Mesmo
sabendo qual tem sido o desfecho dessas derivas, continua-se a fustigar
as instituições da democracia representativa, ora alimentando utopias
construídas na base da democracia directa ou à procura do Santo Graal da
representatividade política em círculos uninominais e em deputados
desligados dos partidos, ou ainda, mais frequentemente, apostando em
figuras providenciais armados de soluções simplistas para todos os
problemas das pessoas e da sociedade.
Cabo Verde não está isento destas manifestações. A crispação que caracteriza a relação entre as principais forças políticas, como ficou mais uma vez evidente nas sessões parlamentares de Outubro, contribui para desqualificar o parlamento e desencorajar os cidadãos face à polarização das posições dos intervenientes. Também como já foi bem notado, em geral, leva à “simplificação até o absurdo dos argumentos e ao esvaziamento do sentido das palavras à procura de excitação das emoções que não são só prejudicam a qualidade do debate público como têm sentido tóxico sobre a cidadania”. Viu-se, por exemplo, no debate sobre a situação da justiça como não se conseguiu dar o salto para a avaliação das razões por que a justiça ainda não tem a eficácia desejada, não obstante os significativos meios que lhe são destinados. Preferiu-se ficar pelo confronto à procura de ganhos partidários efémeros quando se podia procurar trabalhar no âmbito de um pacto entre várias forças que poderia compreender: 1- a reavaliação do modelo de justiça que resultou da revisão constitucional de 2010 com poderes de gestão e meios financeiros, inéditos em figurinos constitucionais próximos, atribuídos aos conselhos de magistratura. 2- a operacionalização urgente da inspecção judicial para garantir aos conselhos instrumentos indispensáveis para a gestão eficaz dos juízes e procuradores e das secretarias judiciais; alterações no próprio formato do debate sobre a situação da justiça de modo a que o papel dos conselhos não fique só pela apresentação de relatórios sem a possibilidade de se explicarem e de se defenderem. As pessoas querem mais justiça, querem ter a quem claramente exigir responsabilidades e dispensam espectáculos de acusações mútuas politicamente motivadas cujo único efeito é de efectivamente deixar o sistema de justiça e os seus agentes à salvo de críticas. Não estranha que os avanços na eficácia da justiça não acompanhem no ritmo desejado os muitos milhões que têm sido investidos no sistema.
Algo similar verificou-se na discussão e aprovação da lei sobre a regionalização. Do debate ficou-se com a impressão que a preocupação maior foi mais no sentido de tentar provar que o “outro” não queria a regionalização do que em expor para a nação as razões por que seria vantajoso para o país criar uma região em cada das oito ilhas, com excepção de Santiago onde se pretende que haja duas regiões. Normalmente tais tácticas em iniciativas que exigem dois terços dos deputados para serem aprovadas resultam em chumbo da proposta de lei seguido de recriminações mútuas. A surpresa foram os votos inesperado de dois deputados do Paicv e a ausência de vários outros que viabilizaram a iniciativa, mas que não diminuíram a crispação. Pelo contrário, face à fragilidade da actual liderança da oposição que já tinha sido evidenciada na eleição à justa do líder parlamentar e que com o novo incidente ficou mais clara, a reacção das bancadas foi mais crispação e mais um contributo para diminuir a imagem dos políticos. Assim, de um lado, a reacção foi de regozijo pelo facto de alguns deputados da nação supostamente se terem libertado das amarras do partido e alinharem com o sentimento do eleitorado do seu círculo. Do outro lado, sucederam-se vozes a acusar de deslealdade e indisciplina partidária e até a aventar possível expulsão do grupo parlamentar. Em qualquer das reacções, faz-se por não compreender a natureza do mandato do deputado e aprofunda-se nas pessoas o mau entendimento de como realmente funciona o parlamento. Mais uma vez questões de fundo como são no caso a regionalização cedem lugar a questões mais imediatas de luta partidária ficando por esclarecer o que realmente se quer com a criação de regiões, como por exemplo: se é pela via da regionalização que se pretende chegar a uma administração pública mais isenta e imparcial, mais efectiva e sensível às necessidades dos utentes; também se é por essa via que se pretende diminuir os custos de contexto e ser mais eficaz na atracção de investimentos, em particular, de investimento externo; ainda se é pela potenciação de factores locais que se estará em melhor posição de formar capital humano e ganhar competitividade no quadro global do país.
Recentemente numa entrevista ao jornal Público o filósofo espanhol Daniel Innerarity lembrou que não podemos prescindir dos sistemas inteligentes, ou seja, de sistemas com cultura, normas, regras inteligentes porque quando se tem isso a sociedade até pode funcionar com gente relativamente medíocre. Já o contrário, ou seja, se há vazios normativos, com culturas políticas torpes e sem regras razoáveis mesmo de gente inteligente só se consegue que actuem de maneira muita estúpida. Actualmente o mundo encontra-se numa encruzilhada e é grande a tentação para se pôr em causa as instituições democráticas existentes, vilipendiar a política que privilegia a verdade, os factos e a honestidade na busca do interesse público e quebrar regras indispensáveis à manutenção de um ambiente de civilidade, de respeito pela opinião contrária e de cooperação necessário para que todos possam contribuir e beneficiar da “inteligência colectiva” de que fala Innerarity. Há que resistir a essa tentação e isso exige duas importantes qualidades cada vez mais escassas neste ambiente renitente às regras e manifestamente anti-político e anti-partidos que são a sensibilidade democrática para se manter intacto o sistema de liberdade e pluralismo essencial à democracia e a competência tecnocrática necessária para responder aos extraordinários desafios que o país enfrenta e que exigem que potencie os seus parcos recursos e estrategicamente se posicione para construir um futuro de prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.
Cabo Verde não está isento destas manifestações. A crispação que caracteriza a relação entre as principais forças políticas, como ficou mais uma vez evidente nas sessões parlamentares de Outubro, contribui para desqualificar o parlamento e desencorajar os cidadãos face à polarização das posições dos intervenientes. Também como já foi bem notado, em geral, leva à “simplificação até o absurdo dos argumentos e ao esvaziamento do sentido das palavras à procura de excitação das emoções que não são só prejudicam a qualidade do debate público como têm sentido tóxico sobre a cidadania”. Viu-se, por exemplo, no debate sobre a situação da justiça como não se conseguiu dar o salto para a avaliação das razões por que a justiça ainda não tem a eficácia desejada, não obstante os significativos meios que lhe são destinados. Preferiu-se ficar pelo confronto à procura de ganhos partidários efémeros quando se podia procurar trabalhar no âmbito de um pacto entre várias forças que poderia compreender: 1- a reavaliação do modelo de justiça que resultou da revisão constitucional de 2010 com poderes de gestão e meios financeiros, inéditos em figurinos constitucionais próximos, atribuídos aos conselhos de magistratura. 2- a operacionalização urgente da inspecção judicial para garantir aos conselhos instrumentos indispensáveis para a gestão eficaz dos juízes e procuradores e das secretarias judiciais; alterações no próprio formato do debate sobre a situação da justiça de modo a que o papel dos conselhos não fique só pela apresentação de relatórios sem a possibilidade de se explicarem e de se defenderem. As pessoas querem mais justiça, querem ter a quem claramente exigir responsabilidades e dispensam espectáculos de acusações mútuas politicamente motivadas cujo único efeito é de efectivamente deixar o sistema de justiça e os seus agentes à salvo de críticas. Não estranha que os avanços na eficácia da justiça não acompanhem no ritmo desejado os muitos milhões que têm sido investidos no sistema.
Algo similar verificou-se na discussão e aprovação da lei sobre a regionalização. Do debate ficou-se com a impressão que a preocupação maior foi mais no sentido de tentar provar que o “outro” não queria a regionalização do que em expor para a nação as razões por que seria vantajoso para o país criar uma região em cada das oito ilhas, com excepção de Santiago onde se pretende que haja duas regiões. Normalmente tais tácticas em iniciativas que exigem dois terços dos deputados para serem aprovadas resultam em chumbo da proposta de lei seguido de recriminações mútuas. A surpresa foram os votos inesperado de dois deputados do Paicv e a ausência de vários outros que viabilizaram a iniciativa, mas que não diminuíram a crispação. Pelo contrário, face à fragilidade da actual liderança da oposição que já tinha sido evidenciada na eleição à justa do líder parlamentar e que com o novo incidente ficou mais clara, a reacção das bancadas foi mais crispação e mais um contributo para diminuir a imagem dos políticos. Assim, de um lado, a reacção foi de regozijo pelo facto de alguns deputados da nação supostamente se terem libertado das amarras do partido e alinharem com o sentimento do eleitorado do seu círculo. Do outro lado, sucederam-se vozes a acusar de deslealdade e indisciplina partidária e até a aventar possível expulsão do grupo parlamentar. Em qualquer das reacções, faz-se por não compreender a natureza do mandato do deputado e aprofunda-se nas pessoas o mau entendimento de como realmente funciona o parlamento. Mais uma vez questões de fundo como são no caso a regionalização cedem lugar a questões mais imediatas de luta partidária ficando por esclarecer o que realmente se quer com a criação de regiões, como por exemplo: se é pela via da regionalização que se pretende chegar a uma administração pública mais isenta e imparcial, mais efectiva e sensível às necessidades dos utentes; também se é por essa via que se pretende diminuir os custos de contexto e ser mais eficaz na atracção de investimentos, em particular, de investimento externo; ainda se é pela potenciação de factores locais que se estará em melhor posição de formar capital humano e ganhar competitividade no quadro global do país.
Recentemente numa entrevista ao jornal Público o filósofo espanhol Daniel Innerarity lembrou que não podemos prescindir dos sistemas inteligentes, ou seja, de sistemas com cultura, normas, regras inteligentes porque quando se tem isso a sociedade até pode funcionar com gente relativamente medíocre. Já o contrário, ou seja, se há vazios normativos, com culturas políticas torpes e sem regras razoáveis mesmo de gente inteligente só se consegue que actuem de maneira muita estúpida. Actualmente o mundo encontra-se numa encruzilhada e é grande a tentação para se pôr em causa as instituições democráticas existentes, vilipendiar a política que privilegia a verdade, os factos e a honestidade na busca do interesse público e quebrar regras indispensáveis à manutenção de um ambiente de civilidade, de respeito pela opinião contrária e de cooperação necessário para que todos possam contribuir e beneficiar da “inteligência colectiva” de que fala Innerarity. Há que resistir a essa tentação e isso exige duas importantes qualidades cada vez mais escassas neste ambiente renitente às regras e manifestamente anti-político e anti-partidos que são a sensibilidade democrática para se manter intacto o sistema de liberdade e pluralismo essencial à democracia e a competência tecnocrática necessária para responder aos extraordinários desafios que o país enfrenta e que exigem que potencie os seus parcos recursos e estrategicamente se posicione para construir um futuro de prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.
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