A memória dos acontecimentos de 31 de Agosto de 1981
ficou este ano marcada pelo anúncio da promulgação da lei que visa a
reparação das vítimas de tortura, em 1977 em S. Vicente e em S. Antão em
1981, feito pelo próprio Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca.
A proposta de lei tinha sido aprovada
pelo Conselho de Ministros em Maio e depois discutida e favoravelmente
votada na Assembleia Nacional em Julho. Finalmente, passados quarenta e
dois anos e trinta e oito anos, respectivamente, que se verificaram os
dois acontecimentos, pode-se enxergar vislumbres de justiça para com as
vítimas do regime de partido único na assunção da responsabilidade do
Estado de Cabo Verde, traduzida em compensação financeira para os
próprios e seus familiares. Mas, como é evidente, a compensação material
não é suficiente e, naturalmente, que esperam o pedido formal de
desculpas do Estado para que as feridas da alma, desde então abertas,
sejam definitivamente fechadas.Depois dos órgãos de soberania, o Governo e a Assembleia Nacional, terem feito a sua parte e assegurado a aprovação da lei, é agora o momento para o Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, com a apresentação de desculpas reiterar que “o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e da inalienabilidade dos direitos humanos são o fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”. A celebração pela primeira vez do Dia Nacional dos Direitos Humanos a 25 de Setembro, por sinal também dia de entrada em vigor da Constituição de 1992, seria o momento perfeito para uma intervenção que fizesse justiça às vítimas.
De facto, o que aconteceu em S.Vicente nos cinco meses a seguir às prisões de 4 de Junho de 1977 e nos muitos meses após o 31 de Agosto de 1981, até aos julgamentos do Tribunal Militar de 20 de Março de 1982, constituiu um ataque sistemático do Estado contra todos os direitos que hoje todos os caboverdianos têm como garantidos. Ninguém hoje é preso, e muito menos torturado ou morto, por expressar o seu pensamento, por se reunir e manifestar. Ninguém é preso por polícias de “Segurança” e retido em prisões militares por dias e meses sem ser apresentado ao poder judicial e muito menos ser julgado por tribunal militar. Ninguém se vê na contingência de não viajar porque lhe negaram “uma autorização de saída”, ou, ainda pior, de lhe ser revogada a nacionalidade cabo-verdiana por decisão do Conselho de Ministros na sequência de processo organizado e instruído pela “Segurança” (artº 14 da Lei de Nacionalidade, BO de 24/07/76).
Na época, todos esses atentados aos direitos humanos tinham suporte em leis que sistematicamente foram produzidas nos primeiros anos após a independência, tais como a lei do boato que estipulava penas de seis meses de prisão (decreto-lei 37/75 de 1975), a lei que permitia à Segurança prender por um total de noventa dias (decreto-lei nº 95/76 de Outubro de 1976) e a lei do tribunal militar que podia julgar civis (decreto-lei nº 121/77 de Dezembro de 1977). Essas são algumas das leis que, com outras do mesmo teor e o suporte de instituições como as forças armadas, polícia e milícias populares, constituíram um aparato de repressão do regime que se manteve intacto até Maio de 1990, data em que a então Assembleia Nacional Popular procedeu à revogação das leis referidas no âmbito da abertura política iniciada três meses antes, a 19 de Fevereiro. O que aconteceu, em Junho de 1977 e no 31 de Agosto de 1981, não foi pois por mero acaso ou excesso de autoridades locais ou agentes menores. Qualquer dúvida a esse respeito, que alguns teimam em manter, desvanece-se facilmente perante a evidência do envolvimento de todo o aparato do Estado e ao teor dos comunicados oficiais e das declarações dos principais dirigentes registadas em jornais e revistas da época.
As críticas que têm sido feitas à lei de reparação ora promulgada vão no sentido de dizer que não é suficientemente abrangente porque não abarca todos os casos de tortura. Também questionam porque só é dirigida para os acontecimentos verificados em S. Vicente e S. Antão. Na linha desses argumentos há quem terá proposto que se adiasse a sua aprovação. A verdade é que indo por aí se estaria, de facto, na proverbial situação de fazer do óptimo o inimigo do bom. Mapear todas as situações de tortura verificadas durante o regime de partido único, para depois agir, significaria adiar indefinidamente uma tomada de posição do Estado no sentido de fazer justiça a vítimas já conhecidas. Foi acertado ficar-se pelos casos que estão amplamente documentados porque alvos de acção repressiva e sistemática do Estado por vários meses e com envolvimento de polícia, forças armadas, tribunais militares e outras instituições do Estado em que não havia dúvidas qual era a cadeia de comando.
Não é por acaso que foram precisos quase trinta anos de regime democrático para que finalmente o Estado garantisse o direito de reparação às vítimas do regime. Até agora, todos os argumentos têm sido bons para se adiar a questão. Felizmente, finalmente conseguiu-se quebrar a barreira criada por esses argumentos e, pela primeira vez, afirmar o princípio básico de justiça e da responsabilidade do Estado para com as vítimas, a começar pelas já amplamente conhecidas e documentadas. Conseguido esse primeiro objectivo, certamente que casos em todo Cabo Verde, alguns até agora mais obscuros, venham a ser tidos em devida conta. para que a justiça chegue a todos. Para isso, como bem diz o sr. Presidente da República no texto de anúncio de promulgação da lei, é importante que se faça a certificação dos factos justificantes da atribuição da pensão de forma objectiva e séria para evitar aproveitamentos indevidos das compensações. Com a abertura feita para se investigar o regime de partido único não parece haver muitas dificuldades em conseguir dados que identifiquem as suas vítimas reais. Afinal, tudo aconteceu aqui no país. Imagine-se, entretanto, o quanto que o Estado poderia ter poupado se esses mesmos critérios tivessem sido aplicados aos processos de pensão dos auto-proclamados combatentes da liberdade da pátria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 927 de 04 de Setembro de 2019.
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