O governo de Cabo Verde com a aprovação da Resolução
123/2018 que declarou o 25 de Setembro Dia Nacional dos Direitos Humanos
deu por duas razões um passo importante ao fazer as pessoas, a
sociedade e as instituições do Estado mais conscientes da importância da
garantia do exercício desses direitos para uma convivência em
liberdade, na paz e confiança na justiça.
Primeiro,
com a consagração de um dia próprio para a comemoração dos direitos
humanos separado da data internacional de 10 de Dezembro, convidou a que
no país se faça uma reflexão sobre o caminho percorrido e se invoquem
os sacrifícios passados para os resgatar. Por essa via, eleva-se a
sensibilidade face a qualquer violação presente e futura dos mesmos e
reaviva-se a memória do que acontece quando os indivíduos são despojados
dos seus direitos e ficam indefesos perante eventuais abusos das
autoridades e de outros poderes na sociedade.
Segundo, ao fazer coincidir a o dia nacional dos direitos humanos com a data de entrada em vigor da Constituição de 1992 ajuda a cimentar na mente de todos e em particular das instituições a importância de se ver os direitos humanos como o pilar base da democracia liberal e constitucional. Em simultâneo deixa claro que a afirmação constitucional do primado da lei como princípio fundamental, a declaração que o exercício do poder só é legitimo se for conforme à Constituição e a garantia da independência dos tribunais visam fundamentalmente salvaguardá-los por forma a que em liberdade e com “governo consentido” todos possam exercer o seu direito à felicidade.
O gesto do governo em criar um dia nacional para os direitos humanos ganha particular pertinência quando se notam tendências de os considerar excessivos ou até contraproducentes em certos momentos, designadamente de emergência securitária. Sente-se isso, por exemplo, em discursos populistas, na postura das instituições ligadas ao combate ao crime e ao terrorismo e em atitudes de indivíduos ou grupos atraídos por um certo justicialismo demagógico. Há que contrariar essas tendências e trabalhar para desenvolver uma sensibilidade nas pessoas e na sociedade que permita reacção imediata na forma de repúdio, denúncia e exigência de acção das autoridades perante o que configurar atropelo de direitos. Particular atenção se deve prestar à polícia e outras forças de segurança que, por força da acção coerciva que são chamadas a exercer, podem incorrer em excessos na sua actuação ou em flagrantes demonstrações de abuso de poder. Das queixas apresentadas à Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, a polícia é a mais visada, segundo a presidente da referida comissão em declarações recentes à imprensa. É facto que essas queixas em geral não provocam da parte das autoridades reacções que vão além do inquérito interno. Mesmo em situações de mortes violentas em circunstâncias complicadas (mortes nas esquadras, o caso de Monte Tchota, etc.) fica-se por saber se houve auditoria externa ou qual foi o papel do Ministério Público no aclaramento dos acontecimentos e na defesa dos direitos dos cidadãos.
Em Cabo Verde constata-se uma deficiente sensibilidade em relação aos direitos humanos. A explicação para isso estará por um lado nas muitas décadas, quarenta e oito anos de salazarismo e quinze anos de partido único, vividas com regimes avessos aos direitos humanos e que submetiam o indivíduo e a sua dignidade ao poder do Estado, na perspectiva de Mussolini de tudo no Estado, nada contra o Estado e nada fora do Estado. Uma outra razão terá a ver com a forma com a transição política para a democracia se verificou em que tudo foi feito para negar uma descontinuidade entre os dois regimes, o democrático e o de partido único, e para não assumir de forma consequente que em termos de princípios e valores encontram-se nas antípodas um do outro. O resultado é que não se depara em Cabo Verde com situações como aquela do Chico Buarque num concerto em Portugal a referir-se aos jovens como “mocidade portuguesa” e a ter em reacção o silêncio geral e olhares de incompreensão. Ou do embaixador alemão, com a memória da juventude hitleriana, a dizer “não gosto de manipulação de crianças”, quando convidado a opinar pelo seu anfitrião sobre um espectáculo de crianças de um país africano seguindo coreografia norte coreana. Pelo contrário. Ainda hoje referências de violência nos anos de partido único contra pessoas, comprovadas por testemunhas vivas, pela imprensa da época e outras fontes, são apresentadas pela comunicação social pública como “alegadas torturas”. Recentemente com a discussão e aprovação da lei da reparação das vítimas da tortura viu-se a reacção de vários sectores de opinião ostensivamente a negar o acontecido e a discordar que se fizesse o mínimo para os que claramente foram injustiçados no passado, sofrendo na pele e na alma a sanha do aparelho repressivo do regime.
Em tal ambiente de dúvidas e disputas político-partidárias sobre os valores e princípios que estão na base dos direitos humanos dificilmente as instituições democráticas vão assumir pronta e integralmente tudo o que a Constituição consagra. Se mesmo em países com democracia mais consolidada com é o caso de Portugal fala-se em “deficiente sensibilidade e preparação constitucional” de polícias, procuradores e juízes que são quem no Estado de Direito democrático devem ser os garantes do exercício dos direitos fundamentais, imagine-se o caminho que ainda se tem que percorrer aqui em Cabo Verde. A iniciativa do governo em criar o Dia Nacional dos Direitos Humanos tem, pois, uma especial utilidade. Para além de celebrar essa conquista de civilização que são os direitos humanos e contribuir para uma cidadania mais participada e atenta, deve ser um dia para se dedicar uma especial atenção às instituições que a Constituição confia a defesa desses mesmos direitos e avaliar o progresso delas na assunção completa dos valores constitucionais na aplicação da lei.
Editorial originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 930 de 25 de Setembro de 2019.
Segundo, ao fazer coincidir a o dia nacional dos direitos humanos com a data de entrada em vigor da Constituição de 1992 ajuda a cimentar na mente de todos e em particular das instituições a importância de se ver os direitos humanos como o pilar base da democracia liberal e constitucional. Em simultâneo deixa claro que a afirmação constitucional do primado da lei como princípio fundamental, a declaração que o exercício do poder só é legitimo se for conforme à Constituição e a garantia da independência dos tribunais visam fundamentalmente salvaguardá-los por forma a que em liberdade e com “governo consentido” todos possam exercer o seu direito à felicidade.
O gesto do governo em criar um dia nacional para os direitos humanos ganha particular pertinência quando se notam tendências de os considerar excessivos ou até contraproducentes em certos momentos, designadamente de emergência securitária. Sente-se isso, por exemplo, em discursos populistas, na postura das instituições ligadas ao combate ao crime e ao terrorismo e em atitudes de indivíduos ou grupos atraídos por um certo justicialismo demagógico. Há que contrariar essas tendências e trabalhar para desenvolver uma sensibilidade nas pessoas e na sociedade que permita reacção imediata na forma de repúdio, denúncia e exigência de acção das autoridades perante o que configurar atropelo de direitos. Particular atenção se deve prestar à polícia e outras forças de segurança que, por força da acção coerciva que são chamadas a exercer, podem incorrer em excessos na sua actuação ou em flagrantes demonstrações de abuso de poder. Das queixas apresentadas à Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, a polícia é a mais visada, segundo a presidente da referida comissão em declarações recentes à imprensa. É facto que essas queixas em geral não provocam da parte das autoridades reacções que vão além do inquérito interno. Mesmo em situações de mortes violentas em circunstâncias complicadas (mortes nas esquadras, o caso de Monte Tchota, etc.) fica-se por saber se houve auditoria externa ou qual foi o papel do Ministério Público no aclaramento dos acontecimentos e na defesa dos direitos dos cidadãos.
Em Cabo Verde constata-se uma deficiente sensibilidade em relação aos direitos humanos. A explicação para isso estará por um lado nas muitas décadas, quarenta e oito anos de salazarismo e quinze anos de partido único, vividas com regimes avessos aos direitos humanos e que submetiam o indivíduo e a sua dignidade ao poder do Estado, na perspectiva de Mussolini de tudo no Estado, nada contra o Estado e nada fora do Estado. Uma outra razão terá a ver com a forma com a transição política para a democracia se verificou em que tudo foi feito para negar uma descontinuidade entre os dois regimes, o democrático e o de partido único, e para não assumir de forma consequente que em termos de princípios e valores encontram-se nas antípodas um do outro. O resultado é que não se depara em Cabo Verde com situações como aquela do Chico Buarque num concerto em Portugal a referir-se aos jovens como “mocidade portuguesa” e a ter em reacção o silêncio geral e olhares de incompreensão. Ou do embaixador alemão, com a memória da juventude hitleriana, a dizer “não gosto de manipulação de crianças”, quando convidado a opinar pelo seu anfitrião sobre um espectáculo de crianças de um país africano seguindo coreografia norte coreana. Pelo contrário. Ainda hoje referências de violência nos anos de partido único contra pessoas, comprovadas por testemunhas vivas, pela imprensa da época e outras fontes, são apresentadas pela comunicação social pública como “alegadas torturas”. Recentemente com a discussão e aprovação da lei da reparação das vítimas da tortura viu-se a reacção de vários sectores de opinião ostensivamente a negar o acontecido e a discordar que se fizesse o mínimo para os que claramente foram injustiçados no passado, sofrendo na pele e na alma a sanha do aparelho repressivo do regime.
Em tal ambiente de dúvidas e disputas político-partidárias sobre os valores e princípios que estão na base dos direitos humanos dificilmente as instituições democráticas vão assumir pronta e integralmente tudo o que a Constituição consagra. Se mesmo em países com democracia mais consolidada com é o caso de Portugal fala-se em “deficiente sensibilidade e preparação constitucional” de polícias, procuradores e juízes que são quem no Estado de Direito democrático devem ser os garantes do exercício dos direitos fundamentais, imagine-se o caminho que ainda se tem que percorrer aqui em Cabo Verde. A iniciativa do governo em criar o Dia Nacional dos Direitos Humanos tem, pois, uma especial utilidade. Para além de celebrar essa conquista de civilização que são os direitos humanos e contribuir para uma cidadania mais participada e atenta, deve ser um dia para se dedicar uma especial atenção às instituições que a Constituição confia a defesa desses mesmos direitos e avaliar o progresso delas na assunção completa dos valores constitucionais na aplicação da lei.
Humberto Cardoso
Sem comentários:
Enviar um comentário