-se vozes a insistir que o país “caía na real”. Com tal apelo pretende-se que se vá para além da cacofonia diária, em que tudo parece girar à volta de conferências, workshops, auscultações da população e socializações entremeadas de celebração de datas internacionais, e se procure ter uma abordagem estratégica para os problemas do país.
Uma recente chamada à realidade é o Diagnóstico Estratégico do País (SCD) produzido pelo Banco Mundial e apresentado numa cerimónia pública presidida pelo Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Finanças. O ponto de partida do documento é a constatação que a crise financeira de 2008 com os seus efeitos súbitos, dramáticos, e sustentados no crescimento económico deixou a nu o esgotamento do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde. Perante isso a questão que se coloca é em que medida os governantes nos anos seguintes à crise se aperceberam que o país teria que adoptar um outro modelo e reconheceram a urgência das reformas a serem feitas para que o crescimento económico fosse retomado.
A realidade do crescimento raso que se abateu sobre o país nos oito anos pós-crise acompanhado do crescimento da dívida pública em mais de 70 pontos percentuais segundo o texto do diagnóstico SCD indicia que no essencial não se arrepiou caminho do outro modelo. Simplesmente continuou-se a injectar mais recursos agora provenientes do endividamento externo na economia de forma mais ineficiente e com menos retorno (20%). Em relação ao turismo, mesmo com o aumento do número de turistas não houve uma reorientação estratégica do sector e o resultado é o que diz o BM: “embora a chegada de turistas continuou a crescer, o lucro por visitante diminuiu para quase metade entre 2007 e 2015”. Não se conseguiu que o tecido económico e empresarial cabo-verdiano se articulasse suficientemente com os investimentos estrangeiros de forma a dinamizar globalmente a economia nacional. Contribuiu para isso, entre outros factores, a preocupação dos operadores turísticos com a “falta de confiabilidade do abastecimento local e da segurança alimentar”.
Felizmente nos últimos dois anos, em boa parte devido à dinâmica do espaço europeu e da economia mundial e também devido à mudança para um governo mais amigo da actividade empresarial, o país já está a crescer a taxas entre 4 e 5 por cento do PIB que, segundo os especialistas, correspondem ao nível do potencial de crescimento. Mas como reconhecem todos, o país precisa crescer muito mais e para isso tem que fazer as reformas para elevar o potencial. O SCD aconselha que tem que mudar de paradigma e adoptar um novo modelo económico. O outro esgotou-se há muito, em 2008, como foi referido anteriormente. No documento do BM diz-se que, a curto prazo, só há dois caminhos possíveis: 1- diversificar o turismo para deixar de ser apenas sol, praia e mar e para também abranger as outras ilhas com as ofertas que eventualmente terão em ecoturismo, trekking, aventura e história; 2- Explorar nichos de produtos e nichos de mercados como o comércio orgânico, mercado étnico, produtos de nostalgia e em geral produtos de baixo volume e alto valor agregado. Em relação aos sectores que, há anos, tanto o actual como o anterior governo vêm assinalando como grandes apostas do país, designadamente o centro financeiro, tecnologias de informação e comunicação e hub logístico para aviação e transportes marítimos o BM só os vê como viáveis a médio prazo.
O cepticismo do BM tem a ver com os grandes constrangimentos que persistem em Cabo Verde e retiram competitividade à economia, contribuem para baixa produtividade, não lhe permitem potenciar as suas vantagens comparativas e deixam o seu ambiente de negócios pouco atractivo. O documento identifica onze empecilhos que agrupa em quatro categorias: falta de capital humano, fraca conectividade, ineficiência e ineficácia do sector público e falta de resiliência a choques externos, climáticos e outros. Por isso considera que para se ter uma economia centrada em logística não basta construir grandes infraestruturas. Há que criar uma plataforma de negócios para os quais o ambiente actual não é o ideal. O mesmo se passa com as TIC e com o centro financeiro que para além disso são afectados pelo alto custo da energia, pela qualidade relativamente baixa do ensino e pelas fragilidades no domínio dos transportes. Daí o BM não ter grande esperança no arranque desses sectores pelo menos a curto prazo particularmente quando na administração pública se constata, por exemplo, que a concretização das reformas é fraca, privilegiam-se processos em detrimento de resultados, falta coordenação entre os organismos, há baixa capacidade técnica e a descentralização não foi eficaz.
O que o Banco Mundial aponta no seu documento de diagnóstico não difere muito do que foi dito e redito em Cabo Verde em vários momentos. O problema aparentemente é como diz Thomas Friedman é que não há energia de baixo para forçar as reformas nem vontade de cima para as fazer valer e materializar. Resta a pressão que vem de fora e traz as exigências em termos de competitividade, produtividade e qualificação nos domínios do conhecimento indispensáveis para melhor integração nas cadeias globais de valor. Essa pressão revela-se em sociedades bloqueadas pela inércia como último recurso para encontrar energia e vontade para mudar o modelo de desenvolvimento e imprimir dinâmica sustentada à economia. Não desapareceram as tentações em reproduzir o modelo que há dez anos se mostrou claramente esgotado.
O GAO ainda ontem, dia 20, em comunicado, chamava a atenção que, em matéria de negociações para a privatização da TACV, não obstante ser “importante demonstrar resultados para garantir o apoio ao orçamento, as autoridades devem procurar cumprir com os princípios de competitividade, abertura e optimização da afectação dos recursos”. A este reparo não deve ser alheio a informação no SCD do Banco Mundial que o plano de negócios com a Icelandair “exige que o governo assuma o custo de aquisição (procuring na versão inglesa) de uma nova frota (aproximadamente cinco aviões)”. Como o Banco Mundial, também o GAO deverá estar preocupado como o facto de o custo do empreendimento ir “certamente aumentar ainda mais o stock da dívida”. O governo através do VPM e Ministro das Finanças finalmente clarificou que os aviões são adquiridos em regime de leasing e nesse quadro toda a operação é da responsabilidade da TACV e do accionista Estado mas que com a privatização deverá passar para os accionistas. Mas a verdade é que se desconhecia que depois de terminado o contracto de gestão com a Icelendair e antes da privatização devia verificar-se a expansão da frota não com os 11 aviões prometidos da Icelendair mas com cinco adquiridos na base de leasing com custos assumidos por Cabo Verde. Mais transparência nos assuntos públicos é fundamental para que o país não fique amarrado em modelos que já se esgotaram e submerso em constrangimentos que não reconhece ao mesmo tempo que lhe é acenado com possíveis futuros para os quais nem sabe que não está preparado para construir.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.

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