segunda-feira, novembro 12, 2018

Não há reformas sem sólida vontade política

Os dados do Doing Business 2019 que colocam Cabo Verde na posição 131 entre 190 países não são encorajadores. Há anos que primeiros-ministros e ministros dos sucessivos governos vêm declarando o seu comprometimento na melhoria da competitividade do país e do ambiente de negócios.
Os resultados não têm sido expressivos. A exemplo do que outros países fizeram cria­ram-se task forces e unidades de competitividade para melho­rar os rankings de Cabo Verde. Infelizmente os esforços desen­volvidos não resultaram como esperado, contrariamente ao que aconteceu em países como o Ruanda, a Estónia, a Finlândia e a Índia. Em alguns desses países conseguiu-se que melhorassem mais de 50 pontos nos rankin­gs. Os mesmos cinquenta pon­tos que o primeiro-ministro Dr. Ulisses Correia e Silva vem insis­tindo que é o objectivo a ser al­cançado nos próximos dez anos mas até agora não se viu movi­mento significativo dos rankings nessa direcção. Pelo contrário.
As dificuldades com que o ac­tual governo se depara no pro­cesso de melhoria do ambiente de negócios não são muito di­ferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificul­dades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quin­ze anos no topo da direcção da administração pública enquan­to primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funciona­mento do Estado com impacto nos custos de contexto, no am­biente de negócios e na competi­tividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais im­parcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é cla­ro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Busi­ness vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.
Razão talvez para se concluir que vontade política dos gover­nos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quan­do se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municí­pios. A administração munici­pal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos buro­crática, centralizadora e insensí­vel para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administra­ção regional vai criar um novo paradigma de relação com cida­dãos, utentes e operadores eco­nómicos.
Na origem e posterior evolu­ção da postura da administração do Estado certamente que se po­derá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de de­mocracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter con­tribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto re­cipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a econo­mia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múlti­plas. Por essa via acaba por ser­vir certos interesses políticos e alimentar uma classe média liga­da ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são ofe­recidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisti­camente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de es­tranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Es­tado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o prota­gonismo na sociedade se deslo­caria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo con­seguiu tal desiderato. O paradig­ma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.
Trabalhar para a competiti­vidade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a admi­nistração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sen­sível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalida­de geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferên­cias externas para o país. Prova­velmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Mi­nistro das Finanças Olavo Cor­reia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a ali­mentar em nome do “desenvol­vimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas re­legando para o segundo plano o esforço nacional para se inte­grar na economia mundial com atracção de capital, acompanha­do de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na eco­nomia mundial.
Manter o olhar virado para dentro do país convenientemen­te serve a cultura administrati­va que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do go­verno se faça sentir com deter­minação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que final­mente o país se torne competiti­vo e produtivo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07  de Novembro de 2018.

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