A
democracia corre perigo em todo o lado. Há mesmo quem fale em recessão
mundial da democracia. O mais recente exemplo das ameaças com que a
democracia se depara vem precisamente do Reino Unido e da Inglaterra
onde as ideias liberais, o parlamentarismo e o constitucionalismo
assentaram arraiais pela primeira vez nos tempos modernos. Na
confrontação sobre o Brexit, o processo de saída da União Europeia,
tem-se assistido a um esforço deliberado do governo em minimizar o papel
do parlamento. Primeiro recorreu-se a expedientes procedimentais que
efectivamente o impediriam de deliberar sobre as questões cruciais do
país. Agora o primeiro-ministro Boris Johnson prepara-se abertamente
para, nas próximas eleições, se apresentar como paladino da vontade
popular contra a vontade do parlamento num embate que promete opor a
democracia directa à democracia parlamentar. A exemplo de outras
democracias em que fenómenos semelhantes estão a acontecer, vê-se que o
objectivo de certas movimentações políticas é ter dirigentes que se
colocam acima da lei, que minam as instituições e submetem o interesse
geral aos caprichos particulares. Para conseguir os seus intentos não
têm qualquer pejo em cavalgar medos, paixões e preconceitos de
multidões.
Em Cabo Verde sente-se também o impacto do mesmo populismo que vem causando estragos consideráveis tanto nas novas democracias como nas mais consolidadas. Os seus promotores, refugiando-se ora em discursos identitários, ora num mal disfarçado desprezo pelo pluralismo e ora numa hostilidade aberta às elites, supostamente querem apresentar-se como a cura ou a via para se ultrapassar os males da democracia, corrigir desigualdades e assimetrias regionais e promover melhor cidadania. Na prática, o que conseguem é a degradação institucional com perdas em eficiência e eficácia, um aumento de resistência a reformas essenciais para se ter prosperidade e alterar o quadro da desigualdade e acréscimos num cinismo na esfera pública que mina a confiança entre as pessoas, impede a cooperação entre elas e deixa cada uma perdida na sua verdade. Perante esta força há que contrapor uma outra em sentido contrário e é urgente que isso aconteça porquanto vem aí o ciclo eleitoral com os três certames autárquico, legislativo e presidencial e conhece-se perfeitamente o efeito da polarização que as eleições provocam.
As forças do populismo, porém não estão sozinhas nessa acção de erosão da democracia e das suas instituições. Paradoxalmente os cúmplices no processo vão-se encontrar nos partidos, na classe política em geral e em detentores de cargos públicos cujas instituições no “final do dia” são os alvos preferidos do populismo e da demagogia que ameaça a generalidade das sociedades democráticas. Exemplos encontram-se em todo lado sendo o caso do Reino Unido referido acima o mais recente. E na maior parte dos casos trata-se de gente do sistema político e não “outsiders” como Donald Trump. É só ver o caso de candidatos a deputado e a primeiro-ministro que, em cima das eleições, ao afirmar que não lhes interessa o cargo de deputado, diminuem o papel do parlamento enquanto órgão representativo do povo. Ou os vários casos de detentores de órgãos de soberania que na relação com os outros órgãos põem em causa o princípio da separação de poderes deixando-os fragilizados e desacreditados. Ou ainda o espectáculo oferecido pelos partidos, a digladiarem-se como se inimigos fossem, revelando falta de tolerância mútua, défice de honestidade nos argumentos e fraca adesão à verdade dos factos.
O efeito erosivo do populismo sobre as democracias, nos últimos tempos, vem-se fazendo sentir indiscriminadamente nas velhas e novas democracias. Tem encontrado no ambiente actual, dominado pelas novas técnicas de comunicação e dinamizado pela acessibilidade oferecida pelas redes sociais, as condições certas para se aprofundar ainda mais e pôr em causa os alicerces institucionais do sistema. A tolerância cada vez maior da sociedade a expressões de individualismo destemperadas têm contribuído para uma esfera pública dominada por manifestações quase narcisísticas de indivíduos na ânsia de se mostrarem autênticos, por comportamentos de políticos a copiar celebridades e por tentativas de fazer da governação, em parte, um espectáculo em ilusionismo. Os excessos, as fugas às normas estabelecidas e o aproveitamento directo ou indirecto dos cargos têm encontrado um travão no sistema judicial e nos tribunais independentes.
Não é por acaso que choques terríveis com os juízes se têm verificado em países como Polónia, Hungria e os Estados Unidos à medida que se acentua a deriva autoritária. A exigência que o Estado no exercício do poder deve respeitar a Constituição e as leis democraticamente criadas faz do poder judicial o guardião do sistema democrático. Torna-o também num alvo a abater ou a desacreditar para quem quer exercer o poder colocando-se acima da lei e considerando-se como único capaz de representar o interesse geral e de realizar o bem comum. A tentação de instrumentalizar o sistema também é grande tanto de quem selectivamente pela judicialização da política recorre aos tribunais como forma de fazer política por outros meios como daqueles que pela politização da justiça põem em causa a credibilidade do sistema atribuindo-lhe desígnios que violam a separação de poderes. As experiências recentes da crise nas democracias reafirmam a importância de se ter um sistema judicial íntegro, tecnicamente capaz e credível. Em tempos de fragilização das instituições democráticas o último recurso são os juízes. Por isso mesmo não se devem deixar apanhar nem pelos excessos de protagonismo pessoal que caracteriza os tempos actuais nem muito menos pelo tipo de justicialismo anti-classe política que às vezes se manifesta.
Uma outra ameaça com que as democracias se confrontam é a corrupção. Aliás, uma parte da energia que move os populismos nos tempos actuais vem da extrema sensibilidade contra a corrupção nas suas diferentes formas que se desenvolveu na pós- crise financeira de 2008. Desvio de fundos públicos para privados, tráfico de influências, conflito de interesses, subornos, lavagem de capitais hoje são práticas mal vistas e condenadas transversalmente nas sociedades democráticas. As pessoas ainda ressentem-se do facto de que com a austeridade e perda de rendimentos terem pago a crise enquanto os seus autores no sector financeiro saíram praticamente ilesos. Qualquer esperança de conter a deriva para o populismo passa por uma luta efectiva contra a corrupção. Nisso é fundamental um sistema judicial íntegro e competente que também deve estar salvaguardado de ataques dos que preferem governar acima das leis e em seu interesse próprio. Num país como Cabo Verde em que a dependência do Estado é enorme e abrangente e em que o acesso a oportunidades de negócio pode ser ou não facilitado pelo Estado não é tarefa fácil. Mas é necessário que se concretize para que o desenvolvimento possa acontecer de forma inclusiva e não enviesada só para enriquecer uns poucos bem posicionados e relacionados.
Humberto Cardoso
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 11 de Setembro de 2019
Em Cabo Verde sente-se também o impacto do mesmo populismo que vem causando estragos consideráveis tanto nas novas democracias como nas mais consolidadas. Os seus promotores, refugiando-se ora em discursos identitários, ora num mal disfarçado desprezo pelo pluralismo e ora numa hostilidade aberta às elites, supostamente querem apresentar-se como a cura ou a via para se ultrapassar os males da democracia, corrigir desigualdades e assimetrias regionais e promover melhor cidadania. Na prática, o que conseguem é a degradação institucional com perdas em eficiência e eficácia, um aumento de resistência a reformas essenciais para se ter prosperidade e alterar o quadro da desigualdade e acréscimos num cinismo na esfera pública que mina a confiança entre as pessoas, impede a cooperação entre elas e deixa cada uma perdida na sua verdade. Perante esta força há que contrapor uma outra em sentido contrário e é urgente que isso aconteça porquanto vem aí o ciclo eleitoral com os três certames autárquico, legislativo e presidencial e conhece-se perfeitamente o efeito da polarização que as eleições provocam.
As forças do populismo, porém não estão sozinhas nessa acção de erosão da democracia e das suas instituições. Paradoxalmente os cúmplices no processo vão-se encontrar nos partidos, na classe política em geral e em detentores de cargos públicos cujas instituições no “final do dia” são os alvos preferidos do populismo e da demagogia que ameaça a generalidade das sociedades democráticas. Exemplos encontram-se em todo lado sendo o caso do Reino Unido referido acima o mais recente. E na maior parte dos casos trata-se de gente do sistema político e não “outsiders” como Donald Trump. É só ver o caso de candidatos a deputado e a primeiro-ministro que, em cima das eleições, ao afirmar que não lhes interessa o cargo de deputado, diminuem o papel do parlamento enquanto órgão representativo do povo. Ou os vários casos de detentores de órgãos de soberania que na relação com os outros órgãos põem em causa o princípio da separação de poderes deixando-os fragilizados e desacreditados. Ou ainda o espectáculo oferecido pelos partidos, a digladiarem-se como se inimigos fossem, revelando falta de tolerância mútua, défice de honestidade nos argumentos e fraca adesão à verdade dos factos.
O efeito erosivo do populismo sobre as democracias, nos últimos tempos, vem-se fazendo sentir indiscriminadamente nas velhas e novas democracias. Tem encontrado no ambiente actual, dominado pelas novas técnicas de comunicação e dinamizado pela acessibilidade oferecida pelas redes sociais, as condições certas para se aprofundar ainda mais e pôr em causa os alicerces institucionais do sistema. A tolerância cada vez maior da sociedade a expressões de individualismo destemperadas têm contribuído para uma esfera pública dominada por manifestações quase narcisísticas de indivíduos na ânsia de se mostrarem autênticos, por comportamentos de políticos a copiar celebridades e por tentativas de fazer da governação, em parte, um espectáculo em ilusionismo. Os excessos, as fugas às normas estabelecidas e o aproveitamento directo ou indirecto dos cargos têm encontrado um travão no sistema judicial e nos tribunais independentes.
Não é por acaso que choques terríveis com os juízes se têm verificado em países como Polónia, Hungria e os Estados Unidos à medida que se acentua a deriva autoritária. A exigência que o Estado no exercício do poder deve respeitar a Constituição e as leis democraticamente criadas faz do poder judicial o guardião do sistema democrático. Torna-o também num alvo a abater ou a desacreditar para quem quer exercer o poder colocando-se acima da lei e considerando-se como único capaz de representar o interesse geral e de realizar o bem comum. A tentação de instrumentalizar o sistema também é grande tanto de quem selectivamente pela judicialização da política recorre aos tribunais como forma de fazer política por outros meios como daqueles que pela politização da justiça põem em causa a credibilidade do sistema atribuindo-lhe desígnios que violam a separação de poderes. As experiências recentes da crise nas democracias reafirmam a importância de se ter um sistema judicial íntegro, tecnicamente capaz e credível. Em tempos de fragilização das instituições democráticas o último recurso são os juízes. Por isso mesmo não se devem deixar apanhar nem pelos excessos de protagonismo pessoal que caracteriza os tempos actuais nem muito menos pelo tipo de justicialismo anti-classe política que às vezes se manifesta.
Uma outra ameaça com que as democracias se confrontam é a corrupção. Aliás, uma parte da energia que move os populismos nos tempos actuais vem da extrema sensibilidade contra a corrupção nas suas diferentes formas que se desenvolveu na pós- crise financeira de 2008. Desvio de fundos públicos para privados, tráfico de influências, conflito de interesses, subornos, lavagem de capitais hoje são práticas mal vistas e condenadas transversalmente nas sociedades democráticas. As pessoas ainda ressentem-se do facto de que com a austeridade e perda de rendimentos terem pago a crise enquanto os seus autores no sector financeiro saíram praticamente ilesos. Qualquer esperança de conter a deriva para o populismo passa por uma luta efectiva contra a corrupção. Nisso é fundamental um sistema judicial íntegro e competente que também deve estar salvaguardado de ataques dos que preferem governar acima das leis e em seu interesse próprio. Num país como Cabo Verde em que a dependência do Estado é enorme e abrangente e em que o acesso a oportunidades de negócio pode ser ou não facilitado pelo Estado não é tarefa fácil. Mas é necessário que se concretize para que o desenvolvimento possa acontecer de forma inclusiva e não enviesada só para enriquecer uns poucos bem posicionados e relacionados.
Humberto Cardoso
Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 11 de Setembro de 2019
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