Há vinte anos atrás as Torres Gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque caíram na sequência de um ataque terrorista. Aviões comerciais penhados de passageiros foram transformados em mísseis por terroristas e dirigidos contra alvos civis num acto que pela sua ousadia e consequências mudou completamente o mundo.
Os Estados Unidos da América apanhados de surpresa reagiram com uma guerra ao terrorismo que iria levar à invasão do Afeganistão e do Iraque e no solo nacional iria afectar os direitos dos indivíduos, em particular os direitos à privacidade e à protecção de dados pessoais no quadro da lei chamada Patriot Act. O resto do mundo em choque acabou por seguir a liderança americana nessa nova ofensiva que iria se revelar custosa, inútil e destruidora de vidas em vários países e regiões do globo. A retirada dos soldados americanos do Afeganistão no dia 30 de Agosto último, duas décadas depois, pelo reconhecimento da inutilidade de toda a sua missão de “construção de Estado-Nação” a partir de estados falhados, provavelmente estará a assinalar uma nova era nas relações internacionais com especial impacto no que poderá ser o futuro das relações multilaterais para o desenvolvimento.
O acto terrorista marcou o fim do optimismo que no pós-derrube do Muro de Berlim e desmoronamento do império soviético e quedas em cadeia de regimes autoritários e totalitários em todo o mundo tinha levado Francis Fukuyama a proclamar o fim da história e a vitória da democracia liberal e da economia de mercado. Desenvolvimentos posteriores só vieram a confirmar o quão era deslocado esse optimismo. As tentativas de construção da democracia no Iraque resultaram em guerra civil e destabilização dos países vizinhos. A Primavera Árabe falhou terrivelmente nas suas promessas de democracia e deixou entre vários outros recuos uma Líbia destroçada e uma Síria ainda com uma ditadura impiedosa. O movimento migratório de milhões de pessoas em direcção à Europa que se seguiu provocou crises políticas em vários países, esteve na origem da saída do Reino Unido da União Europeia e alimentou o novo protagonismo da extrema-direita.
Entretanto, não se concretizou a esperança de uma evolução democrática na China que acompanhasse o crescimento rápido da sua economia e o extraordinário feito de retirar centenas de milhões de pessoas da pobreza e de criar uma numerosa classe média. Pelo contrário, viu-se surgir a possibilidade de um modelo de estado iliberal rival das democracias e que podia constituir uma alternativa de desenvolvimento a ser adoptado por outros países. E nas democracias a reacção à crise financeira de 2008, que rapidamente se transformou numa crise económica e social com aumento de desemprego, maior desigualdade social e futuro incerto para as novas gerações, abriu o caminho para o populismo, para sentimentos anti-elitistas e de desconfiança na globalização. Ou seja, em menos de vinte anos, o optimismo dos primórdios do século XX quanto ao sucesso da democracia cedeu lugar ao pessimismo particularmente quando populistas e outros políticos claramente iliberais se fizeram eleger em países de grande peso e influência enfraquecendo a aliança das democracias. Em causa ficaram a observância de princípios e valores universais e a defesa de uma ordem mundial baseada no direito internacional, acordos comerciais e pactos de segurança mútua que em vários aspectos é disputada por regimes autocráticos.
Em 2020 veio a pandemia do coronavírus. A rapidez com que o vírus chegou a todos os países demonstrou, para além de qualquer dúvida, qual o nível de globalização, de conectividade e de interdependência que se já atingiu. A covid-19 sendo uma ameaça global e existencial podia ter sido um factor favorável a uma maior cooperação entre as nações, ao aprofundar da consciência da nossa humanidade comum e à compreensão da natureza planetária de muitos desafios que actualmente se colocam. Infelizmente não foi completamente assim. No desenvolvimento das vacinas o nível de cooperação entre entidades científicas, farmacêuticas e reguladoras foi extraordinário e permitiu em tempo recorde ter um instrumento essencial de resposta à crise pandémica. As dificuldades já se vêem na tentação do nacionalismo económico, na disrupção das cadeias de abastecimento e na falta de articulação para se dar uma resposta global rápida e atempada a uma ameaça que toca a todos.
O resultado é que já se sentem as consequências da ausência de uma abordagem efectiva e global da crise. A baixa nas expectativas de crescimento económico tem a ver com as perturbações na disponibilidade de mão-de-obra e no consumo causadas pelos surtos de variantes da SARS- CoV-2 como a Delta, não obstante o alto nível de vacinação em alguns países. Isso acontece porque enquanto houver gente não vacinada haverá possibilidade de variantes do vírus que de uma forma ou outra vão poder contornar as vacinas. Também com dificuldades de abastecimento dos mercados muita produção é afectada, tornando precária o emprego e mais cara o preço dos produtos, com impacto a nível da inflação e das decisões de investimento e de consumo. Contornar todos os estrangulamentos que se colocam para uma retoma efectiva da economia a escala global exige um nível de cooperação que os egoísmos nacionais dificilmente vão facilitar.
Um outro problema que poderá juntar-se aos existentes que dificultam a cooperação, em particular com os países menos desenvolvidos, vem da constatação já tirada por alguns do fracasso americano no Afeganistão quanto à utilidade da ajuda externa em promover o desenvolvimento. Daron Acemoglu, um dos autores do livro “Por que falham as Nações?” é claro a dizer que despejar recursos num processo de construção de uma economia de cima para baixo não consegue captar a cooperação da sociedade, pode gerar indiferença e em certos casos hostilidade directa que impedem que se consiga algum ganho permanente de toda ajuda dispensada. Ian Burama, um outro analista político acrescenta num artigo recente sobre a armadilha colonial que tais recursos acabam por ser em grande parte capturados por uma elite local enquanto a maioria da população fica numa situação de dependência crescente do Estado, das ONGs e de outras instituições de ajuda internacionais, o que inevitavelmente gera corrupção.
São ainda poucos os analistas a concordar com a decisão de Joe Biden de retirar a América do Afeganistão, mas é grande o suporte dessa decisão junto da população americana. Ninguém garante que a desilusão com o esforço de “nation building” não seráestendida para outros casos de ajuda externa diminuindo o apoio ao multilateralismo na resolução dos problemas do desenvolvimento. Perceber que esse perigo existe é fundamental particularmente quando são muitas as tentações de promover o regresso das indústrias e de refazer as cadeias de valor para aumentar a importância da manufactura nacional e criar maior auto-suficência. Para Cabo Verde, um país muito dependente da ajuda internacional, provar que com competência, criatividade e sentido de oportunidade pode fazer o melhor da ajuda ao desenvolvimento é fundamental nestes tempos que, com a saída dos americanos do Afeganistão, um outro paradigma de relações entre os países poderá estar a emergir. Nesse sentido há que unir esforços para acabar com a dependência que reproduz pobreza e aumenta a desigualdade social.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1032 de 8 de Setembro de 2021.
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